Sou fisioterapeuta e comecei a ouvir falar de dor crónica sem nunca lhe dar o devido valor. Para mim, como ex-ginasta de alta-competição, a dor sempre fez parte do dia a dia, pela intensidade dos treinos e por lesões ocasionais.
Apesar disto, de ser profissional de saúde e ter convivido com a dor, nada me preparou para a realidade de, aos 20 anos, sentir na pele o que é viver com doenças que levam a dor, dor a sério. Repito: nada me preparou para o sentir na pele. Nada me preparou para acordar com cada vez mais dificuldade em movimentar as mãos e a cervical; para não ser capaz de realizar tarefas básicas, como vestir umas calças ou preparar o pequeno-almoço; para a etiqueta de “pessoa com dor crónica” para o resto da vida, estando ainda a começar a viver.
Aos 20 anos, em preparação para um Campeonato do Mundo de Ginástica de Trampolim, comecei a ter dor muito intensa na cervical (pescoço) e cada vez mais dificuldade em rodar a cabeça para os lados. Seguiram-se os sintomas nas mãos, muita dor e rigidez, como se estivessem presas. Associei tudo aos treinos, claro, sem nunca me passar pela cabeça algo mais sério. Campeonato do Mundo cumprido, seguiram-se consultas e exames que levaram ao diagnóstico de artrite reumatoide e doença de Sjögren. Lembro-me pouco desta altura, a minha mãe diz que chorei.
“Porquê a mim?” deve ser sido o que me perguntei. E ainda pergunto. Acredito que todos os que sofrem com alguma doença perguntem o mesmo. Porquê a mim, que sempre fui saudável, é que me calham estes diagnósticos, estas limitações, esta mudança radical de vida? Passei de ser a Mariana ginasta para a Mariana que anda com caixinhas de comprimidos e injeções atrás.
É que a dor é invisível. É invisível aos olhos da maioria, mas muito visível aos olhos de quem acompanha diariamente. A dor tira-nos competências — deixei de conseguir fazer o pino, executar algumas técnicas dentro da fisioterapia, exercer a minha profissão várias horas de seguida, tarefas básicas como descascar uma laranja sem truques.
A dor rouba-nos tempo: algumas atividades tornam-se morosas — antes demoravam um minuto e agora dez. A dor é cansativa: cansa-nos o corpo, cansa-nos a mente. Tolda-nos o raciocínio e traz as emoções à tona, deixa que nos dominem. A dor suga-nos a energia, porque quase inevitavelmente perturba-nos o sono, impedindo o descanso, a “regeneração”, a limpeza do organismo.
Chega a uma altura em que a dor já faz parte de mim e aceito que me vai acompanhar para sempre. Nesses dias convivemos como amigas, coexistimos, ela sempre a lembrar-me que existe, mas a falar baixinho comigo. O problema são os outros dias… nos outros dias, ela grita. Claro que, tendo uns anos disto, já tenho algumas estratégias que me ajudam a silenciá-la, como garantir que durmo horas suficientes, exercício físico regular, talas quando necessário, gelo… mas não são infalíveis. E nesses dias, é difícil (con)viver, trabalhar, dormir, cozinhar, fazer exercício físico, pensar. Em suma, é difícil existir. Sou fisioterapeuta, não consigo controlar (as minhas próprias) dores e isso é frustrante.
No entanto, ninguém vê, e quando não se vê não se compreende. Além disso, não é expectável uma pessoa de, agora, 27 anos, ter dor crónica. Por que é que alguém compreenderia um cancelamento à última hora por dor e fadiga? Quem é que compreenderia a exaustão por ter acordado devido à dor, sem voltar a adormecer? Uma falta ao trabalho por incapacidade funcional numa pessoa tão nova e ativa?
A dor mudou a minha vida em várias direções diferentes. Por um lado, para pior, muito pior, por todas as condicionantes. Por outro, estava decidida a não me ficar com este lado negativo do diagnóstico de doenças crónicas. Não sei se acredito muito no destino, “tudo acontece por uma razão”, e acho que gosto mais de pensar que nós é que construímos o tal destino.
Por esse motivo, pouco tempo depois de ter sido diagnosticada, procurei associações de doentes e outras pessoas com quem partilhar estas experiências. Uma coisa levou a outra e, resumindo sete anos a navegar no mundo da reumatologia, fiz um mestrado em Fisioterapia em Condições Músculo-esqueléticas (onde entram as doenças reumáticas e dor crónica), juntei-me à Liga Portuguesa Contra as Doenças Reumáticas e à EULAR (Aliança Europeia de Associações de Reumatologia), envolvi-me na investigação e comecei a ir aos congressos europeus falar sobre a minha experiência e apresentar trabalhos e comecei a dar aulas na faculdade sobre estas doenças.
Além disto, criei a página do Instagram “Brigada do Reumático” que, através de uma bolsa que ganhei, já me permitiu organizar várias atividades. Organizei um evento mais formal onde vários profissionais de saúde expuseram temas relevantes, participámos numa caminhada em grupo, e juntámo-nos num piquenique informal de onde surgiram novas amizades e que permitiu a partilha das histórias relacionadas com as doenças de cada um. A bolsa também me permitiu desenvolver um pequeno livro com temas relevantes e baseados em evidência científica, claro, porque o objetivo é fornecer informação fidedigna.
Mesmo nos dias maus, tento pensar que, se não fossem as doenças e a dor, nunca teria escolhido o caminho que me levou até onde estou. E que caminho! Tantas aprendizagens, pessoas fantásticas, oportunidades incríveis e experiências memoráveis.
Mariana Carvalho é fisioterapeuta desde 2020, com mestrado em Fisioterapia em Condições músculo-esqueléticas desde 2023. É também investigadora e paciente parceira (pessoas com doença que participam como investigadores, em vez de serem objetos de estudo) e professora assistente na Escola Superior de Saúde de Alcoitão (ESSAlcoitão). Diagnosticada com artrite reumatoide, é uma das cronistas convidadas da secção Dor, dedicada exclusivamente a temas relacionados com a dor, respetivo acompanhamento clínico e impacto na sociedade.