Há uns anos, numa consulta de Enfermagem, um doente fecha a porta do gabinete, e entre gritos e ameaças, atira-me objetos. Não consegui reagir e não me lembro do que ele disse. Lembro-me apenas do silêncio que senti ecoar lá fora, nos corredores do serviço de radioterapia, nas paredes do Instituto… e lembro-me do tom e do cheiro da raiva. No final chorou compulsivamente,
“Os gritos não são para si, são para o sistema que não funciona e que me deixa desesperado e revoltado”.
Apesar da distância temporal, as palavras continuam a ecoar como se tivessem sido proferidas ontem. Representarão talvez, na sua essência, a revolta contra as respostas que tardavam, o peso significativo da burocracia e a frustração de quem sentia a morte por perto.
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) celebra mais um aniversário, e a festa far-se-á entre aplausos, gritos e muitos silêncios, talvez demasiados.
O SNS é uma das conquistas mais importantes da democracia portuguesa. Contudo, nos últimos anos, a sua fragilidade tem-se tornado evidente, sobretudo no que diz respeito a um dos seus princípios basilares mais estruturante, a equidade no acesso.
O problema não é simples e não se resolve com medidas avulsas e tímidas. Exige um investimento consistente e também (muita) coragem política para reformar, modernizar a organização dos cuidados e valorizar os profissionais que diariamente o sustentam e elevam. É necessário avançar com a reorganização dos cuidados de saúde primários, aliviar a pressão hospitalar, modernizar sistemas de gestão e modelos assistenciais, apostar na digitalização, criar carreiras condignas e atrativas.
É uma questão de ação política e não apenas de vontade. É uma questão de força motriz, a que reside nos profissionais de saúde, também e sobretudo nos Enfermeiros – que, no entanto, são dos mais sobrecarregados, escassos e subvalorizados. Facto que tem consequências humanas e estruturais já conhecidas.
O número de Enfermeiros que integra a maioria das equipas e serviços é, demasiadas vezes, metade do recomendado, com efeitos graves para os destinatários dos cuidados, como por exemplo o aumento da taxa de mortalidade.
Efeitos que se fazem sentir também em todo o sistema de saúde português. O rácio de Enfermeiros mantém-se 13% abaixo da média da União Europeia e, em 2024, o SNS gastou quase 108 milhões de euros em horas extra de enfermagem, um aumento de 20% face ao período homólogo.
Aquilo que deveria ser um desvio, está a transformar-se num padrão, serviços com dotações inseguras e níveis elevados de burnout nas equipas. O cenário é cinzento em termos de carência de profissionais e de sobrecarga de trabalho, com horários sustentados por sucessivas horas extraordinárias.
Na região sul há mais de 200 camas encerradas por falta de Enfermeiros. E a considerar-se aquilo que se constata diariamente nos diferentes contextos de cuidados, deveriam estar encerradas muitas mais.
Sob enorme pressão, os Enfermeiros demonstram diariamente resiliência e uma dedicação que ultrapassam largamente o exigido por qualquer dever deontológico.Recentemente, a tragédia ocorrida no Elevador da Glória voltou a expor a importância vital do SNS e das equipas. O que testemunhámos foi, mais uma vez, um exemplo do que significa servir a sociedade com espírito de missão. Mas não basta aplaudir e dar como adquirido o sentido de humanitude.A celebração dos 46 anos do SNS deve ser também uma oportunidade para refletir sobre o que foi alcançado, reconhecer as suas fragilidades e delinear estratégias sérias e eficazes que garantam a sua sustentabilidade. Se queremos um SNS capaz de responder às exigências do futuro, precisamos de atrair, valorizar e reter profissionais, sobretudo Enfermeiros. Cuidar de quem Cuida é a única forma de garantir que o sistema continuará a proteger (nos).