Ontem de manhã, vestiu uma camisola castanha ou preta? À tarde, quando saiu do trabalho, disse “até amanhã” aos colegas ou saiu sem dizer nada porque estava ao telemóvel? À noite, jantou carne ou peixe? E leu três páginas do livro ou adormeceu ao fim do primeiro parágrafo?
Ao tentar trazer estas memórias à tona, podemos sentir um vazio inesperado. A memória — que muitas vezes consideramos um arquivo fiável da nossa vida — pode ser surpreendentemente pouco fidedigna quanto a estes pormenores do dia a dia: lembramo-nos de episódios da infância com uma nitidez quase fotográfica, mas hesitamos quanto ao que aconteceu há apenas vinte e quatro horas. Afinal, porque é que nos lembramos tão mal de coisas que aconteceram ontem?
Temos vários tipos de memória e um dos mais relevantes para recordarmos este género de acontecimentos é a memória episódica, que “corresponde à capacidade de recordar eventos passados, incluindo os detalhes associados a esses acontecimentos — como o tempo, o lugar, as pessoas e os objetos envolvidos”, explica Ana Luísa Raposo, professora associada da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa.
A coordenadora do grupo de investigação Memória e Linguagem, onde estuda precisamente como funciona a memória humana, frisa que a memória episódica se distingue de outros tipos de memória a longo prazo, “como a memória semântica, que se refere ao conhecimento geral que temos sobre o mundo, independentemente da experiência pessoal — por exemplo, a memória para factos, conceitos ou normas sociais.”
Simplificadamente, o processo de memória tem três fases:
- A codificação ou formação: o momento em que o cérebro regista a informação;
- O armazenamento ou consolidação: quando a informação é guardada de forma estável;
- A recuperação — o ato de lembrar, isto é, de ir buscar a memória guardada.
O esquecimento pode ocorrer em qualquer uma das etapas deste processo. Por exemplo, “quando estamos cansados ou distraídos, a formação ou codificação da memória pode ser afetada”, explica Ana Luísa Raposo. Por outro lado, diz, as emoções fortalecem o armazenamento da memória, porque envolvem a comunicação entre duas regiões-chave do cérebro: o hipocampo, responsável pela formação e consolidação da memória, e a amígdala, ligada ao processamento emocional. O que significa que “acontecimentos emocionalmente intensos tendem a ser recordados de forma mais duradoura do que eventos neutros.”
Também o sono é crucial na fase de consolidação das memórias. “É durante o sono que o cérebro ‘reproduz’ os eventos do dia e cria ‘etiquetas’ que determinam se um dado evento vai ser consolidado em memória ou, pelo contrário, será descartado e esquecido. Fatores como o medo, a recompensa, a novidade, a relevância ou os objetivos pessoais determinam que memórias são fortalecidas durante o sono”, esclarece.
Em resumo às vezes: lembramo-nos mal de ontem porque o cérebro não vê razão para guardar com cuidado aquilo que considera banal, irrelevante ou indistinguível. A memória episódica não é um gravador: é mais parecida com um editor — corta, simplifica e, às vezes, deita fora. Mas isto significa também que, quando o sono é pouco ou de má qualidade, a memória sai prejudicada “porque este processo de seleção, ‘limpeza’ e fortalecimento das memórias não se faz.”
Por fim, mesmo quando um evento foi bem codificado e armazenado em memória, podemos ter dificuldade em aceder à informação. “Frequentemente, a recuperação de uma memória específica exige esforço. [Por exemplo:] Quando foi a última vez que estive num museu?” A especialista explica que, nesses casos, há pistas ou estratégias para recordar que podem ser usadas: “Gosto de arte clássica ou contemporânea? Com quem costumo visitar exposições? Foi em Portugal ou fora do país?”
Há boas razões para esquecermos detalhes, sendo a principal a sua função adaptativa, já que permite criar espaço para guardarmos novas memórias. Um dos exemplos mais comuns é a interferência proativa — quando memórias antigas atrapalham as novas. “É o que acontece quando nos lembramos de uma palavra-passe antiga e não conseguimos recordar a nova”, diz Ana Luísa Raposo. Ou quando o hábito de estacionar sempre no mesmo sítio nos faz esquecer onde deixámos o carro desta vez. Neste caso, esquecer as informações mais antigas é bom: uma forma de manter a memória eficiente, evitando que dados semelhantes, mas desnecessários e desatualizados, atrapalhem o acesso à informação atual.
Por outro lado, há esquecimentos que servem para proteger. “Como nos sentiríamos se nos lembrássemos de cada pormenor das situações negativas que vivemos?”. É aqui que entra o chamado esquecimento dirigido — um processo ativo em que o cérebro tenta enfraquecer ou suprimir memórias dolorosas. Ao contrário do esquecimento passivo, este é intencional e ajuda-nos a seguir em frente sem ficarmos presos a recordações que magoam.