Novembro de 1985. Faltam dois meses para as eleições presidenciais e Mário Soares é um homem quebrado. As sondagens são aterradoras. Chamam-lhe “incoerente”, “oportunista”, “mau político”. A característica pessoal mais vezes citada é “ser mentiroso”. Não passa dos 8% nas intenções de voto e o país não lhe perdoa o duro programa de austeridade que teve de aplicar enquanto primeiro-ministro. O círculo de conselheiros mais próximos, que junta algumas das cabeças mais brilhantes da política nacional, discute formas de o tentar convencer a desistir. Soares resiste e recusa fazê-lo. Mas a missão que tem pela frente parece impossível.
No diário que vai alimentando, Soares não esconde o estado de profundo desalento em que se encontra. Confessa estar a perder o “controlo”. Sente-se irritado e desanimado, sem um plano ordenado para recuperar. Nessa semana, já foi duas vezes ao cinema, num desejo evidente e assumido de fugir da realidade. É ele quem o escreve naquelas páginas: “As probabilidades de vitória são quase nulas. A perspetiva (muito razoável) de não passar à segunda volta é muito dura”.
Esta é o ponto de partida das eleições presidenciais de 1986, a campanha mais espetacular de sempre. Aquela que redefiniu o espaço da esquerda e relançou a direita. As presidenciais decididas pela margem mais curta da história e as únicas, até hoje, disputadas a duas voltas. São sobre elas o novo Podcast Plus do Observador, “A Eleição Mais Louca de Sempre” — uma corrida feita de conspirações, de reviravoltas, de traições e de muito combate político.
[O que realmente se passou nas eleições presidenciais de 1986, as primeiras e únicas decididas a duas voltas? Uma história de truques sujos, acordos secretos, agressões e dúvida até ao fim. A “Eleição Mais Louca de Sempre” é o novo Podcast Plus do Observador. Uma série narrada pelo ator Gonçalo Waddington, com banda sonora original de Samuel Úria. Ouça o primeiro episódio no site do Observador, na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music.]

Uma história que tem como grandes protagonistas um candidato improvável à direita e três candidatos à esquerda. Todos com hipóteses reais de vencer. Durante largos meses, Diogo Freitas do Amaral, Mário Soares, Francisco Salgado Zenha e Maria de Lourdes Pintasilgo mediram forças por um lugar na segunda volta. O combate acabou reduzido a dois — Freitas e Soares —, mas o caminho foi tudo menos linear. Nos bastidores, e não menos importantes, três figuras apostaram o futuro político do país nestas presidenciais: António Ramalho Eanes, Álvaro Cunhal e Aníbal Cavaco Silva.
O país vai viver a sua primeira campanha verdadeiramente. Mas também com episódios de enorme violência, como o caso da Marinha Grande. Vai assistir a debates que se tornarão clássicos da política portuguesa, sobretudo aqueles que puseram frente a frente Soares e Zenha e Soares e Freitas. E vai ter momentos que mudaram os equilíbrios de força, como o sapo monumental engolido por Cunhal. Pelos bastidores, de forma mais ou menos direta, vão circular figuras tão improváveis como Frank Carlucci, antigo embaixador dos Estados Unidos em Portugal, Roger Ailes, que viria a criar a Fox News, Paul Manafort, futuro conselheiro de Donald Trump, ou Yasser Arafat.
Freitas, o improvável campeão da direita

Ser Presidente da República não é uma ideia estranha a Freitas do Amaral. Francisco Sá Carneiro tinha-o desafiado logo em 1980, mas decidiu declinar. Anos depois, Francisco Pinto Balsemão até chegou a sugerir que, se as coisas entre os dois corressem bem no segundo governo da Aliança Democrática, seria ele o candidato da direita — mas as coisas não correram nada bem entre os dois. Afastado da política desde o momento em que rompeu com Balsemão, Freitas começa o ano de 1985 com uma convicção: dificilmente terá condições para ser candidato. Chega, aliás, a dizê-lo ao semanário Expresso, sem qualquer margem para segundas ou terceiras leituras. Sabe que PSD e CDS, os partidos que tinham construído a vitoriosa AD, não estavam dispostos a apoiá-lo.
Limita-se a manter os pratos a girar enquanto a direita não decide o que fazer. Agenda reuniões e marca almoços conspirativos. Os amigos incentivam-no a avançar, dão-lhe palmadinhas nas costas. Mas não falta gente na grelha de partida em melhores condições do que ele. O PSD chega a ter oito possíveis candidatos ao mesmo tempo, quatro militares e quatro civis. Ou melhor: oito mais um — o desejo de apoiar Mário Soares continua bem vivo junto de alguns barões e notáveis do partido. Balsemão, que nunca perdoou Freitas pela traição de 82’, é um deles.
Mas, em política, as coisas mudam muito rapidamente. Sobretudo quando dois partidos a atravessar crises existenciais apostam tudo num general de três estrelas, de reconhecido mérito, mas com três ligeiras questões por resolver: gosta demasiado da carreira militar para hipotecar tudo; tem horror à conspiração política que se faz através dos jornais e nos corredores da capital; e, não menos importante, tem uma mulher que acha tudo aquilo uma loucura. Apesar de todos os apelos, Mário Firmino Miguel, antigo ministro da Defesa, o candidato com que a direita sonhava e que os jornais davam como certo nas eleições presidenciais, decide não entrar corrida. PSD e CDS ficam sem plano B.
É justo dizer-se que se Firmino Miguel tivesse decidido avançar — e tinha condições políticas para isso —, Freitas não teria sido candidato em 1986. E a história teria sido completamente diferente. Mas, sem o general na corrida, as coisas mudam de figura. O primeiro líder e fundador do CDS só tem de garantir que mais ninguém se atravessa no caminho. E é isso que faz. Assim que percebe que Daniel Proença de Carvalho, antigo ministro da Comunicação Social e ex-presidente da RTP, está a pensar avançar, convida-o para um almoço e propõe-lhe uma aliança: Freitas será candidato à Presidência da República se Proença de Carvalho aceitar ser o diretor dessa campanha.
Apesar de ter reunido, ele próprio, um conjunto interessante de apoios para avançar, Proença de Carvalho concede que Freitas, um dos pais fundadores da democracia, está em melhores condições para ser candidato. Os dois, naquele almoço e naquela tarde, começam a planear uma campanha verdadeira à americana. Só fica a faltar uma peça fundamental: é preciso convencer o PSD, um partido entregue a uma liderança interina frágil e estilhaçado em várias tendências, egos e sensibilidades, a patrocinar aquela aventura. E é aí que entra uma figura que vai mudar a história do partido e do país: Aníbal Cavaco Silva.
Enquanto Freitas do Amaral pondera as suas hipóteses, o antigo ministro das Finanças de Francisco Sá Carneiro põe em marcha o seu próprio plano. Convida Freitas para almoçar e diz-lhe que apoiará a sua candidatura presidencial independentemente da posição oficial do PSD. Eurico de Melo, ex-ministro da Administração Interna e um peso pesado do partido, também o fará. Dentro de alguns dias, os sociais-democratas reúnem-se na Figueira da Foz para um Congresso que decidirá a liderança do partido.
Aníbal Cavaco Silva mantém, até hoje, que não teve qualquer intenção de se candidatar à presidência do PSD, e que só ia fazer a rodagem do Citroën BX acabadinho de comprar. O resultado prático foi diferente: contra todas as expectativas, o grande apoiante da candidatura presidencial de Freitas torna-se o novo líder do PSD. A vitória surpreendente de Cavaco Silva provocará um efeito dominó que vai mudar o curso político do país e dará a Freitas do Amaral todas as condições para ser o candidato presidencial da direita. Melhor ainda: Mário Soares não conseguiu antecipar nada do que estava prestes a acontecer.
Soares e a quase desistência

Mário Soares ainda é primeiro-ministro mas já só tem uma coisa na cabeça: perceber como é que vai chegar a Presidente da República dali a dois anos. No final de 1984, recebe religiosamente todas as semanas para jantar alguns dos conselheiros mais próximos, como António Barreto, Vasco Pulido Valente, Alfredo Barroso ou António Campos. Nunca estão mais do que cinco ou seis pessoas à mesa. Os suficientes para lançar as bases da candidatura presidencial. Mas há um enorme problema: Soares não está bem a ver o estado de desgraça em que caiu.
Como primeiro-ministro, executou o exigente programa negociado com o FMI. Há uma inflação galopante, na casa dos 20%. Os trabalhadores usam bandeiras negras como símbolo de fome e pobreza e milhares com salários em atraso. Para a esquerda, é um traidor. Para uma parte da direita, é um político incompetente e ultrapassado. Só que Soares acredita que ainda tem os ventos a seu favor. Mesmo à frente de um governo de Bloco Central a desfazer-se, continua a contar com o apoio dos sociais-democratas nas presidenciais. A aritmética é simples: com os votos do PS e do PSD, os dois partidos do centrão, a vitória está mais do que garantida.
Só que a estratégia de Soares começa a ruir. Carlos Mota Pinto, o vice-primeiro-ministro de quem se tinha tornado amigo, demite-se do Governo e da liderança do PSD. Meses mais tarde, morre subitamente. A família social-democrata mergulha numa das suas muitas lutas fratricidas e ninguém consegue antecipar para que lado cairá exatamente o poder. O socialista, ainda assim, continua convicto de que o partido parceiro de governação não levantará ondas. Mantém boas relações com João Salgueiro, antigo ministro das Finanças de Pinto Balsemão, que lhe dá garantias, até à véspera, de que vai vencer por larga margem o Congresso da Figueira. Mas não é isso que acontece.
Cavaco Silva, rodeado de figurões do partido, como Eurico de Melo, Fernando Nogueira e Manuel Dias Loureiro, e devidamente municiado pela Nova Esperança de Marcelo Rebelo de Sousa, Durão Barroso, Pedro Santana Lopes e José Miguel Júdice, que há muito conspiravam para derrubar o Bloco Central, rouba o palco do Congresso da Figueira da Foz e torna praticamente impossível a sobrevivência do governo de Soares e o apoio do PSD à sua candidatura presidencial.
Aníbal Cavaco Silva, homem que Soares abertamente despreza, rompe com o Bloco Central e o socialista demite-se. Contra a sua vontade, António Ramalho Eanes dissolve a Assembleia da República e marca eleições antecipadas para outubro de 1985. Vai tentar, a todo custo, influenciar o resultado dessas legislativas. O PRD – Partido Renovador Democrático, movimento organizado à sombra e com a bênção do próprio presidente Presidente da República, terá uma palavra a dizer.
Soares já não se apresenta a votos nessas legislativas — o objetivo é declaradamente a eleição presidencial de 1986, agendada para dali a poucos meses. A contragosto, quase arrastado, António Almeida Santos, um dos nomes mais respeitados do partido, assume a missão de ser o candidato do PS nessas eleições legislativas, mas sofre um resultado humilhante que nem os mais pessimistas conseguiram antecipar: Cavaco Silva chega quase aos 30%, os socialistas não vão além dos 20% e o PRD patrocinado por Eanes, um dos grandes adversários políticos de Soares, fica a menos de três pontos percentuais do PS. Em apenas dois anos, os socialistas tinham perdido quase um milhão de votos.
Apesar de Almeida Santos ter sido o rosto oficial deste resultado, não há qualquer equívoco: o grande derrotado é mesmo Mário Soares. O país quis castigá-lo e enviar uma mensagem clara. Pior: o próprio partido parece ter desistido dele. A crise em que o país está mergulhado, o fim desastroso do Bloco Central e a estrondosa derrota nas legislativas de outubro de 85 parecem matar em definitivo as aspirações presidenciais. No diário que alimenta por esses dias, Soares volta a falar da hipótese de desistir da corrida.
“Ninguém acredita. O meu staff mais próximo desaparece em bicos de pés… Vou ter, como escreve o Expresso, uma derrota humilhante. Não passo à 2.ª volta e fico atrás de todos os outros candidatos. Devo então desistir? Essa é a minha tentação e, ao mesmo tempo, a minha angústia. Vontade não me falta! Mas não posso: seria uma fraqueza que ninguém entenderia. Sou, pois, obrigado a continuar. De qualquer modo, se for até ao fim ninguém me pode acusar de nada. Cumpri. Não é trágico, em democracia, perder uma eleição. O trágico é abandonar, deixando-se intimidar”, escreve Soares. Para piorar tudo, a direita está unida em torno de Freitas do Amaral. E, à esquerda, há uma candidata que parece indomável.
Pintasilgo e a sombra de Eanes

Em setembro de 1984, o plano de Maria de Lourdes Pintasilgo de concorrer a Belém é, como o de Soares, um segredo de polichinelo. A ideia tinha nascido no verão, durante um almoço no restaurante “Dragão de Alfama”, com apenas mais quatro pessoas, que a convenceram de que tinha tudo para ganhar aquela eleição. O currículo fala por si. Formou-se em engenharia químico-industrial quando tirar um curso estava ao alcance de poucas mulheres. Católica progressista, é pioneira na luta pela emancipação feminina, embaixadora na Unesco, a primeira mulher a liderar um governo e uma figura com fortes ligações ao eleitorado de esquerda.
Cereja no topo do bolo: é muito próxima de António Ramalho Eanes, cujo apoio na corrida presidencial dá como certo. Foi ele, aliás, quem a nomeou primeira-ministra, em 1979. Só que, desta vez, o Presidente da República não parece estar alinhado com os interesses da sua conselheira em Belém. E, como tudo o que acontece na política que se vai fazendo nos corredores da capital, as movimentações de Pintasilgo chegam aos ouvidos do Chefe de Estado. E Eanes decide atuar.
Nesse setembro de 1984, Pintasilgo é convocada pelo próprio Presidente da República para uma reunião. Depois dos cumprimentos de circunstância, Eanes permanece em silêncio. Não quer ser ele a dizer o que acha tem de ser dito sobre as ambições da antiga primeira-ministra. Melo Antunes e João Botequilha, homens do Presidente, tomam a iniciativa e passam longos minutos a tentar convencê-la a não avançar com a candidatura. Chegam a dizer que é inaceitável que o faça à revelia do movimento eanista. Magoada, Pintasilgo não cede. Não serão eles a travá-la.
Dias depois, Ramalho Eanes convida-a para jantar. Desta vez, é ele a conduzir a conversa. Dramatiza, diz-lhe que nunca terá possibilidades de vencer, que dividirá o movimento e que se arrisca a entregar o regime em definitivo aos mesmos partidos que o elegeram como adversário — PS e PSD, que se juntaram, em 1982, para fazer uma revisão constitucional que diminuiu em muito os poderes presidenciais. Mas, mais uma vez, Pintasilgo mantém-se firme nas suas intenções.
Três meses depois, em dezembro, Eanes volta a convocá-la. Está a ficar irritado com a teimosia de Pintasilgo. Acha tudo aquilo suicida e, desta vez, tem um recado claro: com os avanços que está a fazer, começa a perder “margem de manobra” para recuar na candidatura. Pintasilgo percebe aí três coisas: quem está a perder margem de manobra é o próprio Presidente; se continuar à espera do apoio de Eanes, nunca será candidata; e se jogar na antecipação, como pretende fazer, o movimento eanista, que já todos perceberam que se transformará num partido, ficará sem margem para apoiar outro candidato.
Quando finalmente apresenta a sua candidatura, em julho de 1985, no Hotel Ritz, em Lisboa, o impacto é imediato. Está rodeada de gente importante. Militares de Abril, mas também intelectuais e pessoas das artes e do jornalismo, como Eduardo Lourenço, Emídio Rangel, Natália Correia e Eduardo Prado Coelho. Apresenta-se como a candidata da “unidade” e da “esperança”, contra o “conformismo” e o “fatalismo”. Em nome da “ética” e da “terra da fraternidade” com que a esquerda tinha sonhado um dia. Escolhe como símbolo o arco-íris, uma inspiração vinda da América e do Partido Democrata, como prova de que, naquela candidatura, cabem todos os que vierem por bem.
Tem razões para estar confiante. Tem ótimas sondagens, aparece muito à frente de Mário Soares e taco a taco com Diogo Freitas do Amaral. Mais: numa segunda volta, garantem os estudos de opinião, a Presidência da República será dela. O entusiasmo da candidata é contagiante e não há visita que faça que não junte pequenas multidões, sobretudo mulheres e sobretudo mulheres mais pobres. A direita irrita-se com ela e chama-lhe “Vasco Gonçalves de saias” ou “socialista terceiromundista”. Até o catolicismo assumido é questionado: afinal, em que mundo é que se pode ser católico e marxista ao mesmo tempo?
Mas há algo que não bate certo. Apesar do respeito de que goza, apesar do entusiasmo em torno da candidatura, apesar das ótimas sondagens e da irritação que provoca nos adversários, Pintasilgo continua sem contar com o apoio da figura que lhe pode garantir um caminho mais fácil para a vitória. E tudo se vai agudizar depois do bom resultado do PRD nas legislativas de outubro: os homens de Ramalho Eanes convencem-se de que não precisam de Pintasilgo para nada.
A candidatura de Pintasilgo é um obstáculo para os planos de Ramalho Eanes, claro. Mas o Presidente da República julga ter encontrado o homem certo para superar o desafio. Membro fundador do MFA, um coronel entre capitães no 25 de Abril, primeiríssimo ministro da Administração Interna em democracia e Alto-Comissário Contra a Corrupção, Manuel Costa Braz é a escolha de Ramalho Eanes como candidato à sua sucessão.
A Costa Braz agrada-lhe a ideia. Dez anos antes, esteve quase a ser escolhido como primeiro Presidente da República no pós-25 de Abril. Mas sete dos nove Conselheiros da Revolução optaram por Eanes e Costa Braz desencontrou-se da História. Agora, é a sua vez. Três homens da estrita confiança do Presidente da República, Miguel Caetano, João Botequilha e José Rabaça, põem o plano em marcha. Só que Eanes comete um erro fatal: impor um candidato sem negociar com os camaradas.
Apesar do empenho pessoal do Presidente, a candidatura de Costa Braz não arranca. As rivalidades internas no PRD e no círculo de militares que rodeiam Eanes paralisam tudo. Costa Braz vê-se a braços como uma protocandidatura que não consegue arranjar sedes, dinheiro, meios técnicos e estruturas para a campanha. É o primeiro a perceber que está condenado e resta-lhe a única decisão racional: sair de cena antes que seja demasiado tarde. Eanes, que tinha descartado uma candidata natural e uma mulher de inteira confiança, fica agora sem a alternativa que desejava. Precisa de um plano B. Ou melhor: precisa de um plano Z.
A surpresa chamada Zenha

Quando ouve os primeiros rumores, Mário Soares não quer acreditar. Acha impossível que o seu antigo número dois seja verdadeiramente capaz de se candidatar à Presidência da República e de enfrentar o partido que tinha ajudado a fundar. É verdade que a relação entre os dois já conheceu melhores dias. Os últimos anos ficaram marcados por um distanciamento progressivo. Mas não deixa de considerar como irmão o homem que escolheu para ser padrinho da sua filha, Isabel Soares. É-lhe impossível considerar a hipótese de o ter de enfrentar. Até faz uma aposta com a mulher: Soares diz que só pode ser mentira, Maria de Jesus Barroso acredita que vai mesmo acontecer. Estava certa.
[O que realmente se passou nas eleições presidenciais de 1986, as primeiras e únicas decididas a duas voltas? Uma história de truques sujos, acordos secretos, agressões e dúvida até ao fim. A “Eleição Mais Louca de Sempre” é o novo Podcast Plus do Observador. Uma série narrada pelo ator Gonçalo Waddington, com banda sonora original de Samuel Úria. Ouça o primeiro episódio no site do Observador, na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music.]

Quando desce da suíte 708 do Hotel Tivoli, em Lisboa, Francisco Salgado Zenha sabe bem o que quer dizer ao país. É verdade que é o último dos candidatos a entrar na corrida e que isso lhe cria naturais dificuldades. Só está a mostrar-se ao país a 15 de novembro de 1985, a pouco mais de três meses das eleições, quando os adversários já têm milhares de quilómetros de rodagem. Mas Zenha sabe como causar impacto. Apresenta-se como o candidato que vem para combater “uma democracia achacada por vários vícios, como o clientelismo, a irresponsabilidade, a corrupção, o centralismo, a desigualdade perante a lei, a injustiça social e a miséria”. Promete dar uma “nova República” e uma “nova democracia” ao país. Na sala, o friso de apoiantes impõe respeito.
O eanismo assiste a tudo nas primeiras filas. Melo Antunes, Henrique de Barros, Miguel Galvão Teles e Joaquim Letria, que será porta-voz da campanha, todos homens do Presidente da República, mostram de que lado estão. Os socialistas António Arnaut e Aquilino Ribeiro Machado não faltam à chamada. E até Luísa Guterres, mulher do futuro primeiro-ministro, o mesmo com quem Zenha tinha conspirado contra Soares no famoso sótão de Algés, marca presença.
O PCP não envia qualquer dirigente, mas dá um sinal suficientemente inequívoco para que toda a gente perceba de que lado está o partido: José Saramago e Urbano Tavares Rodrigues, dois dos grandes intelectuais do PCP, são convidados de honra de Zenha. Não há enganos: o PRD, o PCP e uma parte importante do Partido Socialista querem Francisco Salgado Zenha a Presidente. Juntos, os dois partidos representam quase 2 milhões de portugueses. São cerca de 33% dos votos potenciais.
Com a entrada em cena de um novo nome, passam a existir três candidatos à esquerda: Maria de Lourdes Pintasilgo, Mário Soares e agora Salgado Zenha. Além de ser uma luta política, torna-se uma luta profundamente pessoal. Pintasilgo vai sentir-se enganada por Salgado Zenha. Tinha-lhe proposto uma aliança sem saber que ele já tinha um plano em marcha. Mas vai responsabilizar sobretudo Álvaro Cunhal, com quem tinha um relação de alguma proximidade e afinidade ideológica, e, sobretudo, António Ramalho Eanes, de quem esperava, no mínimo, neutralidade. Nunca esquecerá a traição do Presidente da República.
Mário Soares sentir-se-á igualmente traído por Francisco Salgado Zenha. Nunca esperou que fosse capaz de se aliar aos seus maiores adversários políticos — Cunhal e Eanes — para o derrotar. A perspetiva de ter de o enfrentar numa campanha necessariamente fratricida atormenta-o pessoal e politicamente. Se a passagem à segunda volta já era difícil com Maria de Lourdes Pintasilgo na corrida, com Zenha como adversário, e tendo o apoio evidente do PRD e do PCP, torna-se virtualmente impossível.
A candidatura de Zenha, com a bênção de Eanes e Cunhal, vai alterar, inclusivamente, a própria dinâmica da campanha. Freitas terá de enfrentar um homem que o acusa de ser o candidato da “União Nacional” e um perigo para a democracia. Pintasilgo, sem os votos do eanismo e altamente pressionada pelos comunistas, que a vão combater ferozmente, terá de encontrar formas de manter viva a sua candidatura. E Soares vai tomar uma decisão que se tornará determinante para a história destas eleições de 86: fará campanha em nome da esquerda democrática contra a esquerda totalitária.
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