Foi aqui que aprendeu a andar, há 100 anos. Todos os verões, a família de Gertrudes Baptista Fino fazia o percurso de Portalegre até esta casa senhorial de estilo Nazóni, que remonta a 1798, para desfrutar da desafogada paisagem que o Alto Alentejo proporciona. Plantada entre oliveiras centenárias, pertencia na época aos senhores Póvoa, que abriam os portões da propriedade ao pai de Gertrudes para que este pudesse explorar os terrenos agrícola. Joaquim da Cruz Baptista dedicava-se então ao azeite até que, em 1920, decidiu plantar as primeiras vinhas — que ainda hoje resistem. Fundava assim, no início do século XX, a vinícola Tapada do Chaves, dando o mote a uma herança que, um século passado, continua na família.
Aos 101 anos, Gertrudes tem três filhos e um sem número de netos (e bisnetos) que continuam a correr as divisões deste solar. Agora, é casa de Francisco Baptista Fino, o único dos três herdeiros que se aventurou na enologia, sem ter qualquer tipo de formação académica na área. Tudo aquilo que sabe é fruto da prática e do conhecimento, passado de geração em geração: avô, filha e neto. Todos os verões, tal como a mãe, vinha até esta casa para ajudar na vindima.
“Quando era pequeno, tinha 10, 11 anos, andava sempre com o meu avô. Era grande caçador e eu aprendi a caçar com ele. Comecei a gostar do campo, das vinhas. E portanto sempre tive uma grande afinidade com o meu avô, com o vinho, com a parte agrícola”, recorda Francisco Fino ao Observador, ao mesmo tempo que nos mostra uma fotografia dos dois a preto e branco.
Quando em 1975 emigrou para o Reino Unido, onde se formou em engenharia têxtil depois de estudar económicas em Portugal, Francisco nunca deixou o mundo do vinho para trás. Ao longo de 20 anos, regressava anualmente a Portalegre para continuar a aprender com a mãe tudo o que o pai lhe havia ensinado, tornando-se assim num autodidata nos vinhos. “Dividia a minha vida entre Inglaterra, com os têxteis, e ajudar a minha mãe a fazer as vindimas por cá. Era um entretém que eu tinha. E, entretanto, em 1984 comprei esta propriedade, a minha mãe sugeriu que o fizesse, para ter aqui uma base”, explica.


Com 130 hectares, a primeira ideia de Francisco foi fazer daquela que é hoje a propriedade do Monte da Penha, e, consequentemente, a sua casa, um agroturismo ligado ao vinho, com “uma pousada com 10 ou 20 quartos”. “Era de tal modo um processo burocrático que desisti. ‘Acabou-se. Fica para mim'”, decidiu. Com uma casa para recebê-lo de cada vez que viajava até Portugal, Francisco Fino decidiu, mesmo assim, rentabilizar aquela propriedade: depois de recuperar o solar — “está idêntico, mais coisa menos coisa”—, e mobilá-lo com peças compradas especialmente no Reino Unido para encaixarem nos sítios certos destas tantas divisões, começou a plantar novas vinhas para aumentar a produção.
Quando começaram a dar frutos, passaram a contribuir para o vinho que era feito no Tapada do Chaves: “Foi o melhor vinho português do Instituto da Vinha e do Vinho na altura”. Enquanto o pai se desdobrava entre as vinhas, a adega e o negócio do têxtil que também tinha em Portugal, os três filhos aproveitavam por cá os quatro meses das férias de verão. “Esta casa estava sempre cheia”, lembra. Já em cima, no primeiro andar à esquerda, um iluminado quarto com as mesmas dimensões da sala de baixo servia de atelier para Verónica, que pintava em aguarela todo um mundo de espécies botânicas que cresciam por aquele monte com vista para Portalegre. “A minha mulher era a minha coluna dorsal. Eu sem ela não conseguia aos 34 anos fazer uma coisa destas sozinho. Tinha de ter um braço direito”, recorda a mulher, que morreu há 10 anos, depois de uma viagem ao sudeste asiático.
Francisco tornava-se assim gerente do Tapada do Chaves, herdando o negócio diretamente das mãos da mãe. Foi nos anos 1960 que Gertrudes começou a ajudar o pai nos vinhos, tendo tomado conta mais tarde, desenvolvendo a sua comercialização e fazendo com que o Tapada do Chaves passasse de uma produção familiar a ser vendido à mesa dos melhores restaurantes de Lisboa. Atualmente, os palpites que dá quanto aos vinhos que o Monte da Penha produz vão sendo cada vez menos, mas continua a prová-los: “Dou-lhe dois ou três, abana a cabeça e diz qual gosta mais”, explica Francisco. Porque é que, dos três irmãos, foi o único a seguir esta vida? “Porque o vinho era comigo. A minha irmã fazia outras coisas, andava sempre com o meu pai, e o meu irmão também, andava com o meu pai a tratar de ajudar nos têxteis. Mas quem é engenheiro têxtil sou eu. Pois o engenheiro têxtil acaba a fazer vinhos.”
O cenário mudou quando, depois de se reformar dos negócios dos têxteis, o pai de Francisco se “meteu no negócio do vinho da mãe”, tal como a irmã. Sem gostarem da mudança, contrataram dois grandes nomes do enoturismo em Portugal, que também não deram certo: “A partir de 1988, afastámo-nos os dois um pouco e em 1992 ou 1993 fui eu que comecei a fazer as misturas”, explica, referindo-se ao próprio e à mãe. A vinda definitiva para Portugal deu-se pouco depois quando, em 1994, Francisco vendeu a fábrica de têxteis no Reino Unido e rumou a casa, junto de Verónica, para se dedicarem ao vinho.
Os filhos, Inês, Rita e Chico, hoje com 50, 49 e 45 anos, respetivamente, ficaram por lá, tendo a filha do meio regressado a Portugal mais tarde para ajudar o pai com o negócio. “Foi só a Rita que seguiu os passos do meu pai”, explica Inês, acrescentando que, depois de ter trabalhado 20 anos no Monte da Penha, a irmã não está completamente fora do cenário: “Ainda faz consultoria para a empresa”. A história desta família ligada ao vinho vai assim mantendo-se viva de geração em geração. Foi isso que Francisco quis retratar com o lançamento dos vinhos Monte da Penha Gerações Tinto 2004 e Monte da Penha Gerações Reserva Tinto 2011. “O rótulo retrata as gerações com o meu avô, a minha mãe e eu em perfil”, explica, afirmando que “agora tenho de fazer mais uma homenagem” e acrescentar o perfil de Rita.
A herança da Tapada do Chaves que ainda se vive no Monte da Penha
É na encosta da Serra de São Mamede que as vinhas do Monte da Penha pintam a paisagem. Vemo-la desde a comprida varanda que o solar tem no primeiro andar até sermos convidados a apreciá-la ainda mais de cima. Já estamos a 450 metros acima do nível das águas do mar mas, na Serra da Penha, que dá nome a este monte, a altitude é ainda mais elevada. É por lá que Francisco passeia de Land Rover de 1988 — “vintage”, como diz —, de volante à direita: “Este carro veio de Inglaterra. Nunca me enganei a andar no sentido, ou melhor, é mentira. Enganei-me duas vezes. Lá, com neve”, recorda, acrescentando que, tal como o Jaguar XJS, que ofereceu a Verónica pelo seu 40.º aniversário, e o Porsche 911 Carrera 4 964, também o clássico jipe foi uma prenda de anos para a mulher: “Este foi mais um de quando a Verónica fez anos. Fui buscá-lo a Inglaterra. A Verónica fazia anos dia 2 de outubro”, conta, interrompido pelo comentário de Inês: “A minha mãe é que dizia que não sabia para que é que lhe serviam tantos carros. Foi a desculpa do meu pai. Era sempre os anos dela”.
É perto da Capela de Nossa Senhora da Penha que “se vê bem as vinhas”, desde aquelas que foram plantadas pelo avô no início do século XX às que plantou já mais perto da virada do século. “Umas são minhas outras são da Tapada do Chaves”, explica enquanto aponta para a paisagem: “Grande parte delas fui eu que plantei. Na altura em que plantei estas aqui à volta de casa também plantei seis hectares na Tapada do Chaves e remodelei uma vinha que tinha oliveiras. Na altura, para ser região demarcada, tivemos que tirar as oliveiras, então plantamos a vinha. Fui eu que fiz. Mas sempre com as castas originais das vinhas plantadas pelo meu avô”.
Em 1987 foram assim plantados 10 hectares de vinha tinta — castas Trincadeira, Aragonês, Alicante Bouschet e Moreto — e dois hectares de vinha branca — castas Fernão Pires, Alva (conhecida como Roupeiro), Arinto e Trincadeira das Pratas. Em 2000 foram plantados mais 10 hectares, com as castas Aragonês, Alicante Bouschet e Touriga Nacional. Separadas apenas por uma estrada, que nos leva da entrada do Monte da Penha à entrada do Tapada do Chaves, só desde há 27 anos para cá é que as duas zonas vitinícolas não são uma só.




Depois de anos a contribuir para a sua produção, em 1998 o Tapada do Chaves foi vendido à Murganheira e ao banco BPN. Na altura, a família Fino viu-se sem adega para continuar a produzir os seus vinhos e, por isso, resolveu construir ali mesmo ao lado do solar a sua própria, lançando aquele que hoje é o Monte da Penha. “Eu tinha a matéria-prima. Sabia fazer o vinho. Tinha potencial para desenvolver”, justifica Francisco. O primeiro vinho que acabariam por lançar com o novo nome foi criado pela ocasião do casamento da filha Inês, em 1999. “O Monte da Penha 1998 foi o primeiro que eu apresentei. Foi vinho que eu tirei da Tapada do Chaves para fazer o primeiro Monte da Penha. Que era o meu, feito com as minhas uvas”, esclareceu.
Atualmente, Francisco Fino trabalha diretamente com a enóloga Susana Esteban, que está no projeto há três anos “para dar continuidade”. “Começo a ficar cansado e já não sou eterno portanto alguém há de aprender. A minha filha Rita trabalhou 20 anos comigo e agora tem de se arranjar uma transição”, explica o engenheiro, garantindo, no entanto, que é o próprio quem continua a dar a palavra final. “O essencial é saber fazer o vinho. Faço os vinhos como fazíamos na Tapada do Chaves, que era como eu aprendi com a minha mãe e com o meu avô. Fiquei com as cartilhas todas da minha mãe. O que é que podia fazer e comecei a fazer com ela. Hoje em dia não faço exatamente tudo igual. Mas acho que este vinho é de ótima qualidade”, afirma, revelando ter amigos que dizem saber distinguir um vinho do Monte da Penha quando o bebem por ser diferente.
“Deixo os vinhos naturais, não ponho muita madeira, não filtro. É tudo natural e é isso que eu mantenho. A única coisa que varia é de ano para ano a evolução da uva, que é apanhada à mão na serra.” É a uva que, garante Francisco, faz a diferença no produto final: “O importante é uma pessoa ter a boa matéria prima para escolher os melhores vinhos e fazer a mistura. Portanto, desde que tenhas a boa matéria prima é meio caminho andado, não é?”.
Um lançamento botânico em homenagem a Verónica
Desde o lançamento do primeiro Monte da Penha em 1998 que a mulher de Francisco Fino foi quem sempre desenhou os rótulos dos vinhos. Inicialmente, e sendo aquilo que mais se destaca na propriedade, a casa secular era a imagem de marca do produtor, desenhada num clássico traço fino, que ia variando de cor, e por vezes acompanhada pela ilustração das vinhas que a envolvem. “Outro rótulo são as vinhas que montei lá na serra, que é o Montefino, pintado pela minha mulher, e as curvas de nível”, identifica.
Formada em design de interiores no IADE, Verónica Fino esteve sempre ligada ao mundo das artes. Quando em 1975 emigrou para o Reino, dois anos depois de ter casado e com a então pequena Inês com seis meses, a mulher de Francisco começou a frequentar cursos de pintura botânica com as amigas, iniciando depois o seu gosto por pintar quadros em aguarela. Depois da sua morte, há 10 anos, o Monte da Penha homenageou Verónica com o lançamento, em 2022, de um vinho homólogo.
Verónica é assim o resultado da mistura de duas colheitas, 2021 e 2022, produzidas a partir de uvas provenientes das vinhas velhas do Monte da Penha, com as castas Arinto, Fernão Pires, Roupeiro e Trincadeira das Pratas. O rótulo é um desenho que a própria fez de um maracujá, ou “passion fruit”, como lhe chama Francisco — “o fruto da paixão, a paixão do vinho, a paixão da Verónica”. O quadro original está agora em casa de Inês: “Tenho o fruto da paixão. Por acaso foi bonito porque a minha mãe ofereceu o fruto da paixão à minha avó materna e a minha avó quando morreu disse que o quadro ia para a neta mais velha, que sou eu. Então voltou para mim”.


Ainda antes de morrer, Verónica já sabia que haveria de chegar um dia em que ia ter um vinho com o seu nome. “Há muitos anos, um primo da minha mulher, o Zé Maria da Fonseca, que era um grande produtor de vinho aqui de Azeitão, sugeriu eu fazer um vinho branco e chamá-lo de Verónica. Porque ele gostava muito de touradas e dizia ‘el Veronica das touradas'”, recorda, fazendo com a mão o gesto de quando o toureiro move o capote. Em homenagem, acabaria por lançar um Verónica branco, “mais trabalhado em termos de mistura e qualidade”.
No entanto, a maior homenagem à mulher de Francisco Fino chega este ano, no final do mês de outubro. O Monte da Penha vai lançar uma nova edição de vinhos todos com rótulos de pinturas botânicas feitas pela própria Verónica em aguarela. A ideia foi de Rita que, junto do designer Pedro Antunes, elegeram os quadros que iam ser replicados para dar agora cara a estes novos vinhos. “Quando a mãe morreu houve partilhas e os quadros foram para casa de cada um dos irmãos. Quando chegou o momento de fazer os rótulos juntámos todos de novo”, explicou Inês, sustentada por Francisco, que explica ainda que os rótulos são “tudo plantas selvagens que há aqui à volta e que a minha mulher ia pintando”, vegetação essa que interfere nos aromas do vinho, desde a romã à folha de oliveira, “ela adorava pintar”.




Com a rota dos vinhos a ter lugar nos edifícios anexos ao solar, construídos mais tarde para serviços agrícolas, Francisco Fino sonha agora fazer uma prova vertical com todos os Monte da Penha desde 1998 até aos dias de hoje, para se perceber tanto a evolução do vinho como a evolução dos rótulos pintados por Verónica. Até lá, as provas vão continuar a ser feitas tanto na rota dos vinhos, com vista para Portalegre e para as vinhas, como no próprio solar, com amêndoas torradas a acompanhar — “Eu gosto do vinho branco com amêndoas” — e as tão caseiras empadas de porco, vindas diretamente da casa de Gertrudes, que dia sim dia não coloca as cozinheiras a espreitar o seu livro de receitas.
A nova coleção do Monte da Penha será lançada a 30 de outubro e é composta pelo Monte da Penha Altitude Tinto 2015 (PVP: 29,90 euros), o Monte da Penha Harvest Tinto 2015 (PVP: 10,50 euros), o Monte da Penha Harvest Branco 2015 (PVP: 11,50 euros), o Monte da Penha Terroir Tinto 2015 (PVP: 17,50 euros) e o Monte da Penha Gertrudes Tinto 2015 (PVP: 59,50 euros). Este último é uma homenagem à mãe de Francisco, feito especialmente para celebrar o seu 100.º aniversário. “Gosto muito desta coleção porque são uma homenagem à minha mulher”, revela Francisco, sustentado por Inês que, afirma, “nos faz muita falta”. “As mulheres são as que escolhem os vinhos”, brinca ainda o engenheiro.









