Para Carmen Maria Machado, Na Casa dos Sonhos pertence a uma vida anterior. Depois de um elogiado primeiro livro [O Corpo Dela e Outras Partes], a autora norte-americana passou para as páginas de uma obra de memórias a relação tóxica que teve com a primeira namorada. Um abuso psicológico que foi escalando, prendendo-a numa rede de violência doméstica que parecia não ter fim, serviu de pano de fundo para um relato mais abrangente, onde Machado inclui reflexões e pesquisa sobre o tema — mais do que a violência doméstica, a violência entre mulheres pouco ou nada falada no mundo queer.
Considerado melhor livro de memórias da década pelas publicações Paste, Lit Hub e Autostraddle, Na Casa dos Sonhos (agora publicado em Portugal pela Alfaguara) foi um processo doloroso de escrita, mas tornou-se ainda mais intenso no momento que a escritora percebeu a quantidade de pessoas que se identificava com a obra.
Para ultrapassar a fase mais difícil da sua vida, Carmen Maria Machado precisou de mergulhar noutro livro — que entregou agora à editora —, para realmente se libertar do passado. Na primeira passagem por Lisboa, falámos com ela sobre a história, os traumas e a difícil vida de um livro como estes numa era onde a misoginia ganha espaço.
Já passaram seis anos desde que escreveu este livro. Imagino que possa encará-lo de forma diferente da época em que o escreveu. Parece que foi noutra vida?
Foi lançado há seis anos nos EUA, mas escrevi-o ainda há mais tempo. Também tive uma experiência muito estranha: escrevi, fui em digressão e depois veio a Covid-19. De repente, tudo se desmoronou e a pandemia foi muito difícil para mim. Sinto que estou muito distante disso, parece mesmo uma vida completamente diferente. Parece algo de uma outra escritora, uma pessoa diferente, no bom e no mau sentidos. O livro foi difícil de escrever e foi difícil promovê-lo. Além disso, há muito tempo que não falo sobre ele — a não ser quando trabalho com as traduções.
Quando começou a escrever, estava preparada para que fosse uma jornada difícil, mas estava preparada para que fosse igualmente penoso promovê-lo?
Acho que não estava preparada para a digressão e não estava preparada para a vida que o livro iria ter. Eu queria escrevê-lo, era muito importante para mim, mas parecia um assunto muito específico com um formato muito específico. Pensei: “Espero que este livro chegue às pessoas que precisam dele”. Mas não imaginava que, por exemplo, este livro fosse mais lido do que o meu primeiro [O Corpo Dela e Outras Partes]. Sinto que não estava preparada para que ele vivesse num mundo quase separado de mim e que gerasse tanta resposta. Tem sido bom no sentido em que sinto que fiz algo importante, mas também tem sido muito intenso. Apesar de já ter sido publicado há algum tempo, as pessoas descobrem-no todos os dias, e não apenas com as traduções.
É um relato muito íntimo, porque retrata uma relação abusiva que viveu com a sua primeira namorada. Por ser tão pessoal, teve experiências de leitores que, por acharem que a conheciam realmente, tiveram abordagens intrusivas?
Isso aplica-se às memórias em geral. As pessoas pensam que a escrita, assim como a arte em geral, faz com que sintam que estão a deparar-se com algo íntimo, e de facto estão, mas é estranho porque muitos leitores pensam que conhecem quem escreve, que sabem algo muito específico, mas é claro que um livro de memórias é uma fórmula controlada. A história passa através de mim, por isso estou a controlar o que está na página. As pessoas são sempre simpáticas, nunca é mau, mas por vezes é estranho. Não sou médica, não sou terapeuta, sou só uma pessoa que escreveu uma história, que por acaso é a minha. Por vezes há interações estranhas porque alguém que leu o meu livro sabe muito sobre mim e eu não sei nada sobre essa pessoa. Parece muito desigual.
É detalhada nas descrições das discussões ou das preferências sexuais, por exemplo. Arrepende-se de ter escrito o livro, ou pelo menos de o ter feito de forma tão exposta?
Não é que me arrependa, mas se pudesse voltar atrás no tempo, talvez me dissesse: “Não faças esse livro, é demasiado para a tua cabeça”. Ao mesmo tempo, sinto-me muito mal a dizer isto, porque significa muito para tantas pessoas. Parece que estou a desejar que algo desapareça, o que não é o caso. Voltaria a escrevê-lo, mas gostaria de ter sabido como seria ter aquele livro no mundo, porque não sabia mesmo.
Deve ter conhecido pessoas com muitas histórias semelhantes à sua. Há pouco disse que houve coisas muito difíceis. Foi no sentido de ser tudo demasiado pesado e de chegar a um ponto de ter de se distanciar da história por já não estar a ser bom para si?
É quase como se tivesse tido um filho que depois deixou de ser meu, porque passou a fazer parte do leitor, da experiência do leitor. Penso que, para mim, se tornou difícil porque acho que o que acontece quando se escreve um livro como este, que fala de algo muito silencioso, sobre o qual as pessoas não falam muito e não têm linguagem, é que há reações muito intensas, mesmo que a experiência que tiveram não seja a mesma do livro. Há pessoas que dizem: “Não sou gay, mas este livro falou comigo”, “sou homem, mas este livro falou comigo”, “esta coisa que me aconteceu que não tinha nada a ver, mas algo na forma como escreveste o livro tocou-me”. Estaria a mentir se dissesse que não é difícil receber estes relatos porque, por vezes, é quase como se as pessoas quisessem colocar a sua dor num sítio qualquer, porque muitas pessoas também têm muita dor não resolvida. Especialmente nos EUA, onde o sistema de saúde é muito mau e ninguém tem os cuidados de saúde mental de que necessita, há muita dor reprimida que as pessoas não sabem onde colocar. De repente, encontram um livro ou uma obra de arte na qual se reconhecem e não conseguem conter toda aquela dor, têm de a partilhar e nem sempre sei lidar com isso. Sou uma pessoa normal, tenho dois cães, uma parceira, faço o jantar. A última coisa que fiz antes da pandemia foi uma tournée exaustiva, de cidade em cidade, onde conheci muitas pessoas e me deparei com essas histórias. De repente, fiquei fechada em casa com isto tudo contido dentro de mim. Foi muito estranho.
Sentiu que estava a carregar um fardo?
Não sei se é a palavra que usaria, mas é a realidade com a qual tenho de viver e não é algo que teria escolhido de propósito.
Comparou a publicação deste livro a um parto, que é sempre um momento que mistura felicidade, alívio, mas também sofrimento. Normalmente, o amor e a ligação à criança vai crescendo com o tempo, mas a sua relação com a obra não parece tão linear assim.
Não tenho filhos, por isso estava um bocado nervosa por usar a analogia da criança, é uma experiência de um nível que não consigo imaginar. Talvez tenha sido mais como uma pedra nos rins que tinha de expulsar, tirar do meu corpo. O livro que acabei de terminar, que é de ficção, também aborda parte desse material.
Fale-me um pouco desse novo livro.
São contos espalhados ao longo do tempo: algumas histórias são no passado, outras no presente e futuro. Coloca a questão do que acontece quando estamos presos num círculo do qual não conseguimos escapar — como uma relação abusiva. Algo que não conseguimos definir está sempre ali, a pairar, mesmo quando avançamos ou recuamos no tempo não conseguimos escapar. Há um conto que fala da digressão para lançar um livro e da sensação de estar preso naquela redoma. É ficção, mas é óbvio que é inspirada na minha experiência e foi, na realidade a única coisa que escrevi durante a pandemia. Acho que escrevi uma ficção sobre estar a andar em círculos, sem conseguir seguir em frente. Por isso, acho, espero, dedos cruzados, que o novo livro esclareça o resto, que feche um capítulo que eu precisava de terminar antes de me dedicar a coisas realmente diferentes. Pensei que o livro de memórias iria fechar um capítulo da minha vida, mas precisei de mais um livro inteiro de ficção para encapsular isso.

Contrariamente aos contos, Na Casa dos Sonhos foca-se numa só narrativa, mas o género do narrador (às vezes na segunda pessoa, terceira, etc) e o formato da escrita (capítulos curtos, muitos com pequenas reflexões, referências a filmes ou expressões) muda várias vezes. O facto de ter escrito o livro em várias fases e diferentes residências definiu essa escolha?
Tentei escrever uma versão normal, que tivesse um formato mais clássico de memórias e simplesmente não funcionou. Estava a ler e pensei: “Estou aborrecida com as minhas próprias páginas”, o que não é um bom sinal. Só quando descobri este formato é que a história pareceu ter um recipiente que pudesse conter tudo, se é que esta imagem faz sentido. É pelo formato que começo e depois vou preenchendo os espaços.
Pouco depois de editar o livro, mudou-se para Nova Iorque (mais precisamente, Brooklyn), uma cidade que, no livro, é palco de alguns momentos muito violentos. Como lidou com os gatilhos que esse local lhe provocava?
Agora vivo em Iowa City, o que também não é melhor, porque foi lá que comecei a relação com a minha primeira namorada. Definitivamente, houve momentos em que, em Nova Iorque, passei por sítios em que dizia a alguém: “Ah, chorei naquele sítio”, “aquele pessoa gritou comigo neste bar”. O mesmo acontece agora, quando olho para determinados locais, penso nos momentos maus que vivi ali, mas, ao mesmo tempo, é como se quisesse reivindicar esse espaço de outra forma, sabe?
Criar novas memórias que se sobreponham às antigas?
Sim, pode ser. Algo que realmente percebi com o livro é que, seja o que for que te esteja a prender, tens de viver. Apesar de certos sítios terem más memórias, também significam muito para mim, portanto vou criar algo por cima do que lá ficou. Ou tentar, pelo menos.
O tema da violência é sempre chocante, mas o tema de mulheres violentas parece quase exagerado, ou algo impossível de acontecer. Apesar de estar ser um livro de memórias, fez também muita pesquisa para desmistificar estes tabus?
Quando vendi o livro, não tinha feito pesquisa nenhuma, mas pensei que era algo que ia enriquecer o projeto. Mostrou-me a razão pela qual este assunto é tão silencioso. Esta ideia de as mulheres serem violentas, e mais, serem violentas no seio da comunidade queer, é algo sobre o qual não escrevemos nem falamos por razões diferentes. Parte disso é a homofobia ou a misoginia. Imaginamos as mulheres como vítimas de violência, não conseguimos imaginá-las como perpetradoras de violência. Não é como se a misoginia ou a homofobia fossem desaparecer tão cedo, mas neste nicho é ainda mais chocante. Numa das apresentações do livro, em Portland, uma senhora mais velha, lésbica, levantou-se e disse: “Sinto que tentamos trazer isto à tona a cada década, tentamos falar sobre este assunto, espero realmente que funcione desta vez”. Agradeci no momento e depois voltei para o hotel e chorei. Vamos ver se as pessoas começam a pensar nisto de forma diferente ou se ainda não é o momento.
O que lhe parece, neste exato momento?
A situação nos EUA é má, não consigo expressar o quão má é. Recebi mensagens de pessoas a dizer que tinham ensinado parte das minhas memórias numa escola secundária no Texas, e que isso desencadeou uma situação caótica. Claramente, estamos numa situação bastante má. É engraçado, a minha ex-mulher [Val, que também faz parte do livro] escreve ficção histórica e lembro-me de ela me dizer que a História não é uma linha. As pessoas pensam nela como uma linha, mas são círculos. Não saberia qual seria a vida do meu livro, mesmo que isto não estivesse a acontecer nos EUA, mas acho que , especialmente porque estamos neste momento de censura, de incrível repressão governamental e de movimento fascista autoritário, é muito provável que ele não vá ter uma vida fácil.
No seu processo de escrita atual, tem isso em mente?
Todos os dias é uma roleta russa. Acordo e penso: “Que pesadelo se está a desenrolar agora?”. Isso afeta a minha escrita no sentido em que sinto que o meu trabalho é mais urgente, mas também é assustador. Tenho pensado muito sobre o papel da arte neste momento. No momento do fascismo, do autoritarismo e do controlo governamental, qual é o papel dos artistas? Penso nisso todos os dias, é como se não houvesse como escapar. Eu queria, mas não dá.
Falou da Val, a pessoa com quem casou, e que também teve um relacionamento com a sua primeira namorada. Agora já não estão juntas, portanto como é promover um livro em que uma parte tão grande deixou de fazer sentido?
Eu e a Val continuamos próximas, mas não posso dizer que não é um pouco estranho. Penso: “Ah, a minha vida mudou muito”. Mas também de formas que acho que foram surpreendentes e é essa a questão das memórias, ou de qualquer livro, na verdade. É como se, quando se escreve sobre isso, fosse apenas aquele momento no tempo e é óbvio que as coisas vão mudar. Eu e a Val tínhamos algo em comum e depois tivemos uma relação especial, portanto o livro faz parte dessa experiência.
Já disse que agora quer escrever coisas diferentes, mas vai anotando coisas da sua vida que, eventualmente, no futuro possam dar origem a outro livro de memórias?
Já acabei com as memórias. Penso que talvez escreva alguns ensaios em algum momento, mas sobre literatura e cinema. Honestamente, o meu cérebro processa as coisas principalmente através da ficção. É através deste processo que consigo sintetizar as coisas no meu cérebro e acho que é mais saudável para mim.