(c) 2023 am|dev

(A) :: "Não tratamos a dor das pessoas, tratamos de pessoas com dor"

"Não tratamos a dor das pessoas, tratamos de pessoas com dor"

Mais de vinte anos a cuidar de doentes com dor crónica ensinaram a enfermeira Carina Raposo que cada pessoa é muito mais do que o seu sofrimento.

Sofia Teixeira
text
Igor Martins
photography

Este artigo faz parte da série “O que eu aprendi com a dor dos outros”, um conjunto de reportagens escritas por um jornalista a partir de entrevistas com profissionais de saúde que acompanham doentes com dor crónica.

“Que vida é a desta pessoa para além da dor? Quem é esta pessoa para além da dor que tem?”

Esta foi uma das coisas que os meus doentes me ensinaram: que é importante ouvir a história de vida deles. Olhar para cada um, não só como um paciente com dor, mas como uma pessoa que tem uma vida para além disso. As dores das pessoas e a forma de as aliviar têm de ser enquadradas num contexto, o clínico e o da vida daquela pessoa.

No início da minha carreira, em 1998, trabalhei em cuidados intensivos e intermédios pós-cirúrgicos. É um serviço onde a dor aparece com hora marcada. Quando somos operados, todos sabemos que pode doer um pouco, pelo menos no sítio da intervenção. Mas, sendo uma dor aguda, que surge como resposta direta à cirurgia, também sabemos que há medicamentos capazes de a controlar e é esperado que passe com o tempo.

Foi nessa altura que me inscrevi numa pós-graduação em Anestesiologia para Enfermeiros. Os professores podem marcar o nosso caminho e foi isso que aconteceu comigo numa das aulas sobre dor. O professor José Manuel Romão despertou o meu interesse pela dor crónica e veio a ser o meu “big boss da dor” durante décadas, já que foi, até há poucos meses, responsável pela Unidade de Dor do Hospital de Santo António, no Porto, onde trabalho há mais de vinte anos.

É aqui que tenho aprendido a intervir na dor do ponto de vista “biopsicossocial”: como algo que não acontece só no corpo, a nível físico, mas que tem também uma componente psicológica e social que é necessário cuidar.

Nesta unidade temos doentes com muitos tipos de dor crónica, ou seja, dor que persiste por mais de três meses e que é uma condição de saúde em si, não apenas um sintoma. A dor destas pessoas não é “apenas” um sinal de alguma coisa. Não é “apenas” um alerta. Estes pacientes acordam com dor, vivem com dor, deitam-se com dor. É uma parte da vida deles. O meu papel e de toda a equipa é atenuar esse sofrimento.

Há pessoas com dor crónica pós-cirúrgica (que foram, por exemplo, operadas à coluna, mas cuja dor permanece depois da cirurgia), doentes com patologia musculoesquelética degenerativa (como as artroses), sobreviventes de cancro com neuropatias induzidas pela quimioterapia, pessoas com dor crónica pélvica ou com doenças auto-imunes, como espondilite artrite reumatoide, que conheço tão bem no meu próprio corpo.

“Não curamos, mas aliviamos a dor e o sofrimento”

Alguns doentes, quando chegam, têm a expectativa que lhes vamos tirar a dor. Isso é um mito que, com cuidado, temos de desmontar e que implica humildade profissional. Não nos posicionamos como uma espécie de super-heróis que curam os doentes, porque a dor crónica não se cura, como acontece com uma pneumonia.

Isso não quer dizer que o trabalho seja inglório. Não curamos, mas não tenho dúvidas que aliviamos, tanto a dor, como o sofrimento. E é bonito poder fazer isso.

"A dor destas pessoas não é 'apenas" um sinal de alguma coisa. Não é 'apenas' um alerta. Elas acordam com dor, vivem com dor, deitam-se com dor. É uma parte da vida delas. O meu papel é atenuar esse sofrimento"

É gratificante ver entrar a Maria, com uma dor crónica pós-cirurgia, depois de a encontrarmos tão em baixo quando chegou pela primeira vez. Hoje vem contente, foi ao cabeleireiro, sente-se bonita e tem uma expressão tranquila. Ouvir a Inês, que passava as noites em claro com dor induzida pela quimioterapia, a dizer que agora já consegue dormir. Atender o telefone à Madalena, que não saía de casa por causa da artrite reumatoide, e agora liga para contar que foi a um concerto. Ver chegar o Sr. Cruz, que tem dor na coluna, mais entusiasmado, e decidiu ir a pé a Fátima. Receber a Dona Idalina que, apesar das artroses, recomeçou a fazer croché e traz-me um presente feito por ela.

São ganhos pequenos? São. Mas são muito importantes. Porque, em dor crónica, não nos podemos focar só na intensidade. Uma das coisas mais importantes é a funcionalidade da pessoa, ou seja: o que é que aquela pessoa faz que não era capaz de fazer antes? Quando os doentes conseguem voltar a fazer coisas que não faziam antes isso é uma grande vitória. Para eles e para nós.

Os doentes são referenciados à nossa unidade por outros médicos. A primeira consulta é sempre realizada por um dos nossos anestesiologistas e, depois, podem ser encaminhados para outras especialidades da nossa unidade, como medicina física e reabilitação, neurologia, psiquiatria, psicologia ou enfermagem.

O meu trabalho como enfermeira passa por executar alguns tratamentos para a dor, como a estimulação elétrica transcutânea (TENS) ou a estimulação percutânea do nervo Tibial (PTNS), duas técnicas que consistem em administrar pequenos estímulos elétricos para ajudar a aliviar a dor, ou tratamento com capsaícina, um medicamento com efeito analgésico que se aplica na pele.

"Quando o médico prescreve um remédio — eu sei que 'remédio' é um nome pouco científico, mas é assim que muitos doentes dizem e eu faço o mesmo — sabemos que pode haver alguns efeitos secundários. Então, telefono ao doente quatro ou cinco dias depois, para fazer esse seguimento, para ver como a pessoa está e fazer a ponte com o médico, caso seja necessário algum ajuste."

Um dos objetivos das consultas de enfermagem é melhorar a gestão do regime medicamentoso, ou seja, dar competências sobre a utilização correta, segura e eficaz dos medicamentos. Mas também faço muitas consultas telefónicas, seja porque as pessoas precisam de esclarecer dúvidas, seja para fazer controlo dos sintomas e melhorar a adesão ao tratamento, isto é, para garantir que seja cumprido de forma adequada. Um dos maiores desafios em dor crónica é garantir que os doentes não deixam de tomar os medicamentos.

As consultas telefónicas de enfermagem são muito importantes. Quando o médico prescreve um remédio — eu sei que “remédio” é um nome pouco científico, mas é assim que muitos doentes dizem e eu faço o mesmo — sabemos que pode haver alguns efeitos secundários. Então, telefono passados quatro ou cinco dias, para fazer esse seguimento, para ver como a pessoa está e fazer a ponte com o médico, caso seja necessário algum ajuste. Caso contrário, se o doente chega daí a dois meses a dizer: “Parei os medicamentos na primeira semana”, a consulta serviu para muito pouco e foram dois meses perdidos.

“A principal arma terapêutica é a escuta ativa e a relação”

Sou extremamente exigente comigo própria. Não por querer ser a melhor e ganhar uma medalha, mas porque quero dar o meu melhor aos outros. Mas ofereço essa gentileza de “não exigência” aos meus doentes. E, de certa forma, depois de tantos anos, acho que também tenho aprendido a fazer isso comigo. É uma coisa que o trabalho e os doentes me têm ensinado: tentar ser gentil comigo, como sou com eles.

É também por isso que não consigo parar de ler e de estudar. Além da especialidade em Enfermagem de Reabilitação e das pós-graduações em Anestesia e em Gestão e Administração Hospitalar, fiz um curso de autogestão em dor na Universidade de Stanford (EUA), uma formação em terapia cognitivo-comportamental na Sorbonne (Paris) ou um curso de Mindfulness na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. E faço parte da direção da Associação Portuguesa para o Estudo da Dor e do comité executivo da SIP Portugal.

Acho que devo conhecer e dominar várias estratégias e várias abordagens para aconselhar o melhor possível cada pessoa. E não posso falar ou sugerir alguma coisa que não estudei. Como costumo dizer, não posso ensinar a receita de um bolo se não pus a mão na massa.

Mas mais do que técnicas, aprendi que a principal arma terapêutica é a escuta ativa e a relação. Às vezes, uma médica da equipa, a Dra. Ana Margarida Regalado, brinca e diz: “E dê-lhe também uma injeção de Carina.” Porque o nosso papel é esse: ajudar as pessoas a lidar com a dor, dando ferramentas para que possam viver melhor o dia a dia, mesmo que a dor não desapareça. É a relação. Lidamos todos os dias com dor crónica, que pode levar ao sofrimento, e é essencial uma grande dose de humanidade, de relação, de empatia.

Porque nós não tratamos a dor das pessoas, tratamos de pessoas com dor. O que fazemos é ajudá-las a lidar com a sua dor — que, provavelmente, não vai desaparecer completamente. Isso pode ser feito com medicamentos, técnicas invasivas e tratamentos prescritos pelos médicos, mas também com educação em dor, que ajuda a desconstruir os medos, os mitos, a entender os significados, a diminuir a hipervigilância, a catastrofização e a fazer uma coisa importantíssima que é o self-management, ou seja, a autogestão da dor e a consciencialização.

Isto é muito relevante porque a pessoa vive em casa, não vive connosco na consulta. Não é como num internamento, em que o doente toca a campainha e a enfermeira vai lá. A pessoa tem de se munir de ferramentas cognitivas e comportamentais para aprender a lidar e gerir a sua dor no quotidiano. O nosso papel é ensiná-la a fazer isso.

“‘Isso é normal.’ Nunca mais na vida disse esta frase”

Adoro o que faço e sinto uma gratidão enorme por todos os que me ensinaram — a minha equipa, professores e formadores, claro, mas também os doentes. Porque não é só nos cursos e nos livros que se aprende. Aprende-se a escutar. A estar presente. Os livros falam muito sobre dor. Mas a verdade é que nós não tratamos “a dor” em abstrato. Nós ajudamos alguém a lidar com a sua dor. Com aquela dor, que é única e só daquela pessoa.

E nunca deixamos de aprender. Nunca. Se tivermos disponibilidade para isso, e devemos ter, temos a oportunidade de aprender a cada momento, com cada pessoa. Com os sucessos e com os erros. Não me esqueço de uma consulta, há muitos anos, em que um doente estava a fazer queixas sobre a sua dor e eu, por estar mais impaciente, respondi: “Sim, isso é normal.” Mal o disse, percebi que tinha feito um disparate. O doente respondeu-me: “Pois, é normal para si, Carina, para mim não é.” Nunca mais disse isso. Nunca mais na minha vida disse a frase “Isso é normal”. Porque percebi que, por causa da minha pressa, tive uma tremenda falta de sensibilidade. Se alguém nos procura, temos de mostrar disponibilidade e empatia. Eu chamo-lhe saúde sem pressas.

Todos temos medo da dor. Eu lembro-me que, em criança, tinha receio de ir ao dentista, com medo de doer, apesar de não ter recordação nenhuma de sentir dor. Mais tarde, durante a gravidez da minha primeira filha, recordo-me de temer as dores de parto e tive de fazer muito trabalho para perder esse receio: vi centenas de vídeos de partos para minimizar esse medo. Depois acabou por correr tudo bem.

Tenho uma doença auto-imune, uma artrite reumatoide. E, como costumo dizer: “Não vou morrer disto, mas vou morrer com isto.” Também tive de fazer o luto da rapariga saudável que era antes. Tento não catastrofizar, mantenho-me ativa, aprendi a gerir a minha medicação e a lidar com a minha dor. Hoje faço comigo tudo aquilo que ensino aos meus doentes.