O meu filho tem 34 anos. É engenheiro informático, mestre em computação móvel, trabalha, contribui ativamente para a sociedade tentando construir a sua própria carreira contributiva, e vive com distrofia muscular de Duchenne, uma doença genética, rara, progressiva e incapacitante que afeta os músculos e, inevitavelmente, a autonomia. Desde o diagnóstico, ainda na infância, a nossa vida passou a ser uma travessia entre a ciência, a esperança e a dor.
A distrofia muscular de Duchenne é causada por uma mutação no gene da distrofina, essencial para a integridade muscular. Sem ela, todos os músculos degeneram, comprometendo a mobilidade, a respiração e o coração. Embora não haja cura, os avanços terapêuticos — como o uso de corticosteroides, programas de reabilitação e as mais recentes terapias genéticas ainda em fase de ensaios clínicos — têm permitido melhorar a qualidade de vida e prolongar a esperança de vida destes doentes.
Mas a dor crónica, quando se instala, é um inimigo invisível. Não se vê, não se mede facilmente, não se compreende por quem nunca a viveu. É uma dor persistente, silenciosa e imposta a quem passa cerca de 14 horas por dia, durante os 365 dias do ano, sentado numa cadeira de rodas elétrica — mesmo que esta seja selecionada entre as mais adequadas e confortáveis do mercado — que se instala nos músculos, nas articulações, na postura, mas também na alma.
Apesar de tudo, ele não se queixa. Não dramatiza. Sofre em silêncio. Aprendeu a conviver com ela, a escondê-la, a não a deixar definir quem ele é. Mas eu vejo. Vejo nos olhos dele, nos gestos dele, na forma como ajusta o corpo na cadeira, como evita certos movimentos, como respira fundo antes de continuar. E é aí que o meu papel de cuidador se torna mais do que físico — torna-se emocional, psicológico, quase espiritual. Porque sofro com ele.
A dor crónica em doenças neuromusculares é muitas vezes subestimada, apesar de afetar profundamente a funcionalidade e a qualidade de vida. Pode ser nociceptiva [decorre da lesão da maior parte dos tecidos, como músculos, tendões e ossos, etc], neuropática [lesão do sistema nervoso, periférico ou central] ou mista [lesão quando há as duas componentes, nocicepiva e neuropática], e exige uma abordagem multidisciplinar que inclua fisioterapia, apoio psicológico e, quando necessário, a medicação mais adequada e a mais especializada que esteja disponível.
Ser cuidador é viver entre o pragmatismo e a emoção. É antecipar o futuro, planear as adaptações da casa, os horários e rever todos os planos já idealizados. É aprender sobre genética, legislação, fisioterapia, nutrição. É estar presente, mesmo quando o outro, tenta esconder a dor. É lutar para que ele continue a trabalhar, a criar, a sonhar — apesar das limitações físicas e da exaustão invisível.
Em Portugal existem alguns apoios sociais e laborais para pessoas com deficiência e para os seus cuidadores. A Prestação Social para a Inclusão (PSI), o Subsídio por Assistência de Terceira Pessoa, os produtos de apoio atribuídos pelo Sistema de Atribuição de Produtos de Apoio (SAPA) e a possibilidade de aceder à pensão de invalidez são alguns mecanismos disponíveis. Mas a burocracia, a falta de informação e a lentidão dos processos tornam o acesso a esses direitos um verdadeiro obstáculo. É, por isso, urgente simplificar e humanizar o sistema.
Este texto é um apelo. Um apelo à empatia, à escuta, à ação. A dor crónica não pode continuar a ser ignorada. A distrofia muscular de Duchenne, tal como muitas outras doenças raras e complexas, não podem ser apenas algumas notas de rodapé nas políticas de saúde. Os doentes e os seus cuidadores precisam de ser ouvidos, respeitados e apoiados. Precisam de condições para viver com dignidade, não apenas sobreviver.
As colunas de alguns jornais, ou outros meios de comunicação escrita, televisiva ou digital, têm sido um espaço de liberdade e de pluralidade, onde vozes menos conhecidas podem partilhar experiências e opiniões. É nesse espírito que escrevo estas palavras. Não sou médico, nem investigador. Sou pai. Sou cuidador. Sou alguém que todos os dias vê a força de um homem a enfraquecer, mas que, apesar da dor, escolhe viver com coragem.
Liderar uma organização nacional como a APN – Associação Portuguesa de Neuromusculares, que defende estes doentes e as suas famílias, as suas lutas e os seus anseios, é uma motivação adicional para encontrar a força que eles não têm. Através das redes que a tecnologia foi colocando à nossa disposição, fomos crescendo e procurando informar. A todos aqueles que já nos conhecem há mais de trinta anos e aos que se foram juntando a nós, porque sofrem dos mesmos problemas, dos mesmos anseios e porque sentem as mesmas dores, fomos implementando serviços que procuram minimizar o desgaste e o sofrimento de quem cuida todos os dias do ano, como eu, aliviando-lhes momentaneamente a dor física e a saturação mental.
E isto consegue-se através da resposta social que substitui o cuidador por um assistente pessoal durante algumas horas do dia, permitindo-lhes algum descanso. Simultaneamente, prestamos serviços de acompanhamento direto ao doente como apoio psicológico, terapia ocupacional, apoio social, terapias domiciliárias, entre muitas outras.
E enquanto houver força, continuaremos. Com esperança. Com amor. Com a certeza de que cada gesto conta. Que cada palavra pode mudar consciências. Que cada vida merece ser vivida com dignidade.
Joaquim Brites é eletrotécnico e gestor de profissão e de formação. É diplomado por várias business school na área das Relações Interpessoais e Liderança de equipas.
Tem dois filhos, um deles portador de uma distrofia muscular de Duchenne. Membro da APN — Associação Portuguesa de Neuromusculares e presidente da instituição desde 2012, é um dos cronistas convidadas da secção Dor, dedicada exclusivamente a temas relacionados com a dor, respetivo acompanhamento clínico e impacto na sociedade.