Na primeira volta das eleições presidenciais de 1986, que entraram para o imaginário do regime como uma espécie de recriação política de uma batalha entre as famílias Stark e Lannister, a esquerda estava ruidosamente dividida. Mário Soares, Salgado Zenha e Maria de Lurdes Pintasilgo tiveram de lutar entre si, sem tréguas nem misericórdia, pelo espaço de todos aqueles que queriam desesperadamente evitar que Diogo Freitas do Amaral chegasse à Presidência da República. Não estava em causa apenas uma distribuição aritmética dos votos para escolher qual seria o adversário final da direita — ali, decidiu-se se a esquerda dos anos seguintes em Portugal seria “moderada” (com Soares), “eanista” (com Zenha) ou “basista” (com Pintasilgo). Olhando agora para trás, tendo nós a vantagem de conhecer a História, o resultado final parece evidente. Mas, na época, não era nada evidente — qualquer coisa poderia acontecer. O que aconteceu foi isto: na noite da primeira volta, Maria de Lurdes Pintasilgo conseguiu 7.38% dos votos; Salgado Zenha chegou aos 20.88%; e Mário Soares esticou-se, esforçadamente, até aos 25.43%. Este é o número que nos interessa para as próximas presidenciais, que se realizam daqui a breves meses: em 1986, para conseguir a passagem à segunda volta, bastaram 25.43% dos votos.
Ao ver isto, André Ventura deve ficar com a cabeça a fazer contas e com os olhos a brilhar. Nas últimas eleições legislativas, em maio, o Chega teve 22,76%; na sondagem publicada esta semana, atingiu os 26,8%. Isto quer dizer que, como candidato presidencial, André Ventura não precisa de se torcer e benzer para arregimentar votos de nenhum outro partido — só precisa de mobilizar os seus próprios eleitores. Se conseguir motivar, animar e entusiasmar os convertidos do Chega, isso poderá ser suficiente para passar à segunda volta.
Aí, como se sabe, o jogo muda. Numa eleição a duas voltas, o raciocínio do voto segue uma lógica implacável: no início escolhe-se e no fim rejeita-se. Na primeira volta, a maioria dos eleitores decide quem quer ter como Presidente; na segunda volta, decide quem não quer ter como Presidente. Todos os estudos de opinião mostram que a maior fragilidade política de André Ventura é, precisamente, a sua gigantesca taxa de rejeição. Mesmo quem não esteja munido de uma bola de cristal pode adivinhar que será difícil que o líder do Chega alguma vez consiga vencer uma eleição a duas voltas. Mesmo que, em janeiro, o seu adversário fosse o Rato Mickey (ou, no limite, António José Seguro), Ventura perderia sempre, trucidado pela soma inevitável de todas as outras forças políticas. A extrema-esquerda, a esquerda festiva, as várias tribos do socialismo e a direita moderada juntar-se-iam, com maior ou menor entusiasmo, para o travar.
Sucede, porém, que essa inescapável derrota nas presidenciais não seria um falhanço para o líder do Chega — seria, apenas, a antecâmara de uma possível vitória no futuro. Se passasse à segunda volta, Ventura poderia alimentar e engordar a narrativa da inevitabilidade da sua ascensão à liderança do governo. Poderia prometer, sem parecer um fantasista ou um desequilibrado, que o poder está a poucos eleitores de distância. Bastaria explicar isto: nas presidenciais, ele precisa de ter metade dos votos mais um; nas legislativas, basta conseguir mais um voto do que os adversários. É muito diferente e é muito mais fácil.
A matemática, a História e o sistema eleitoral aconselhariam André Ventura a candidatar-se a Belém. Enquanto nas próximas semanas Gouveia e Melo, Marques Mendes, António José Seguro e os restantes candidatos estarão a participar numas eleições presidenciais, ele estaria, na realidade, a participar numas eleições legislativas. Para os outros, ficar em segundo lugar seria uma derrota; para ele, nem por isso. Afinal, o plano do líder do Chega é ir de derrota em derrota até à vitória final.