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A história de Cátia, renascida depois de um enfarte. E o apoio da família e dos médicos

Aos 39 anos, Cátia Mostardinha esteve 45 minutos em paragem cardiorrespiratória depois de um enfarte. Está ainda a reaprender todos os movimentos, com a ajuda de uma empenhada rede familiar e médica.

Paula Sofia Luz
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Maria João Gala
photography

Quando Cátia acordou do coma induzido, na unidade de cuidados intensivos do então Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC), foi como se a sua cabeça e o seu coração estivessem separados do corpo, que não respondia a nenhum dos intentos: falar, andar, comer pela própria mão. Dias antes, chegara numa ambulância do INEM com um prognóstico tão reservado que a família foi devidamente preparada para o pior: ninguém lhe podia garantir que vivesse, depois de um enfarte agudo de miocárdio, seguido de paragem cardiorrespiratória, a meio do caminho entre Aveiro (onde mora) e Coimbra. Aos 39 anos, a 5 de outubro de 2024 o coração de Cátia mediu forças com ela.

Quando finalmente teve alta do hospital, mais de um mês depois, Cátia regressou a sua casa amparada por um andarilho, o pé caído, a perna esquerda entre o dormente e o dorido, uma panóplia de sequelas que a obrigaram a um intensivo programa de recuperação, que se mantém ainda cinco dias por semana. Está muito melhor, e acredita que vai conseguir recuperar a vida, a autonomia e o trabalho, com a ajuda da filha, do companheiro, do irmão e dos pais. Tem sido um caminho duro, mas com resultados.

O companheiro
João Ricardo Silva

“Preparei-me para ajudar a Cátia a fazer tudo, até a ir à casa de banho”

No dia em que foi ao CHUC (atualmente, polo da Unidade Local de Saúde de Coimbra) para trazer a companheira de volta a a casa, João Ricardo sabia que teriam ambos pela frente um longo caminho. A equipa médica já o preparara para as debilidades físicas, tantas que a primeira hipótese aventada em Coimbra fora a transferência de Cátia para o Centro de Reabilitação Rovisco Pais, na Tocha. Mas ela garantia aos médicos que havia em Aveiro um centro onde poderia ir, todos os dias, fazer a reabilitação, permitindo-lhe assim voltar a casa, ver a filha, estar ao lado da família.

Além disso, nos mais de 30 dias de internamento, João teve tempo de pesquisar muito e de se aconselhar com um amigo enfermeiro. “Sabia que ia ser duro, que a Cátia viria com muitas sequelas e por isso preparei-me para ajudá-la a fazer tudo, até a ir à casa de banho”. Não falamos apenas de tomar banho, mas de a acompanhar em tudo, mesmo, até na satisfação das necessidades fisiológicas básicas. João percebeu, naqueles dias, que a recuperação seria difícil, mas possível. E predispôs-se a acompanhar Cátia em tudo e a todo o lado: nas consultas, na fisioterapia, nas pequenas caminhadas quando deixou o andarilho, depois as muletas. Para isso, reorganizou a sua vida profissional, também. Primeiro faltou, depois gastou as férias, depois usou a assistência à família, até que conseguiu concentrar o horário (no supermercado onde trabalha) nos dois dias do fim de semana. “Assim posso ter a semana livre para acompanhar a Cátia”, explica ao Observador. 

Aos poucos, o casal foi celebrando pequenas conquistas: a autonomia de conseguir andar sozinha, de tomar banho. “Era um sacrifício muito grande, ao início, sobretudo a parte de secar. A Cátia tinha muitas dores na perna esquerda”, recorda João. Também o ato de calçar as meias, por exemplo, era um tormento. “Ela precisava de se concentrar, porque sabia que ia doer muito. Depois eu calçava de uma vez só”, recorda.

Cátia e João vivem juntos desde 2021, na casa onde ela nasceu e cresceu. Eram colegas de trabalho até Cátia ter mudado de emprego, um mês antes do enfarte.

A filha
Sara Silva

"Passei a ajudar em todas as tarefas domésticas”

Aos 15 anos, Sara já passou pelo maior susto que pode acontecer a uma criança ou adolescente, o de ficar sem a mãe. Naquele sábado, a filha de Cátia estava em casa do pai, em Ílhavo, e a meio da tarde começou a estranhar não ter respostas da mãe às mensagens que enviava. “De manhã estávamos a trocar mensagens sobre o material escolar — as aulas tinham começado há pouco —, por exemplo, uma calculadora gráfica que eu precisava para a escola. Como ela deixou de me responder, eu pensava que seria porque ela andava a fazer alguma coisa em casa. Mas como já estava a estranhar, liguei ao João a perguntar porque é que ela não me respondia. Foi quando soube.”

Sara fala ao Observador ainda com muita dificuldade (e emoção) sobre o sucedido, sobre os longos dias de internamento da mãe, sobre a memória que guarda daquele quarto de hospital, e sobre o regresso a casa. Tem sido um longo caminho para toda a família, afinal. “Eu sempre ajudei muito a minha mãe, já repartíamos muitas tarefas domésticas — vivemos as duas sozinhas durante muito tempo, a partir do momento em que os meus pais se separaram — mas desde que teve o enfarte as coisas mudaram muito. Passei a fazer tarefas que não fazia, a arrumar e limpar, com a ajuda do João”, conta. Diz que só não se orienta muito bem “com a esfregona”, e que lhe falta aprender a fazer um prato de que a mãe gosta muito: bifinhos com cogumelos. De resto, cresceu também nesse campo, à medida das necessidades.

É aluna do 11.º ano, está na área de Ciências e Tecnologia, e embora ainda não tenha decidido o que vai seguir no futuro, inclina-se para Medicina. A situação da mãe aguçou-lhe o interesse. “É uma profissão que faz a diferença na vida das pessoas”, sustenta Sara, em modo adolescente, quase adulta, depois da doença da mãe.

O irmão
Ricardo Mostardinha

“Fiz milhares de quilómetros durante o internamento da Cátia”

Quando a dor no peito se intensificou, Cátia estava ao telefone com o irmão, Ricardo, seis anos mais velho. Cresceram juntos, mantiveram-se sempre próximos, pese embora a distância que os separa na geografia. Ricardo Mostardinha mora em Castelo Branco, a cidade para onde foi estudar Engenharia Informática, e onde acabou por criar família e raízes.

O telefonema terminou de forma repentina, embora Cátia não revelasse ao irmão por que razão tinha que desligar. Estava a sentir-se mal. Isso Ricardo só saberia mais tarde, quando João lhe ligou a dar conta de que a irmã ia já na ambulância, a caminho do hospital. E ele pressentiu que era grave, quis pôr-se ao caminho, percorrer os mais de 200 km que separam Aveiro de Castelo Branco. Foi a mãe quem o demoveu, pelo menos de ir logo, de conduzir à pressa. Mas no dia seguinte, lá estava, à porta do CHUC. E nos 30 dias que se seguiram, várias vezes por semana se deslocava até Coimbra para visitar a irmã. “As visitas eram muito restritas, mas eu sabia que era importante para ela ver-me, e, por isso, naquela altura fiz o que tinha de fazer: milhares de km, todas as semanas, mais do que uma vez, para a poder ver”. Ricardo afirma-o com uma naturalidade desconcertante, como se falasse de uma viagem de 15 minutos ou meia hora.

Para Cátia, desde pequeno que ele é o “Zaina”, uma espécie de alcunha ou diminutivo, numa língua de irmãos. Quando ela acordou do coma, ninguém sabia como estaria, em termos cognitivos. “Podia haver sequelas, tinham-nos avisado disso. Ela podia não ser a mesma ao acordar”, explica Ricardo. “Mas assim que me viu, e a enfermeira perguntou quem eu era… ele disse logo: ‘é o Zaina’. E aí percebi que era a minha irmã, na mesma, e que só precisaria de tempo para se recuperar fisicamente”, como tem estado a acontecer.

À distância, o papel de Ricardo foi igualmente importante. Não estava ali ao lado para a ajudar a levantar-se, para a levar aos tratamentos, mas estava sempre à distância de um telefonema ou vídeochamada, a gerir emoções entre a irmã, o cunhado, os pais (que embora muito importantes neste processo, preferiram não se participar nesta reportagem) e restante família.

A fisioterapeuta
Estela Ferrari

"A Cátia ensina-me muito. É um exemplo de paciente"

Estela Ferrari é um caso de vocação. Fisioterapeuta há seis anos, é ela quem tem assumido grande parte dos tratamentos de Cátia Mostardinha, nas instalações do CMM – Centro Médicos e Reabilitação, em Aveiro. A clínica nasceu na Murtosa, em 2006, mas tem atualmente instalações por todo o país, permitindo (através de convenção com o Estado) que milhares de pessoas possam fazer a sua reabilitação sem serem internadas.

“Não me vejo a reabilitar um pé, um joelho ou uma coluna. Vejo-me a reabilitar pessoas, que vão conseguir voltar a fazer coisas de que gostam: passear com o cão, brincar com os filhos ou praticar uma atividade.” Estela diz que aprende muito, todos os dias, com os seus pacientes. E Cátia tem sido um desses casos. “Ela mostrou-se sempre forte e determinada a evoluir. Mesmo no início, quando era mais difícil, ela dava o melhor que podia. Fazia fisioterapia todos os dias e empenhava-se em casa para fazer o que lhe havíamos ensinado.” Ao princípio era preciso ter muito cuidado com a reabilitação da parte cardíaca e respiratória, até haver a autorização médica para avançar com alguns exercícios mais difíceis. “Mas isso nunca abalou a Cátia”, recorda, lembrando as sequelas físicas deixadas pelos aparelhos usados para a manter viva, no hospital, para manter o sangue em circulação pelo corpo.

Quando Cátia chegou ao CMM e conheceu Estela, levava com ela as dúvidas de alguns médicos: “Avisaram-na de que poderia não se recuperar”. “Mas não houve um dia sequer em que a Cátia não mostrasse coragem e determinação em dar a volta por cima”, sublinha Estela, que não tem dúvidas sobre a importância desse empenho na recuperação, coadjuvado pelo apoio familiar. “Se não fosse por toda a força, coragem e apoio que ela tem, não estaríamos onde estamos hoje. A fisioterapia é um trabalho em equipa. Eu faço a minha parte como fisioterapeuta, mas se o paciente não ajudar, não evoluímos.” Feliz com os resultados que Cátia tem alcançado, Estela sente-se privilegiada por poder acompanhar esta evolução. “A Cátia ensina-me muito. É um exemplo de paciente. Tenho a certeza de que ela irá alcançar seus objetivos e eu estarei lá, a ajudar.”

A cardiologista
Sílvia Monteiro

“A Cátia tem uma grande capacidade de aceitação e motivação para recuperar”

Nos muitos anos que a cardiologista Sílvia Monteiro leva de casos, histórias e episódios, poucos a impressionaram como o de Cátia Mostardinha. Desde que se licenciou, em 2001, e quando tirou a especialização, em 2009, admite que  o seu maior interesse “foi sempre pelo doente crítico, sempre direcionada para os cuidados intensivos cardíacos”, como ela própria conta. Por de trás de todo o conhecimento científico, está uma qualidade que, entretanto, foi reconhecida profissionalmente: a partir de junho passado, passou a dirigir também o Serviço de Humanização da ULS  Coimbra, que integra vários hospitais, entre os quais o da universidade.

“O que fez a diferença, neste caso, foi o facto da Cátia ter estado sempre em presença dos profissionais de saúde. Foi terem chamado o INEM em vez de irem para o hospital pelos próprios meios”, explica a cardiologista.

Cátia teve um disseção da coronária (uma rutura na parede da artéria), que lhe provocou o enfarte agudo de miocárdio. “É um tipo de enfarte raro, ainda assim mais frequente em mulheres jovens”, adianta a cardiologista, que a acompanha desde então, com regularidade. “Desde o internamento, quando recuperou a consciência, a Cátia aceitou a sua doença. Teve e tem uma grande capacidade de aceitação, mostrando-se muito tranquila e motivada para recuperar”, afirma. E acrescenta: “É uma mulher com uma saúde mental importante. E nós sabemos como as emoções e a espiritualidade também têm um grande impacto na recuperação”, afirma Sílvia Monteiro. Recorda a resistência que Cátia manifestou em ir para uma unidade de reabilitação, só possível graças ao “acompanhamento familiar excecional”.

A cardiologista e a doente conheceram-se no piso -1 do Hospital da Universidade, na Unidade de  Cuidados Intensivos Polivalente. Cátia esteve internada durante 31 dias, entre esse serviço e a Unidade de Cuidados Intensivos Cardíacos. A médica fala de “uma recuperação progressiva do quadro de choque cardiogénico e múltiplas complicações associadas aos cuidados intensivos e procedimentos invasivos”. Quando a conheceu, Cátia estava em coma induzido, “sob suporte circulatório mecânico [oxigenação por membrana extracorpórea veno-arterial]”. Na prática, estava ligada a “uma máquina que substitui o coração”. De permeio, teve “uma complicação no acesso vascular, associado aos cuidados intensivos”, o que explica as sequelas físicas, ao nível da perna e do pé. “São uns tubos enormes, por onde entram os cateteres para o suporte circulatório”, detalha a médica, que acredita na recuperação plena desta doente.

“Considero que este é um caso bonito, que mostra bem o que é a medicina. Cátia teve os melhores cuidados em termos técnicos e científicos, mas também teve contactos muito humanizados. E isso faz toda a diferença”, conclui Sílvia Monteiro.

A doente
Cátia Mostardinha

“O meu grande objetivo é ser autónoma, voltar a trabalhar e a conduzir”

No dia 5 de outubro de 2024, Cátia acordou indisposta. Na verdade, há vários dias que não se sentia bem: um cansaço, uma indisposição que não conseguia precisar. Tinha deixado o emprego de anos como repositora num supermercado grande, e fora admitida como auxiliar de ação educativa num agrupamento de escolas de Aveiro. Julgou, por isso, tratar-se de ansiedade.

Mas desde que estava na barriga da mãe que o coração de Cátia se mostrava demasiado independente: aos seis meses de gestação, fez uma paragem. Desde o nascimento, a 25 de dezembro de 1984, que era acompanhada na Cardiologia do Hospital de Aveiro, onde chegou a fazer um cateterismo, aos 18 anos. Resolvido o problema, passou a controlar o ritmo cardíaco (demasiado acelerado) com medicação, como tantas pessoas. Mas nos últimos anos começaram as arritmias, o coração a bater de forma irregular. Quando acontecia, sabia o que tinha de fazer: colocar as pernas mais altas do que a cabeça. Foi o que fez, quando naquela manhã de sábado, ao telefone com o irmão, começou a sentir um mal-estar geral, acompanhado de uma forte dor no peito.

Levantou-se do sofá e foi deitar-se na cama, com os pés elevados na cabeceira. A dor não melhorava, começou a sentir suores intensos, o mal-estar a agravar-se. Ligou ao companheiro, que não hesitou e chamou o INEM. Os técnicos ligaram entretanto para Cátia, e foram falando com ela, até chegarem. À porta de casa, em Oliveirinha, Aveiro, estavam de repente duas ambulâncias. Entrou numa delas, já na maca, mas sempre consciente. Até entrar em paragem cardiorrespiratória. A partir daí não se lembra de nada, só sabe o que lhe contam.

Quando acordou do coma, sem conseguir falar, Cátia percebeu que estava numa unidade de cuidados intensivos. “Imaginei que tinha sido um enfarte, só não pensei que fosse tão grave. Tinha as mãos e os pés muito inchados, senti que estava a fazer febre, estava toda entubada”, conta, a poucas semanas de completar um ano do dia que a partir de então considera de renascimento. “Eu podia ter morrido. Aliás, os médicos e enfermeiros diziam muitas vezes que eu cheguei ao hospital praticamente morta. Posso considerar que renasci.”

A recuperação tem sido impressionante, até para ela, pese embora dolorosa. Depois do coma,teve de reaprender a fazer tudo: falar, comer, andar. Começou pelo andarilho, passou para as muletas, depois largou uma, mais tarde a outra. Regressou a casa no dia 5 de novembro, um mês depois do enfarte. “Cansava-se até a levantar o braço. Ao princípio fiquei um bocado revoltada. Depois, mentalizei-me que tinha de recuperar, que tinha de ganhar forças para fazer a reabilitação cardíaca e, sobretudo, muita fisioterapia”, explica Cátia, que frequenta o CMM, cinco dias por semana, entre os tratamentos de fisioterapia e hidroterapia.

Os primeiros tempos foram complicados. Não conseguia fazer nada sozinha, como “ir à casa de banho ou tomar banho. Quando consegui, a primeira vez, foi uma grande vitória”, afirma. “É uma luta, todos os dias. O meu grande objetivo é ser autónoma, voltar a trabalhar, voltar a conduzir”.

Cada progresso é, para ela, uma motivação. Quando olha para o caminho percorrido, sabe que foi um esforço coletivo – da equipa médica, de reabilitação e da família – que lhe permitiu recuperar autonomia. E é isso que lhe alimenta a esperança de voltar a fazer caminhadas na natureza, como tanto gostava, de passear por aí. Ela e João mantêm o foco: “Ficar bem, e depois, conseguirmos ir aos Açores”. Para já, vai só festejar a vida, neste 5 de outubro. “Sinto que voltei a nascer nesse dia.”