O voo da Trans World Airlines aterra em Lisboa a 3 de março de 1985, trinta minutos depois das 7 da manhã. A bordo seguem duas figuras bem conhecidas dos bastidores da política norte-americana: Lee Atwater e Paul Manafort, conselheiros políticos do Presidente Ronald Reagan. Rui Mateus, fundador do PS, responsável pelas relações internacionais do partido e um homem que um dia será riscado da história por Soares, é quem os recebe no aeroporto. O encontro entre aqueles homens foi organizado por outro velho amigo de Soares: o antigo embaixador Frank Carlucci. O socialista tinha-lhe pedido ajuda para a campanha e Carlucci prometeu o “melhor que o dinheiro podia comprar”. Não faltaria à palavra.
Os americanos são bons e custam mesmo muito dinheiro. Lee Atwater e Paul Manafort, que será, muitos anos mais tarde, o diretor da primeira campanha presidencial de Donald Trump, aterram em Portugal carregados de ideias e com o esboço de uma estratégia que permite a Soares, pelo menos, sonhar com a hipótese de vencer as presidenciais. O socialista fica eufórico e dá ordens para manter aqueles dois por perto. Mas o entusiasmo vai acabar por se desvanecer — ou, dependendo da versão dos acontecimentos, cedo se percebeu que não havia dinheiro para pagar àquela gente.
Até hoje, e apesar dos vários documentos e testemunhos escritos, a participação de Atwater e Manafort continua estar envolta em controvérsia e nunca se percebeu verdadeiramente que impacto tiveram os conselheiros de Reagan nesta campanha. Mas há um dado objetivo: na corrida presidencial de 1986, os hinos dos candidatos, o material de propaganda, e os tempos de antena (que tinham uma importância incomparavelmente superior à atual), de uma forma ou de outra, foram fruto da influência do melhor que se fazia lá fora — e não havia ninguém melhor do que os americanos a fazer da política uma festa.
As figuras nacionais mais influentes foram chamadas a participar e mediram forças neste combate simultaneamente político e criativo. Soares tinha António-Pedro Vasconcelos e Vasco Pulido Valente. Freitas contava com Proença de Carvalho, Thilo Krasmann e Nicolau Breyner. Zenha estava rodeado de figuras como Joaquim Letria, David Mourão-Ferreira ou o cineasta Fernando Lopes. Pintasilgo teve o apoio de Emídio Rangel e do maestro Pedro Osório. Eusébio, Chalana, Carlos Lopes e Hermínia Silva, entre outros, foram os grandes protagonistas dos tempos de antena.

A campanha de 1986 foi a primeira campanha verdadeiramente profissional a ser feita em Portugal. Os quatro protagonistas, sobretudo Mário Soares e Diogo Freitas do Amaral, rodearam-se do melhor que havia cá dentro e lá fora. Ainda que muito do que foi feito fosse, no mínimo, eticamente duvidoso pelos padrões de hoje — como as malas de dinheiro que financiaram as campanhas, por exemplo. Valia (quase) tudo para para tentar vencer aquela eleição.
Num país com apenas uma década de democracia, ainda a tentar sair de uma profunda crise, demasiado pobre, demasiado cinzento — a televisão a cores tinha pouco mais de cinco anos em Portugal —, o colorido que as candidaturas trouxeram a esta campanha também ajuda a explicar o porquê de serem consideradas as mais espetaculares de sempre. São sobre elas o novo Podcast Plus do Observador, “A Eleição Mais Louca de Sempre” — uma corrida feita de conspirações, de reviravoltas, de traições e de muito combate político.
A lodenmania e um casaco para a história da política nacional
Aquele sobretudo verde-acinzentado nem sequer deveria ter entrado na campanha. Portugal era um país maioritariamente de esquerda, com meio milhão de desempregados, a inflação na casa do 20% e milhares com salários em atraso. O candidato da direita — e logo aquele candidato e logo daquela direita — não devia usar aquele casaco. Era tudo menos recomendável.
Mas Freitas do Amaral não o largava. Tinha-o comprado numa loja em Cascais, no Outono, para substituir um sobretudo inglês que lhe tinham roubado. Viu uns quantos, mas achou graça àquele modelo de corte austríaco. Em bom rigor, feitas as contas, custou–lhe metade do preço do casaco sumido e era uma homenagem simpática a Salzburgo, refúgio para onde escapava com regularidade para passear com a mulher, Maria José, e fazer uma das coisas de que mais gostava: assistir a concertos de música clássica.
Ajudá-lo-ia certamente a enfrentar a campanha presidencial longa e rigorosa que tinha pela frente. E pouco importava que se arriscasse a ser chamado de classista ou coisa pior. Os homens da campanha contorceram-se. “O Loden prejudicou-nos um bocadinho, porque era uma visão um bocadinho elitista. E quando o professor Freitas apareceu de Loden, ficámos um bocadinho hesitantes. Mas era desagradável dizer ao senhor para despir o Loden”, confessa, 40 anos depois, Daniel Proença de Carvalho, diretor de campanha de Freitas do Amaral.

Naquele contexto, apresentar-se assim não era a ideia mais brilhante. E ter grupos de jovens a passear pelos cafés e associações recreativas do país suburbano, pobre e ressentido, esvoaçando Lodens verde-acinzentados iguais ao do candidato, também não ajudou a afastar os preconceitos que existiam sobre Freitas. Mas o que é certo é que metade do país foi tomado pela lodenmania.
[Há um novo candidato a Belém. Soares fica em choque com o anúncio do amigo que considera irmão. Freitas elege Zenha como principal adversário. A “Eleição Mais Louca de Sempre” é o novo Podcast Plus do Observador sobre as Presidenciais de 1986. Uma série narrada pelo ator Gonçalo Waddington, com banda sonora original de Samuel Úria. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E pode ouvir o primeiro episódio aqui.]
A metade que apoiava Freitas, naturalmente. Quem não tinha um, comprou um. E quem não pôde comprar, cobiçava-o. Usar um Loden era, por aqueles dias, um sinónimo de sofisticação e de modernidade. Isso e os “palhinhas”, inspirados nos chapéus típicos da Madeira que alguém decidiu levar para a campanha, e que se tornaram um sucesso. O sobretudo verde foi um acaso, uma daquelas coisas que ninguém consegue explicar, nem mesmo 40 anos depois. Mas que não haja equívocos: tudo na campanha de Freitas foi pensado ao pormenor.
A influência de Reagan
Nuno Cintra Torres é um homem com uma missão: quer aprender tudo com os melhores especialistas do mundo em campanhas políticas. E os melhores a fazer da política uma festa são, naturalmente, os americanos. No verão de 1985, Cintra Torres aterra em Washington e não desiste até conseguir um encontro com um veterano das campanhas de Richard Nixon e consultor político de Ronald Reagan: Roger Ailes. O mesmo que, dez anos depois daquele encontro com o português, fundou uma das cadeias de televisão mais influentes dos Estados Unidos e do mundo, a Fox News.
Cintra Torres tinha entrado na campanha de Freitas por intermédio de Daniel Proença de Carvalho, com quem trabalhara na RTP. Vai ser o grande responsável por pensar a imagem de Freitas em campanha e pelos valiosos tempos de antena — conseguirá o feito de ter Eusébio, num estádio, a marcar um golo e a dizer o slogan da campanha. Como confessa o autor do livro Televisão Política, tudo na campanha de Freitas foi pensado à imagem e semelhança de Ronald Reagan, a estrela de Hollywood que se tornou Presidente dos Estados Unidos.
“Era alguém que eu admirava muito e que aproveitei para conseguir autocolantes, bumper stickers, aquelas coisas que os americanos colam nos para-choques dos carros. E todo o grafismo da campanha de Freitas do Amaral foi inspirado na campanha de Ronald Reagan”, recorda. O americano tinha acabado de ser reconduzido no cargo à boleia de uma ideia poderosa, o renascimento da América, e é também isso que Freitas quer oferecer ao país: liberdade, otimismo, confiança e modernidade, sem crispação e sempre com espírito positivo.
Tudo devidamente condensado num slogan de apelo ao orgulho nacional, mas propositadamente despido de ideologia. Afinal, Freitas é um homem da direita mais conservadora num país sociologicamente de esquerda; sabe que não pode bipolarizar aquela corrida. A solução sai da cabeça de Daniel Proença de Carvalho, o homem-sombra do candidato. E assim nasce o “Prá Frente Portugal”. Só faltava um hino que pusesse os portugueses a cantar.
https://www.youtube.com/watch?v=diOfxEOqml8&list=RDdiOfxEOqml8&start_radio=1
O ano da solidariedade pop
Não podia ser de outra maneira. Quando chega às rádios portuguesas, a música criada por aquela verdadeira constelação de estrelas é um sucesso instantâneo. Toma de assalto as tabelas e não há português que não saiba cantar o “We Are the World”. Se lá fora os maiores artistas do planeta se mobilizam em nome do combate à fome em África, por cá, José Mário Branco, Sérgio Godinho, José Cid, Paulo de Carvalho e Rui Veloso dão um “Abraço a Moçambique”.
1985 é o ano da solidariedade pop. E é também esse o espírito que vai inspirar o hino de Freitas do Amaral. No Estoril, a casa de Daniel Proença de Carvalho, ele próprio um guitarra-baixo e amante de jazz, com espaço e instrumentos para uma pequena banda tocar e gravar, é o sítio perfeito para reunir pela primeira vez o núcleo duro da campanha de Freitas, por onde anda um tal de Paulo Portas, jovem a quem muitos vaticinam um futuro brilhante na política.
Reservam a tarde para ouvir o hino escrito pelo poeta e jornalista Torquato da Luz e composto por Rui Ressurreição, administrador da RTP, membro do quarteto de jazz de Proença de Carvalho e autor de alguns dos melhores jingles publicitários do país. A música terá arranjos do maestro alemão Thilo Krasmann, sócio de Nicolau Breyner, o génio musical por detrás do “Senhor Contente e Senhor Feliz”, já com três vitórias no Festival da Canção no currículo e acabadinho de produzir um estrondoso sucesso: Vila Faia, a primeira telenovela portuguesa.
A expectativa é enorme. À medida que Torquato da Luz vai dizendo onde entram as palavras, Ressurreição, sentado ao piano, trauteia a música. Freitas está sentado no canto da sala. Veste uma camisa de seda estampada, peça obrigatória naquele verão. Enquanto ouve aquele grupo de amigos a cantar a música a que o Coro de Santo Amaro de Oeiras mais tarde dará forma, percebe que encontrou aquilo que pretendia: a banda sonora da sua campanha presidencial.
A música torna-se um sucesso imediato. Até a maior artista do país se entusiasma. Mas Freitas do Amaral há de ficar a um ramo de flores de conseguir convencer Amália Rodrigues a juntar-se à campanha. “Liguei ao João Braga, que era muito amigo da Amália, e pedi-lhe para marcar um jantar. E assim foi. Ela já tinha ouvido o hino e dissemos ‘Amália, cante lá’. E ela cantou. Ficámos arrepiados, era uma coisa impressionante. Tentei explicar que a campanha era uma coisa positiva, que não tínhamos nada contra ninguém, que a Amália ia dar um contributo fantástico. Pareceu-me que até estava disponível. No dia seguinte, mandei um ramo de flores, com um cartão simpático, mas ela ligou e disse: ‘Não me vou comprometer…’ E eu percebi. Ainda hoje acho que ela fez bem”, recorda Proença de Carvalho.

Os americanos de Soares
Atwater e Paul Manafort reúnem-se com Mário Soares na casa dele em Nafarros, perto da praia das Maçãs. Logo na primeira conversa, os americanos reconhecem que é difícil elegê-lo porque nele se conjugam um mínimo de popularidade e um máximo de notoriedade nacional. Ou, de uma forma menos eufemística, o país conhece-o demasiado bem — e não gosta nada dele. Mas trazem precisamente aquilo que o socialista pediu a Carlucci: um plano para tentar vencer aquela eleição.
Não faltam ideias para superar o péssimo ponto de partida. Algumas bem criativas, como envolver Freitas do Amaral e o KGB numa conspiração internacional, obviamente fantasiosa, através de jornais americanos onde Atwater e Manafort têm algumas toupeiras.
Quando os americanos deixam a casa de Nafarros, Soares está eufórico. Tinha adorado os americanos. Nos próximos meses, o staff do candidato continuará a encontrar-se com Atwater e Manafort. Até ao momento em que os consultores de Reagan deixam de servir.
Soares manteve sempre a mesma versão: sim, de facto ouviu aqueles dois conselheiros de Reagan, mas dispensou-os rapidamente por achar que os contributos, além de caríssimos, eram inúteis. Mas há testemunhas e documentos que comprovam a participação dos americanos, pelo menos, numa fase inicial da candidatura, que incluiu um plano com mais de 67 páginas entregue a 14 de junho de 1985.
Rui Mateus, autor do livro Contos Proibidos, Memórias Desconhecidas do PS, obra que lhe valeria mais tarde o estatuto de proscrito no partido, chegou a publicar uma carta de Manafort. Nela, o americano queixa-se de que os 200 mil dólares acertados com a campanha de Soares ainda não tinham sido pagos. E acrescenta, num tom ameaçador, que a paciência se está a esgotar. Tudo somado, os americanos terão deixado Lisboa sem ver um único dólar que lhes fora prometido.
Mas há uma coisa que os dois disseram e que veio de facto a acontecer: Soares só conseguiria passar à segunda volta se Maria de Lourdes Pintasilgo se mantivesse em jogo e dividisse os votos à esquerda. Esse conselho, Soares seguiu à risca. Foi uma dica vencedora. No dia seguinte à primeira volta, que terminou com Freitas em primeiro e Soares em segundo, Paul Manafort telefonou a Rui Mateus para lhe dizer o seguinte: “Como vês, o segredo era Pintasilgo. Well done“. A antiga primeira-ministra tinha tido 7% dos votos, pouco mais do que a diferença entre Soares e Zenha.

Como fintar a impopularidade
A preocupação com a (má) imagem de Soares vinha de trás. De acordo com o mesmo Rui Mateus, em Março de 1984, durante uma visita oficial aos Estados Unidos, Soares encontrou-se com o velho amigo e antigo secretário-geral da Internacional Socialista, Hans Janitschek. Os dois discutiram fórmulas de engrandecer publicamente a figura de Soares e o austríaco deu-lhe um conselho: que arranjasse alguém de fora para escrever um livro sobre o “maior português do século“. Só havia um problema: nenhuma editora anglo-saxónica parecia interessada em tal obra.
Foi o também austríaco George Weidenfeld, amigo de Janitschek, co-proprietário da Weidenfeld & Nicolson, com sede em Londres, quem salvou o projeto. Weidenfeld concordou em editar e publicar o livro. Mas não sem condições: uma vez que se tratava de uma obra “para português ver”, sem qualquer mercado nos países de língua inglesa”, teria de ser paga. E foi assim que nasceu o livro Mário Soares, Portrait of a Hero, pela “módica quantia de cinquenta mil dólares”, dos quais 1.600 para o autor, nada menos do que Hans Janitschek.
Um dos aspetos mais surpreendes do livro era o testemunho de António Spínola sobre Mário Soares. Durante as conversas com Janitsheck, o general foi tão elogioso para com o socialista que o austríaco “nem queria acreditar”.
Estavam a cumprir-se os dois objetivos da obra: passar a mensagem aos portugueses de que Mário Soares era “considerado um herói além-fronteiras” — ao ponto de as “mais prestigiadas editoras mundiais se baterem para publicar as suas memórias” —; e, através de testemunhos como o de Spínola, dar algum conforto a algumas figuras da direita — como Francisco Pinto Balsemão —, que queriam apoiar o candidato socialista apesar de Freitas, e mesmo contra a vontade de Cavaco Silva.
Só que as coisas foram mudando. Segundo as memórias de Rui Mateus, Spínola, preocupado com as sondagens terríveis de Soares e convicto de que a candidatura do socialista era um caso perdido, pediu ao embaixador Nunes Barata, seu antigo assessor e futuro chefe de gabinete, que falasse com Janitschek para “emendar o texto original” e retirar alguns excessos de simpatia para com Soares.
No dia de apresentação do livro, enquanto os homens do socialista perguntavam pelo general que não havia forma de chegar, Spínola, o convidado de honra, fez saber que estava doente e que não poderia assistir à cerimónia. O livro deu à estampa, mas o brilharete pretendido por Soares acabou por nunca acontecer.
Mas houve outras soluções para fintar a impopularidade de Soares que resultaram. Sobretudo a ideia dada por Harry Walter, o consultor alemão que tinha trabalhado nas campanhas de Willy Brandt e Helmut Schmidt, amigos e aliados de sempre de Soares, recorda, 40 anos depois, Alfredo Barroso, sobrinho e colaborador próximo do socialista.
“Deu-nos uma sugestão formidável que nós aproveitámos. ‘Não precisam tanto de usar a imagem dele. Porque é que vocês não escolhem imagens de pessoas da sociedade civil que o apoiem e fazem uns cartazes com ele e nesses tempos de antena puxam também por essas pessoas?’.” E assim foi: a fadista Hermínia Silva; o campeão olímpico Carlos Lopes; Humberto Coelho, estrela do Benfica e da Seleção Nacional; e Adriano Jordão, pianista de renome internacional, passaram a ser as estrelas dos cartazes.
O cineasta António Pedro-Vasconcelos foi o arquiteto da campanha televisiva de Soares. Teve a ajuda do realizador Nuno Teixeira, que já tinha no currículo sucessos como Vila Faia e o Tal Canal. E também de um outro sobrinho de Soares, o cineasta Mário Barroso, que trouxe de França uns técnicos tão bons que deixaram todos impressionados. Bons e caros: custaram 25 mil contos mais 3 mil contos em material.
O diretor de campanha, o comandante Gomes Mota, foi uma escolha pessoal de Soares e uma peça essencial para o socialista, como recorda Alfredo Barroso, sobrinho e conselheiro de Soares. “Quem sacou a empresários dinheiro e sabia fazê-lo muito bem foi o comandante Gomes Mota. Teve um papel fundamental.” Apesar das más perspetivas, o dinheiro, de facto, ia chegando. Vinha dos empresários que Gomes Mota conseguia convencer, de José Manuel de Mello a Belmiro de Azevedo, das relações internacionais de Soares, dos amigos do SPD alemão, dos socialistas franceses, dos espanhóis do PSOE e vinha de Macau — vinha muito dinheiro de Macau.
“Lembro-me de uma personalidade conhecida, amigo de Mário Soares, que entrou no meu gabinete no Saldanha e disse: ‘Olha pá, queres ver?’ E rasgou assim um bocadinho… Era uma cambada de notas. ‘Isto é Macau, isto é o contributo de Macau. Posso guardar aqui?’ ‘Eu acho que deves pôr isso num cofre’. ‘Não, não, fica aí bem, num armário teu’. Nunca foi preciso mexer naquele dinheiro. Para que é que aquele dinheiro foi usado? Para a Fundação Mário Soares”, revela agora Alfredo Barroso.
https://www.youtube.com/watch?v=wUTNi1IV-Zk
Soares é fixe e é rock n’ roll
Os conselheiros de Mário Soares estão reunidos no Palacete do Saldanha. Para além do grupo do costume, na sala estão também Clara Ferreira Alves e Maria Filomena Mónica. Há pelo menos duas horas que estão ali, a pensar em conjunto hipóteses de slogans para a campanha. Vão apontando tudo numa lista, tão longa como frustrante. Não há uma única ideia que se aproveite. É nessa altura que entra um grupo de rapazes, membros da juventude de apoio a Soares. São eles que vão desbloquear tudo.
“Entraram por ali adentro, já não me lembro a propósito de quê, queriam falar comigo, e o foi o António-Pedro ou o António Barreto que se voltou para eles e disse: ‘Opá, vejam lá, nós estamos aqui há que tempos a tentar encontrar um slogan que seja ótimo para o Mário Soares. E há um que diz: ‘É fácil, o Soares é fixe‘. Era um gajo do CDS. E nós ficámos arrasados: o que é que nós andámos a fazer durante horas?! Nós, com cérebros que julgávamos privilegiados, não encontrávamos e um puto resolveu’, conta Alfredo Barroso.
Ainda discutem se vale a pena mudar para “Soares é baril”, mas chegam à conclusão de que seria mais elitista. Sem esforço aparente, Adelino Vaz, antigo dirigente da jota do CDS, um miúdo que se mudou para aquele lado da trincheira por não gostar de Freitas do Amaral, tinha acabado de inventar um dos mais bem sucedidos slogans da história da política nacional.
Só ficava a faltar o habitual hino de campanha. Soares queria muito ter um, mas os homens que pensavam a sua estratégia eleitoral não lhe fizeram o gosto. Não num primeiro momento, pelo menos. Mário Soares, que já tinha achado uma loucura não ser o grande protagonista dos cartazes e dos tempos de antena, vai aceitar a sugestão a contragosto. A espera valerá a pena.
Lançado a 6 de fevereiro de 1986, já na segunda volta da campanha presidencial, com música de Rui Veloso e letra de António Pedro Vasconcelos, o “Rock da Liberdade” é apresentado como “uma batida para curtir“. A música torna-se um sucesso instantâneo e provoca um efeito de arrastamento, sobretudo entre os mais jovens. Meses antes, a equipa de Soares até tinha feito uma primeira tentativa para encontrar um hino de campanha, mas António-Pedro Vasconcelos, o grande responsável pelos tempos de antena do socialista, achou que ter uma música em tom triunfal não fazia sentido. Nessa segunda volta, as coisas eram muito diferentes e a marca “Soares é Fixe” viria a ganhar um novo impulso na reta final.
Não foi o único trunfo jogado pelo socialista no último esforço de campanha. Na segunda volta, a máquina de Soares, disposta a agregar a esquerda contra a grande ameaça vinda da direita, apostou todos os esforços no ataque ao passado de Diogo Freitas do Amaral. Mesmo que isso significasse distorcer ligeiramente a verdade e passar a caricaturar o adversário como um terrível colaboracionista do antigo regime.
Foi António Pedro-Vasconcelos, um dos homens mais acutilantes da campanha de Soares, quem teve o golpe criativo mais cruel — e eficaz. A partir de uma declaração antiga em que Diogo Freitas do Amaral aparecia a dizer que tinha nascido para a política aos “31 anos”, a campanha de Soares faz um tempo de antena com imagens dos assassinatos de Robert Kennedy e Humberto Delgado, do Vietname, da guerra colonial, da PIDE, de Caetano e Salazar, para sugerir que Freitas tinha assistido a tudo em silêncio e no conforto próprio dos privilegiados do Estado Novo.
Esse tempo de antena chamava-se precisamente “O 31 de Freitas” e foi um dos mais eficazes momentos políticos da campanha de Soares. Freitas, apesar de pressionado pelos mais próximos, nunca quis responder na mesma moeda. Dali a pouco dias, os portugueses iam decidir quem queriam como Presidente da República.
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