Em Seia, no coração da Serra da Estrela, não há quem não conheça Carlos Teófilo, o advogado e professor de várias gerações, mas também o entusiasta do jazz, do teatro, do cinema, da cultura em geral. E por isso toda a gente acompanhou com preocupação os longos dias em que um AVC isquémico, na zona do cerebelo, o deixou numa cama de hospital, sem prognóstico animador, no inverno de 2023.
O caso mudou de figura quando voltou à terra e se espalhou a notícia de que estava em recuperação na Unidade de Cuidados Integrados (UCCI) de Seia, à guarda da Santa Casa da Misericórdia local. Amigos e família organizaram-se na maior rede de apoio de que há memória por ali, criaram grupos no WhatsApp para calendarizar visitas, para saber quem e quando o ia buscar para almoçar. Quem o ajudava a “fugir”, como ainda hoje contam.
Esta é a história de um homem a quem o AVC deixou sequelas — sobretudo ao nível do equilíbrio — mas a quem o humor salvou, funcionando como antídoto para a depressão, tão comum em casos como este. Carlos Teófilo, excêntrico na forma de se apresentar, voltou a conduzir, a nadar, à vida independente que sempre teve — mesmo que esteja lá a sombra de Maria José, a mulher, ou qualquer um dos elementos do “Governo-sol”, como designa a rede de amigos que o envolve.
Maria José Oliveira
“O meu marido lutou muito contra as incapacidades. Nunca precisei de o ajudar a vestir”
Maria José e Carlos Teófilo casaram há 51 anos. Uma vida de plena compatibilidade, já que a extravagância dele contrabalança bem a sensatez e o recato dela. A 26 de Janeiro de 2023, manhã cedo, ainda ela estava deitada, Carlos desceu para preparar o saco para levar à natação, que praticava todos os dias. “Subiu as escadas e veio dizer-me que não estava bem, que precisava de ir ao hospital, porque tinha falta de equilíbrio.”
Quando Maria José se vestiu e desceu para o acompanhar, já ele estava no carro. Levou-o à urgência do Hospital de Nossa Senhora da Assunção, em Seia, e foi nessa altura que se apercebeu do desequilíbrio muito pronunciado. “Ele ia caindo.”
O médico de serviço achou por bem enviar Carlos Teófilo para o Hospital Sousa Martins, na Guarda. Aí, o diagnóstico não foi conclusivo (apesar de uma TAC), e Maria José viu o marido ser reencaminhado de novo para Seia. “Era ainda o mesmo médico que estava de serviço, e em boa hora entendeu enviar o meu marido para Coimbra. Lá fez uma TAC com contraste e percebeu-se que era um AVC”. Tinham passado demasiadas horas.
“No período de mais de um mês em que ele esteve internado, fui eu que controlei todas as visitas. Ainda tínhamos regras que ficaram do tempo da Covid, só podia ir uma pessoa de cada vez, mas acabavam por ir duas”, conta Maria José. Mais de 100 km separam Seia de Coimbra, uma hora e meia de viagem. “Surpreendo-me comigo mesma, como é que eu consegui gerir as visitas todas”, diz ao Observador. Porém, o tempo mais difícil estaria por vir: o período de convalescença na UCCI. As regras de uma unidade de saúde como aquela eram demasiado apertadas para um espírito livre como o de Carlos. “Para mim não foi uma fase fácil, aquela em que ele estava ainda na cadeira de rodas”, recorda Maria José, que também já passara dos 70 anos e lida com algumas mazelas, nomeadamente nos joelhos. “O meu marido lutou muito contra as incapacidades”, sublinha, apontando a força de vontade com que se dedicou à fisioterapia, passando rapidamente da cadeira de rodas para o andarilho, para as canadianas, e depois finalmente sem nada.
“Ele tinha tal força de vontade que nunca foi preciso ajudá-lo a vestir, por exemplo”, recorda. Mas de permeio, Maria José apanhou alguns sustos com o marido, como naquele dia em que insistiu nadar, na piscina de uma amiga, por sinal, médica. A destreza física de Carlos estava ainda muito comprometida. E foi um momento dramático, pois “ele não conseguia mexer-se, sair da água, e ninguém sabia nadar bem… Felizmente deu uma pancada com o pé na beira da piscina e começou a nadar, e conseguiu sair, com a nossa ajuda”.
Os amigos foram “fundamentais”, reconhece Maria José, quando olha para todo o processo. Ainda hoje são, na verdade, já que os filhos e netos moram longe.
Sofia Lacerda
"Vim de Viseu de propósito para o ir buscar à UCCI e almoçar com ele”
Na pacata cidade de Seia moram agora muitos dos que, na juventude, rumaram para cidades grandes. É o caso de Sofia Lacerda, que embora se divida ainda entre a cidade e a serra (trabalhou e viveu em Lisboa a maior parte da vida), é ali, na terra do marido, Alberto Toscano Pessoa, que passa a maioria do tempo.
Conheceu Carlos Teófilo no início da década de 2000, através do marido, que era amigo de infância e juventude. O casal tem uma casa com um enorme jardim (que chegou a estar aberto ao público), muitas vezes palco de festas e convívios, e Carlos Teófilo era presença habitual. Quando o amigo sofreu o AVC, já Sofia sabia bem o que era a doença: o marido foi acometido de dois episódios semelhantes, sendo que a recuperação tem sido muito mais difícil.
“Como eu já tinha essa experiência em casa, foi-me talvez mais fácil perceber o que se estava a passar. Mas a verdade é que o Carlos, graças à sua boa disposição, e à sua força de vontade, conseguiu recuperar de forma espantosa”, conta Sofia. Nos meses que se seguiram ao internamento de Carlos esteve sempre muito presente. Fazia parte de um grupo de WhatsApp denominado “Governo-sol”, composto para “governar” a vida à volta dele. Sofia recorda como mais marcante o dia em que conseguiu arranjar quem cuidasse do marido (habitualmente é ela a cuidadora) para poder “ir até Viseu, passear um pouco, ter um dia só para mim”. Estava ela na cidade quando recebeu um telefonema do amigo Carlos. “Como eu ia muitas vezes buscá-lo à UCCI para irmos almoçar fora, naquele dia ele lembrou-se e ligou-me. Eu lá lhe disse que estava em Viseu, ainda longe, e por isso era melhor ligar a outra pessoa. Só que do outro lado ele responde-me: ‘Não faz mal, eu espero. Tenho tempo!’, e percebi que o melhor era ir ter com ele. E fui. Pelos amigos fazemos tudo”.
Sofia Lacerda visitava-o amiúde, tal como outras pessoas. “O pessoal habituou-se de tal maneira a haver sempre alguém que o fosse buscar para almoçar que muitas vezes, mal me viam entrar, perguntavam ‘vem buscar o Dr. Carlos Teófilo?’, e eu: ‘Não, não, venho só visitá-lo.” Os amigos riem-se ainda hoje da cara de espanto de toda a equipa de enfermagem, médica ou auxiliar que nunca se confrontara com um paciente assim.
Duarte Mendes
“Eu tinha de levar alguma normalidade à vida do Carlos durante o internamento”
Duarte Mendes não canta nem foi capitão de abril como o seu homónimo, mas tem o dom da conversa. A amizade com Carlos Teófilo começou há mais de uma década, à mesa do Tertúlia Bar, um dos espaços mais icónicos da cidade. Por ali deixaram muitas horas de conversa, por vezes até raiar o dia. São muitas as afinidades, os temas que os ligam, desde a música ao cinema, passando pelos relatos do quotidiano. Quando Carlos sofreu o AVC, Duarte foi uma peça importante na sua recuperação. De resto, é comum ouvir o amigo dizer que “também deve parte da recuperação ao Tertúlia”.
Fazia parte do grupo de amigos próximos que resgatavam Carlos para almoçar fora da UCCI, almoços que depois se prolongavam à mesa do bar, mesmo quando ele ainda se deslocava em cadeira de rodas. “Percebi que tinha de levar alguma normalidade à vida do Carlos durante aquele período do internamento.”
“Tentávamos recriar a normalidade anterior, indo aos mesmos lugares onde era hábito convivermos. No fim de contas, eu fazia-lhe companhia como ele me fazia companhia a mim (porque também tenho os meus problemas) e com isso por instantes quase nos esquecíamos do que lhe acontecera”, sublinha Duarte, numa tarde de outono, no jardim da casa do amigo. Quando Carlos voltou para casa, continuou a assegurar as mesmas tardes de conversa, mas agora ainda com maior naturalidade.
Filipa Campos
"Foi um problema para conciliar horários, no meio de toda a agitação da vida social do Carlos”
Filipa Campos nunca tinha visto Carlos Teófilo antes de o ver entrar no seu gabinete para os primeiros tratamentos de fisioterapia, na UCCI. Natural de Oliveira do Hospital, a fisioterapeuta percebeu logo “que ele era famosíssimo, toda a gente o conhecia”. Além de advogado de muitas famílias, também foi professor de várias gerações, na escola secundária local.
“Como não o conhecia, não sabia que a vida social dele era aquela agitação toda. E então, ao início foi um problema para conseguirmos conciliar os horários da fisioterapia”, recorda Filipa. Lembra-se bem de quando ia à sua procura “e ele tinha saído com amigos”.
A fisioterapeuta acabou por se adaptar ao paciente mais peculiar que algum dia encontrou, trocando horários, encontrando uma forma de se encaixar na tal vida social intensa, que nunca parou, nem quando estava internado. E mesmo sendo certo que nem tudo correu bem durante aquele período na UCCI, Filipa não teve dificuldades em acertar agulhas com Carlos Teófilo.
“Tinha uma força de vontade enorme, e muitas vezes até era ele que tentava ‘forçar’ um bocadinho mais nos exercícios – e eu acabava por ter que refrear esses intentos”, recorda Filipa. Carlos demorou algum tempo a conseguir equilibrar-se, mesmo sentado, sem cair para o lado direito. Quando conseguiu, foi num ápice que deixou a cadeira de rodas e passou para o andarilho.
No ano seguinte, em 2024, Filipa Campos passou para a valência de clínica, e voltou a encontrar Carlos Teófilo. Ainda hoje mantêm as sessões de fisioterapia, todas as semanas. “O Carlos é um doente que sabe aproveitar a vida e desfrutar disso, mesmo com o AVC”, sustenta. Não mais se esquecerá do dia em que anunciou, qual boa-nova, que na semana seguinte começariam a treinar “andar de canadianas”. Carlos não esperou por ela. Na semana seguinte apareceu pelo seu próprio pé, com as canadianas.
Fernando Silva
“Doente cardíaco, tem diabetes, já teve uma pneumonia… mas como encara as coisas com uma boa disposição impressionante, isso facilita tudo”
Fernando Silva estava de serviço à Via Verde AVC no Hospital da Universidade de Coimbra (atualmente polo da Unidade Local de Saúde de Coimbra) quando Carlos Teófilo deu entrada no serviço de Neurologia Geral. Lembra-se bem de como a equipa tentou ainda fazer “o procedimento habitual para reverter o trombo”, mas já tinham passado muitas horas entre os primeiros sintomas, a ida para o Hospital de Seia, depois da Guarda, e os exames no antigo Centro Hospitalar Universitário de Coimbra.
“Recordo-me que o propus para terapêutica vascular. Mas no caso dele já tinha passado mais de 24 horas, e acabamos por levá-lo para a sala de angiografia. Aí fizemos um cateterismo para tentar absorver uma artéria que ele tinha fechada no cérebro. Depois tive a oportunidade de o acompanhar durante o longo internamento de cerca de dois meses”, recorda o neurologista.
Desde então, continuou sempre a acompanhar este doente. Até hoje.
“O sr. Carlos é um bom doente, a quem acontece muita coisa… Já teve muitas complicações depois do AVC, porque também é doente cardíaco, também tem diabetes, já teve uma pneumonia muito severa, mas como encara as coisas com uma boa disposição impressionante, isso facilita tudo”, reconhece o médico.
Ao cabo de duas décadas a acompanhar doentes desta área cérebro-cardiovascular, Fernando Silva não tem dúvidas de que “esta boa recuperação do Carlos Teófilo se deve muito ao estado de espírito”. “Normalmente é ao contrário, as pessoas ficam até um bocado deprimidas, mesmo sem lesão nenhuma”, sublinha. No caso deste doente, o espírito positivo terá contribuído decididamente para minorar as sequelas físicas que ficaram. Não apenas alguma falta de equilíbrio, como também a diplopia – ver as coisas em imagem dupla. “Além disso ele ainda teve durante muito tempo um outro efeito, que é um soluço ininterrupto. Mas até com isso ele brincava”, enfatiza.
As consultas são agora mais espaçadas, mas médico e doente mantêm-se em contacto telefónico direto, até porque “é preciso continuar a fazer um controlo apertado dos fatores de risco que ele tem”, afirma o neurologista, que não descura “uma vigilância apertada, mantendo-o debaixo de olho”.
Catarina Furtado
“Criei um grupo para juntar a rede de contactos do meu pai”
Os três filhos de Carlos Teófilo moram entre o Porto e a Póvoa de Varzim. Catarina (à esquerda do pai, na imagem), a mais velha, “e a mais racional” herdou do pai o gosto pelo Direito. É juíza em Lousada, divide com a irmã Joana o acompanhamento do pai às consultas das várias especialidades em diversos hospitais. Não conseguiram estar em Seia no dia em que fizemos esta reportagem, mas mantêm-se em permanente contacto com os pais. No conjunto, há ainda seis netos, e mais um a caminho, filho do irmão mais novo, todos presentes na fotografia de família tirada num dos últimos encontros em casa dos pais.
Catarina herdou o recato da mãe, mas habituou-se desde pequena a acompanhar o pai nessa intensa vida social e cultural. “Nem sequer pus em causa que ele não ficasse bem, embora com algum receio. Uma neurologista que conheço explicou-me, passados poucos dias, o que tinha acontecido. E foi aí que eu percebi a gravidade”, conta ao Observador. “O meu pai andava sempre a mil”, recorda, agora que sabe mais sobre as causas do AVC.
Manteve-se sempre em contacto com a equipa médica e de enfermagem do hospital, e logo ao início criou, no WhatsApp, um grupo intitulado “notícias do Carlos Teófilo”, que tem mais de cem contactos. “Ele até de olhos fechados fazia piadas”, recorda. “Apesar de tudo, do AVC, depois da pneumonia, de todas as mazelas, tenho que deixar o meu pai viver a vida como ele é. Foi esta forma de ser que o fez superar tudo.”
Carlos Teófilo
“Mentalizei-me que tinha mesmo de me recuperar, para ter a minha autonomia de volta”
Os óculos vermelhos, a t-shirt de Miles Davis, as sapatilhas coloridas. Tudo em Carlos Teófilo Morais Furtado de Oliveira apela à irreverência, não obstante os 74 anos, ou qualquer mazela que o AVC lhe tenha deixado. “Tenho 74 anos mas não pratico”, começa por avisar, com um sentido de humor tão apurado que quase nos esquecemos de como é dramático viver com os efeitos de veias que entopem o cérebro.
Foi advogado e professor e, nas horas vagas, sempre se dedicou à comunidade, à intervenção cívica e associativa. Há dias, esteve atarefado com a organização do CineEco — Festival Internacional de Cinema Ambiental da Serra da Estrela, que se realizou entre 10 e 18 de outubro.
No dia 26 de janeiro de 2023 acordou às seis da manhã para ir nadar. Mal se levantou, sentiu que se desequilibrava. Voltou a deitar-se e a dormir mais um pouco mas, quando acordou de novo, mantinha-se o sintoma. Percorreu então a odisseia entre hospitais relatada pela mulher. Na Guarda, chegou a dizer à médica que “de certeza tinha tido um AVC”. Ela ignorou-o. Mas depois voltou atrás e perguntou-lhe por que dizia isso. “Porque eu toda a vida fui de esquerda, e agora caio para a direita.”
Quando finalmente chegou ao Hospital da Universidade de Coimbra era já de noite. Tinham passado mais de 12 horas desde os primeiros sintomas, inviabilizando o sucesso da reversão do trombo — que deve acontecer nas primeiras horas. Feito o diagnóstico correto, Carlos Teófilo ficou alguns dias nos cuidados intensivos, depois no internamento. “Fiz muita fisioterapia, depois natação — e na tacinha, porque nunca deixei de beber o meu copo de vinho”, sublinha. De resto, explica sempre a toda a gente que é portador do “kit Teófilo: queijo, pão e vinho do Dão”. Mas deixou de fumar, faz hoje um controlo da diabetes que não fazia e, mesmo com os excessos que o caracterizam, tem algum cuidado.
A convalescença na UCCI foi o que mais lhe custou, “por causa das regras”. “Aquilo havia horas para tudo, não pode fazer isto, temos de fazer aquilo. Ora, eu só estive preso uma vez, antes do 25 de Abril, não podia sentir-me preso novamente”, relata. “Eu estava lá para fazer fisioterapia, mas estava com os velhinhos todos. Como se fosse um Lar”, acrescenta, ele que passou a receber as visitas dos amigos “na capela, entre anedotas ‘picantes’”. Na verdade, demorou-se lá pouco mais de um mês. Reconhece a importância da fisioterapia — que continua a fazer — mas aponta o dedo “às regras, sobretudo para pessoas que estão lúcidas, como era o meu caso”.
“Estive sempre bem-disposto, nunca me senti deprimido. Nunca fui dado a isso, e mentalizei-me que tinha mesmo de me recuperar, para ter a minha autonomia de volta.” Na Santa Casa da Misericórdia ainda hoje se lembram do feito inédito: Carlos chegou em março, dois dias antes do Dia Internacinoal da Mulher. “Perguntaram-me se queria fazer umas flores, tipo trabalhos manuais. E fiquei escandalizado. Ora eu, que toda a vida comprei flores para oferecer, encomendei flores de verdade na florista. Eram túlipas, para dar às 42 mulheres que ali trabalham.”
Carlos Teófilo continua a apreciar nas pequenas coisas a beleza da vida. A casa da quinta onde mora é sempre uma porta aberta para os amigos. No escritório amontoam-se livros e discos a perder de vista, pósteres de cinema, e retalhos da (sua) vida, como ela é.