(c) 2023 am|dev

(A) :: Porque nos lembramos tão mal de coisas que aconteceram ontem?

Porque nos lembramos tão mal de coisas que aconteceram ontem?

Não conseguir recordar detalhes recentes pode ser causado por erros no processo de memória. Mas também pode ser apenas uma forma de gestão eficiente da informação.

Sofia Teixeira
text
Rodrigo Mendes
illustration

Ontem de manhã, vestiu uma camisola castanha ou preta? À tarde, quando saiu do trabalho, disse “até amanhã” aos colegas ou saiu sem dizer nada porque estava ao telemóvel? À noite, jantou carne ou peixe? E leu três páginas do livro ou adormeceu ao fim do primeiro parágrafo?

Ao tentar trazer estas memórias à tona, podemos sentir um vazio inesperado. A memória — que muitas vezes consideramos um arquivo fiável da nossa vida — pode ser surpreendentemente pouco fidedigna quanto a estes pormenores do dia a dia: lembramo-nos de episódios da infância com uma nitidez quase fotográfica, mas hesitamos quanto ao que aconteceu há apenas vinte e quatro horas. Afinal, porque é que nos lembramos tão mal de coisas que aconteceram ontem?

Temos vários tipos de memória e um dos mais relevantes para recordarmos este género de acontecimentos é a memória episódica, que “corresponde à capacidade de recordar eventos passados, incluindo os detalhes associados a esses acontecimentos — como o tempo, o lugar, as pessoas e os objetos envolvidos”, explica Ana Luísa Raposo, professora associada da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa.

A coordenadora do grupo de investigação Memória e Linguagem, onde estuda precisamente como funciona a memória humana, frisa que a memória episódica se distingue de outros tipos de memória a longo prazo, “como a memória semântica, que se refere ao conhecimento geral que temos sobre o mundo, independentemente da experiência pessoal — por exemplo, a memória para factos, conceitos ou normas sociais.”

Simplificadamente, o processo de memória tem três fases:

  1. A codificação ou formação: o momento em que o cérebro regista a informação;
  2. O armazenamento ou consolidação: quando a informação é guardada de forma estável;
  3. A recuperação — o ato de lembrar, isto é, de ir buscar a memória guardada.

O esquecimento pode ocorrer em qualquer uma das etapas deste processo. Por exemplo, “quando estamos cansados ou distraídos, a formação ou codificação da memória pode ser afetada”, explica Ana Luísa Raposo. Por outro lado, diz, as emoções fortalecem o armazenamento da memória, porque envolvem a comunicação entre duas regiões-chave do cérebro: o hipocampo, responsável pela formação e consolidação da memória, e a amígdala, ligada ao processamento emocional. O que significa que “acontecimentos emocionalmente intensos tendem a ser recordados de forma mais duradoura do que eventos neutros.”

Lembramo-nos mal de ontem porque o cérebro não vê razão para guardar com cuidado aquilo que considera banal, irrelevante ou indistinguível. A memória episódica não é um gravador: é mais parecida com um editor — corta, simplifica e, às vezes, deita fora.

Também o sono é crucial na fase de consolidação das memórias. “É durante o sono que o cérebro ‘reproduz’ os eventos do dia e cria ‘etiquetas’ que determinam se um dado evento vai ser consolidado em memória ou, pelo contrário, será descartado e esquecido. Fatores como o medo, a recompensa, a novidade, a relevância ou os objetivos pessoais determinam que memórias são fortalecidas durante o sono”, esclarece.

Em resumo às vezes: lembramo-nos mal de ontem porque o cérebro não vê razão para guardar com cuidado aquilo que considera banal, irrelevante ou indistinguível. A memória episódica não é um gravador: é mais parecida com um editor — corta, simplifica e, às vezes, deita fora. Mas isto significa também que, quando o sono é pouco ou de má qualidade, a memória sai prejudicada “porque este processo de seleção, ‘limpeza’ e fortalecimento das memórias não se faz.”

Por fim, mesmo quando um evento foi bem codificado e armazenado em memória, podemos ter dificuldade em aceder à informação. “Frequentemente, a recuperação de uma memória específica exige esforço. [Por exemplo:] Quando foi a última vez que estive num museu?” A especialista explica que, nesses casos, há pistas ou estratégias para recordar que podem ser usadas: “Gosto de arte clássica ou contemporânea? Com quem costumo visitar exposições? Foi em Portugal ou fora do país?”

Há boas razões para esquecermos detalhes, sendo a principal a sua função adaptativa, já que permite criar espaço para guardarmos novas memórias. Um dos exemplos mais comuns é a interferência proativa — quando memórias antigas atrapalham as novas. “É o que acontece quando nos lembramos de uma palavra-passe antiga e não conseguimos recordar a nova”, diz Ana Luísa Raposo. Ou quando o hábito de estacionar sempre no mesmo sítio nos faz esquecer onde deixámos o carro desta vez. Neste caso, esquecer as informações mais antigas é bom: uma forma de manter a memória eficiente, evitando que dados semelhantes, mas desnecessários e desatualizados, atrapalhem o acesso à informação atual.

Por outro lado, há esquecimentos que servem para proteger. “Como nos sentiríamos se nos lembrássemos de cada pormenor das situações negativas que vivemos?”. É aqui que entra o chamado esquecimento dirigido — um processo ativo em que o cérebro tenta enfraquecer ou suprimir memórias dolorosas. Ao contrário do esquecimento passivo, este é intencional e ajuda-nos a seguir em frente sem ficarmos presos a recordações que magoam.