A notícia do descarrilamento do lisboeta elevador da Glória foi dolorosamente surpreendente, sobretudo pelo elevado número de vítimas mortais: paz às suas almas! Esse transporte da Carris percorria a breve distância entre o Largo dos Restauradores e o Jardim de São Pedro de Alcântara e é um dos ex-libris da cidade.
Aos especialistas compete apurar as causas técnicas do acidente, mas a todos os cidadãos interessa saber se houve responsabilidade imputável aos dirigentes da transportadora, aos responsáveis pela manutenção desse equipamento, ou aos autarcas da cidade.
É salutar o princípio da separação de poderes, em que assenta o Estado de Direito democrático e, por isso, é de evitar a promiscuidade entre o poder executivo e judicial, nomeadamente quando a política interfere no funcionamento dos tribunais, ou quando os magistrados se servem da justiça para fazer política. Não sou a favor de sistemas judiciais em que se aplicam penas de morte e de prisão perpétua, mas aprecio os países que praticam a cultura da responsabilidade.
A 15 de Janeiro de 2009, o voo 1549 da US Airways, ao colidir com um bando de gansos do Canadá, perdeu os seus dois motores, pouco depois de ter descolado do aeroporto de La Guardia, em Nova Iorque. Dada a colisão e a inoperacionalidade de ambos motores, era urgente uma aterragem imediata. Não sendo factível o regresso ao aeroporto de partida, nem a opção por nenhuma outra pista de aviação, o Capitão Chesley ‘Sully’ Sullenberger viu-se obrigado a pousar o Airbus A 320 no rio Hudson, salvando os 155 passageiros a bordo, bem como a respectiva tripulação. “Esta aterragem de emergência e a evacuação da aeronave, sem a perda de nenhuma vida humana, é uma conquista heróica e única da aviação” e, por isso, a respectiva tripulação foi condecorada com a Medalha de Mestre da Guild of Air Pilots and Air Navigators.
As averiguações sobre as possíveis responsabilidades dos pilotos não tiveram lugar um mês depois do acidente, nem sequer uma semana mais tarde. Com efeito, foram ouvidos logo no dia seguinte, 16 de Janeiro, que é a data do relatório preliminar, que ilibou a tripulação de qualquer culpa ou responsabilidade. É obra!
Esta diligência contrasta com a proverbial irresponsabilidade nacional, aliada à não menos habitual morosidade judicial. A impunidade nacional ficou bem patente no caso Camarate, em que, entre outros, morreu o então primeiro-ministro – diga-se de passagem que, embora fosse justíssima a homenagem, foi muito infeliz dar ao aeroporto portuense o nome de uma vítima de um acidente aéreo! – e em que nunca, apesar das inúmeras comissões parlamentares de inquérito, se chegaram a apurar as responsabilidades criminais dos executores e mandantes desse atentado. Por sua vez, o actual julgamento de um antigo primeiro-ministro, que há mais de dez anos já tinha estado nove meses preso pelos indícios que só agora o levaram a sentar-se, finalmente, no banco dos réus, prova a clamorosa lentidão da justiça portuguesa.
Sobre a responsabilidade política há dois extremos a evitar: o de considerar que tudo o que acontece é da responsabilidade dos governantes locais e/ou nacionais; e o contrário, ou seja, o de entender que os titulares de cargos políticos são, por regra, inimputáveis e, portanto, não respondem por nenhuma deficiência do sistema.
Há quem entenda que o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa é responsável, em termos políticos, pelo acidente do elevador da Glória, porque o mesmo ocorreu na sua autarquia. A este propósito, o Professor André Azevedo Alves, em crónica no Observador de 10-9-2025, afirmou que, “mesmo que não haja nenhum erro específico e directamente relacionado a apontar como causa imediata da tragédia, há uma responsabilidade política objectiva pela inércia na substituição, actualização e implementação de mecanismos de segurança que garantam redundância em equipamentos deste tipo.” O ilustre cronista também entende que a responsabilidade política do autarca ficou agravada por se encontrar em fim de mandato: “O caso seria mais discutível se estivéssemos na parte inicial do mandato, mas ao fim de quatro anos há responsabilidades políticas claras que devem ser assumidas perante a tragédia.”
Se se reconhece, como é o caso, que não houve “nenhum erro específico e directamente relacionado a apontar como causa imediata da tragédia”, não parece razoável entender que há responsabilidade política, nem muito menos que a mesma seja “objectiva” e “clara”. Supõe-se que o presidente da edilidade deveria ter providenciado a “substituição, actualização e implementação de mecanismos de segurança que garantam redundância em equipamentos deste tipo”, mas trata-se de uma questão técnica tão sofisticada que só dela se poderia aperceber quem é perito na matéria! Se um passageiro de um táxi morrer num acidente, porque o air bag ou o seu cinto de segurança não funcionaram, não é razoável supor que o autarca é politicamente responsável. Faz sentido que o titular da autarquia responda por uma gestão que não é manifestamente da sua competência?! Ora, como é óbvio, o autarca não tem responsabilidades ao nível da manutenção das carruagens e elevadores da Carris.
O extremo oposto, ou seja, o da sistemática impunidade dos responsáveis políticos, também não é, em termos morais, aceitável. Se, por hipótese, se comprovasse que um governante tomou uma decisão que gerou insegurança para os passageiros dos transportes públicos, é óbvio que seria, em termos morais e políticos, responsável pelos danos decorrentes dessa sua opção e, ocorrido um acidente por este motivo, procederia a responsabilização politica e, eventualmente, criminal, desse político. Aos que ocupam cargos públicos corresponde uma maior honra, mas também uma maior responsabilidade.
À política, o que é da política, à justiça o que é da justiça, e à moral o que é da moral. Usar e abusar dos juízos éticos, por mera conveniência eleitoralista, desprestigia a moral e a política. Quando, na política, se procura o espectáculo e não o bem comum, exigem-se gestos teatrais, como demissões ribombantes, até mesmo em vésperas de eleições, em que o voto dos munícipes será, afinal, o veredicto final. Há um antiquíssimo provérbio chinês que também se aplica a estes casos: quem, de punho fechado, aponta o indicador contra alguém, tem três dedos apontados contra si.