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Jorge Dias e Veiga de Oliveira: "A alma aberta à vida"

Uma fraternidade científica que deixou uma pegada indestrutível na cena portuguesa, algo que depois deles jamais foi tentado da mesma maneira, com idêntico alcance. Este livro conservará essa memória.

Vasco Rosa
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Não há como iludi-lo: é angustiante que este extraordinário documento epistolar seja divulgado 35 anos após a morte de Ernesto Veiga de Oliveira, figura decisiva — pelo exemplo do trabalho feito — para que uma nova geração de pré-universitários se interessasse pela antropologia portuguesa; e é escandaloso que a editora Etnográfica Press não tenha sido capaz de captar recursos (2500 € bastavam) para produzir um livro físico, ainda que de tiragem reduzida. A memória de Jorge Dias e de Veiga de Oliveira merecem muito mais do que isto, e o caso também revela o desprezo com que o Museu Nacional de Etnologia — e a sua admirável equipa histórica, que instituiu ali uma verdadeira idade de ouro da investigação e da museologia — foi tratado durante décadas, continua a ser tratado e, pior ainda, aceita ser tratado: acolheu este ano, como instituição desfigurada, subalternizada e de recurso, uma mostra da Coleção de Arte Contemporânea do Estado (!) que durou quatro meses, sem que o seu diretor tenha tido a hombridade e a dignidade de se demitir. Pior ainda: tendo co-editado em 2022, em apoio da mesma Etnográfica Press, Cartas do Brasil. Correspondência de Antropólogos e Folcloristas Brasileiros para Jorge Dias (1949-1972), que aqui recenseámos com merecida acidez, o Museu negou-se agora a idêntica prestação, muito mais justificada do que aquela. É o que temos e quem temos. Bater no fundo é sempre bater no fundo, com estrondo ou sem ele. Joaquim Pais de Brito conseguiu tudo o que queria.

Em 2008 João Leal recebeu de Benjamin Pereira 131 cartas e postais de Dias para Veiga de Oliveira, e em 2020, dois anos depois da morte de Pereira, foram encontradas no seu espólio as cartas do seu discreto companheiro para Jorge, que correspondem àquelas. Pelo menos uma parte destes catorze anos podia ter sido poupada se outro contexto e um evidente dinamismo prevalecessem na cena académica destas disciplinas, ou se o impulso dado pela edição de vários epistolários literários e artísticos (Sena, Pomar, Lemos, Sophia, Cesariny, Menez, Régio, Agustina, Pascoaes, etc.) tivesse criado um módico de interesse cultural digno desse nome, alargado com lucidez a este ramo das ciências sociais e a estas tão relevantes figuras dele.

A organização desta Correspondência (1935-1964) é, todavia, exemplar. As cartas foram arrumadas em capítulos que assinalam cinco fases específicas da vida de Jorge Dias: “Anos sombrios e revoltados (1935-38)”; “Cartas alemães (1939-43)”; “Entre os EUA e a Europa (1950-54)”; “Cartas de África (1957-59)”; “O país todo e um museu (1960-64)”, cada um deles exaustivamente apresentados e comentados por João Leal e Catarina Belo, sua ex-aluna. A “muito estreita e sólida amizade” entre Jorge e Ernesto fica documentada neste epistolário “descontínuo”, que o ilustra de forma “simultaneamente peremptória e comovente” (p. 15) para um período de 30 anos, depois do qual trabalharam juntos e a necessidade de se corresponderem praticamente acabou. Mas é também, ou é sobretudo, “um contributo para um melhor conhecimento da actividade de Jorge Dias e da sua equipa. E é, simultaneamente, uma contribuição relevante para entendermos os percursos e os estados de espírito que — entre 1935 e 1944 — irão conduzir Jorge Dias e Ernesto Veiga de Oliveira à antropologia” (pp. 17-18).

Tanto um como o outro estavam, em jovens, muito longe desse interesse e dessa vocação. Nascidos em famílias de prestígio do Porto (Vasco Nogueira de Oliveira, pai de Ernesto, foi presidente da câmara e da Santa Casa da Misericórdia da cidade; António José Dias, pai de Jorge, empresário e negociante, fundou as Tintas CIN e foi sócio de dois cinemas, um dos quais o Batalha), os seus começos não foram auspiciosos. Dias foi caixeiro-viajante de sabonetes e cabos de chapéu de chuva, antes de voltar à escola, que decidira abandonar ainda na quarta classe. Veiga de Oliveira via a sua vida andar para trás como gerente duma garagem em Lisboa, função imposta pela família para a qual não se sentia competente, nem de todo o satisfazia. Nas cartas do primeiro ciclo, escritas num inescapável “tom sombrio e revoltado” (p. 26), encontramos expressões muito fortes como “indolência medonha”, “inutilidade absoluta”, “esterilidade viciosa”, “quiméricos desesperos”, “morbidez sedentária”, “mundo hostil”, “miserável expectativa”, “perpétua e insolúvel hesitação”, “desordem espiritual”, “párias miseráveis”, “mórbidas tristezas”, “mediocridade incomensurável”, “dolorosa ansiedade”, “vida absurda”, “a chaga pobre da sedentária humanidade”, “atoleiro”. Um e outro sonham com uma vida ao ar livre, que pusesse de lado “comodidades e consideração social”, e ainda assim fosse “um caminho”. “Se bem que não seja a estrada alcatroada e plana por onde segue o resto da humanidade, é pelo menos um carreirinho tortuoso e alcantilado, mas que nos deixa ver horizontes mais largos” (Dias, p. 109).

Título: “Correspondência (1935-1964). António Jorge Dias e Ernesto Veiga de Oliveira”
Organização: João Leal e Catarina Belo
Editora: Etnográfica Press
Páginas: 366. Edição digital

A “agreste solidão da liberdade” encontram-na em inesquecíveis passeios pelas serras nortenhas, com amigos, numa vagabundagem feliz, “a única vida verdadeira e boa”, como dirá mais tarde (Maio de 1939; p. 159). A dada altura, surge a pergunta: “A vida será só contabilidade?” (p. 45). Em fevereiro de 1937, Ernesto — tinha então 26 anos — comunica: “A vida aqui [em Sagres] devia ser maravilhosa. Sou amigo de toda esta gente simples, que gosta imenso de me ver pintar; podia ir com eles à pesca, na solidão do mar, entre almas inocentes e selvagens. Ir à pesca, num destes barcos pobres, de vela alçada, de noite, além da estupenda penedia!” (p. 100). Duas semanas antes, Jorge escrevera-lhe isto: “Há duas condições sem as quais a vida é para nós impossível: contacto com a natureza e liberdade de corrermos para onde quisermos, quando sentirmos necessidade disso” (p. 88). Numa das cartas, lê-se este conselho a Ernesto: “Deixe tudo! Não faça caso de nada e siga o seu destino. Aproveite a felicidade imensa de ser como é e poder dar largas à sua tendência. Não se meta em escritórios, nem negócios, nem advocacias, nem nada. Aproveite os rendimentos de seu Pai, e viva a sua verdadeira vida. Pelo menos, não se meta em nada que lhe tire inteiramente a liberdade” (p. 152). “A vida só é grande quando nos sabemos desencaroçar!”, advogará anos mais tarde (p. 212). A empolgante amizade juvenil entre Jorge Dias e Ernesto Veiga de Oliveira, que este feixe de cartas permite conhecer, surpreende certamente quem deles apenas sabe a obra fundamental que, cada um a seu lado, mais tarde nos deixariam.

Em 1939 Jorge Dias vai para a Alemanha como leitor a serviço do Instituto de Alta Cultura. Primeiro em Rostock, depois em Munique, até 1942, e por fim Berlim, até Abril de 1944, “quando os bombardeamentos aliados tornaram insuportável a vida na capital alemã” (Leal, p. 124). Tudo mudaria em cinco anos. O encontro com o filólogo Gerhard Rohfls (1892-1986) e o incentivo de Margot Schmidt — “uma conselheira excepcional” (p. 187), que conheceu no início de 1940 — para o estudo de Etnologia fizeram Jorge Dias preterir outras áreas de conhecimento, a Psicologia entre elas, e conceber a tese de doutoramento que o celebraria. O tema Vilarinho das Furnas já estaria decidido no verão de 1941, e a Etnologia — então Geografia Humana, Wolkskunde — apresentava-se, como escreve João Leal, “como uma maneira de obter um enquadramento institucional para o gosto de ambos pelas “vagabundagens” nas serras do Norte do país”, “com a vantagem — aponta Dias — de termos uma recomendação do ministério e um ordenado todos os meses” (p. 136). Foi, todavia, o relacionamento amoroso com Margot a trazer-lhe a paz: “Posso discutir com ela todos os assuntos e vejo às vezes coisas que só não era capaz de ver. De resto sou livre, livre como nunca fui” (p. 189).

Ainda em 1941, perante algum desânimo de Ernesto, escrevera-lhe: “Você tem de seguir o seu destino dê para onde der! […] Imponha-se, e limite os direitos dos outros sobre si. […] Você tem dentro de si mundos que têm de tomar uma forma qualquer e não podem morrer misturados com consumições. Rebente com as amarras e seja livre” (p. 179), porquanto “nós somos, no fundo, dois grandes vagabundos de olhos extasiados perante o mistério da vida” (p. 206). A contínua referência à liberdade pessoal acima de tudo permanece, mesmo quando Jorge Dias já se sente o “gigante” (p. 188) que Margot fez dele. Por exemplo, descreve em setembro de 1941 uma excursão de 100 km a pé pela Suíça-Fracónia, com académicos de várias nacionalidades, “uma paisagem lindíssima ora por vales cortados a pique em rochas calcárias, ora por florestas ébrias de colorido e luz”, admitindo que esses cenários “duma beleza incontestável e o sol, o ar livre e a vagabundagem deram-me uma frescura à alma, que até me apetecia cantar” (pp. 190-91). Mas o sucesso da “corrente elétrica a correr em mim”, a que Dias se refere a 11 de março de 1942, contrasta a par e passo com a “monotonia portuense” (p. 202) a que a inércia de Veiga de Oliveira parece estar submetida. Em Novembro, de volta a Bernau, depois dumas férias em Portugal, confirma: “Esta paisagem grande e fria, esta gente ponderada e romântica, idealista e culta obrigam-me a tomar perante a vida uma nova atitude: mais reflectida, mais lúcida e ordenada, mais positiva e activa e decididamente mais útil” (p. 206).

Nesta mesma carta, e pela primeira vez neste epistolário, vislumbra-se o que viriam a ser estes dois, e a consciência do muito que estava por fazer no país e a breve prazo. “A época é a melhor para estes estudos, pois o que se não fizer nestes decénios nunca mais se fará, porque desaparecerão todos os restos das velhas tradições. Estas férias já devíamos vaguear muito por serras do Norte, para possivelmente publicarmos qualquer coisa juntos antes da sua licenciatura, e depois, meu caro Ernesto, a nossa vida será lado a lado, por serras e vales, pelas praias cheias de sol, pelas romarias coloridas e barrulhentas e pelos grandes planaltos silenciosos e desertos em que velhos pastores perpetuam costumes milenários” (p. 208; itálico meu). Não sucedeu desta maneira linear, como sabemos, pois antes teve de acontecer “a extraordinária internacionalização” de Jorge Dias, com participação em congressos e conferências pela Europa e Américas, contactos com pares académicos (caso especial será o de Charles Wagley, 1913-91), num ritmo acelerado que lhe proporcionou prestígio e certamente acesso a um outro patamar de conhecimentos, com visitas a centros de ensino e investigação e a reservas indígenas no Brasil e nos Estados Unidos. “É aqui — nos Estados Unidos da América — que a antropologia toma o seu verdadeiro significado”, escreverá a Ernesto a 16 de Dezembro de 1950.

Em 1953, Dias conseguiu finalmente a contratação de Veiga de Oliveira para a sua equipa no Centro de Estudos de Etnologia Peninsular, mas o velho sonho de trabalharem juntos não se concretizou como previsto, pelos encargos extranacionais do primeiro (“consegui em cinco anos uma posição internacional extraordinária”, p. 226), ficando Ernesto, com Fernando Galhano, e a partir de 1959 com Benjamin Pereira, a “assumir um papel cada vez mais preponderante na investigação em território nacional” (Leal, p. 228). Em consequência disso, o epistolário, agora muito menos abundante, passa a tratar dos trabalhos em curso, quer de um quer de outro, em campos claramente distintos: arquitetura popular e festividades cíclicas para um, a África portuguesa para o outro — em particular os Macondes moçambicanos, trabalho com o qual Jorge Dias obteria em 1964 o primeiro doutoramento em antropologia cultural e social em Portugal. E embora admita “tenho muitas vezes pena de vos ter abandonado para seguir tão desvairados caminhos” (carta de Joanesburgo, 15 Novembro de 1959; p. 263), a verdade é que Jorge Dias foi acompanhando e comentando os trabalhos dos outros, com conselhos e recomendações muito válidos, a ponto de escrever “Felizmente que vocês seguiram os velhos trilhos etnográficos que eu tinha começado a rasgar, com tanta segurança e êxito que eu já nada tenho a recear pelo futuro da nossa obra” (idem), a ponto de poder escrever, a 5 de dezembro desse mesmo ano: “Ou não me engano muito ou daqui a uns dez anos o nosso Centro é uma instituição notável no país, pela obra realizada. É tudo uma questão de orientar bem o trabalho e de trabalhar com perseverança” (p. 266; itálico meu). Não se enganou nem um pouco, de facto. Mas ao mesmo tempo pôde apontar que um raio de inquirição demasiado concentrado no Norte haveria de comprometer o crédito do centro de estudos, servindo de advertência o aviso de que o geógrafo Orlando Ribeiro estava em Tavira a estudar os telhados de tesoura (v. pp. 267-68). E há também a muito lúcida ideia de “uma distribuição internacional inteligente” (p. 294) dos trabalhos que vão sendo produzidos e impressos.

Entre 1960 e 1965, Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira vão estudar e inventariar — com dinheiro da Fundação Calouste Gulbenkian — os instrumentos musicais populares portugueses. Não só a pesquisa é feita “em condições excepcionais” (cit. p. 275) que pela primeira vez os levou ao Sul e à Madeira e Açores, como todos os 486 instrumentos recolhidos nessa campanha serão doados ao Museu Nacional de Etnologia pela fundação dirigida por Azeredo Perdigão, depois de em 1964 e 1966 ali terem sido expostos e divulgados num estudo impresso pela mesma instituição. Para entender a importância da Gulbenkian no desenvolvimento destes inquéritos etnográficos e antropológicos, estas cartas de Jorge Dias não podiam ser mais explícitas, mas as de Veiga Oliveira, “incorrigível melómano, de cultura musical vasta e de gosto exigente” (Leal e Belo, p. 281), não são menos que isso, e a perspectiva de que um trabalho bem feito assegurará financiamento generoso para campanhas futuras decorre em alguma desta correspondência, agora dada a conhecer. Em maio de 1960, Jorge Dias poderá dizer: “Vós sois a minha família etnográfica que, embora sem laços de sangue, me prende por laços de afeição igualmente estreitos” (p. 308; itálico meu) — numa carta em que também escreve “Li o teu São Martinho! És um homem formidável! Qualquer coisa que te peçam e tu fazes logo um trabalho extraordinário!”.

Está bom de ver que uma fraternidade científica deste tipo e calibre humano haveria de deixar uma pegada indestrutível na cena portuguesa, algo que depois deles jamais foi tentado da mesma maneira e com idêntico alcance. Este livro e os que lhe seguirão, pelo menos, conservarão essa memória, apontando-nos o fracasso de quem veio depois. Não é mau de todo, se servir de lição…

A 18 de Setembro, quinta-feira, pelas 18 horas, no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, será lançado o livro “Jorge Dias e Companheiros. A pesquisa etnográfica do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular (1947-1968)”, de João Leal.

Apresenta o livro Clara Saraiva, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.