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(A) :: Nem todos somos Charlie

Nem todos somos Charlie

Os inimigos de Charlie Kirk são os inimigos da civilização a que costumávamos chamar nossa, são os nossos inimigos e, sem vestígio de pudor, exigem pouco metaforicamente o nosso sangue.

Alberto Gonçalves
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Para os que não conheciam Charlie Kirk, há um vídeo que resume o que ele fazia: debater, trocar argumentos, incluindo com quem não tem argumento nenhum. O vídeo, filmado tipicamente num “campus” universitário, numa das sessões a que ele chamava “Prove Me Wrong” e nas quais conversava com voluntários, começa com o interlocutor a saudar Charlie Kirk: “Fuck you! I hate you!” (tradução livre: “Boa tarde, como estás? Tenho um enorme gosto em conhecer-te!”). Charlie Kirk responde: “Quer ter uma conversa com conteúdo?”. O interlocutor, um jovem com camisa de flanela, jeans e rabo de cavalo, aceita: “No, man. I just think you’re a fucking asshole!” (tradução exacta: “Claro que sim. Será um prazer.”) Charlie Kirk, calmo, insiste: “Quer conversar comigo?” O jovem, irado: “Certo. Não gosto de ti. Espalhas ódio. Espalhas preconceito. Não queres debater, só vens aqui para motivar os teus seguidores racistas.” Charlie Kirk, calmíssimo: “O que é que eu alguma vez disse de racista?” O jovem, impaciente: “Oh…” Charlie Kirk: “Pode citar alguma coisa?” [Nisto, um espectador intervém: “Sou hispânico e apoio o Charlie!”] Charlie Kirk, para lá de calmo: “O que é que eu alguma vez disse de odioso?” O jovem, descontrolado: “I fucking hate you! És horrível! Sai do meu ‘campus’!”, após o que vira as costas e vai embora. Charlie Kirk, quase em modo “zen”: “O que é que eu alguma vez disse de odioso? Tem um bom dia!” E acrescentou, a sorrir: “Pessoal, eis a esquerda americana!”

De facto. O jovem de flanela, sem culpa da flanela, é a representação perfeita da esquerda contemporânea, americana e não apenas americana. E não apenas esquerda. À superfície, é um simples retrato de uma gente abastecida a ódio que ocupa os dias a imputar ódio aos outros, raramente com razão, frequentemente sem razão nenhuma. Mas o paradoxo vai mais longe. A inversão dos valores é mais profunda. A distorção da verdade é mais minuciosa. Por isso Charlie Kirk, um provocador educado e inteligente que via na velha arte da dialéctica uma homenagem à liberdade, era um dos ódios predilectos dessa gente. E, confirmou-se na quarta-feira, um dos literais alvos.

Na quarta-feira, Charlie Kirk foi morto no Utah com um tiro certeiro na garganta. À hora a que escrevo, não conheço as motivações exactas do assassino, embora umas inscrições “anti-fascistas” ajudem à suspeita. Sei que muitos apreciaram o crime, e que milhares o celebraram aberta e espontaneamente no TikTok ou no Bluesky, que é a “rede social” criada para os que não suportavam o “discurso de ódio” que Elon Musk permite no X. Alguns tarados tentaram em vão disfarçar o transtorno e limitaram-se a “justificar” o assassínio com o direito ao porte de armas, de que Charlie Kirk era empenhado patrono e, logo, uma justa e irónica vítima. Uns tantos preferiram ignorar o assassínio e preocupar-se com as eventuais sequelas, já que aparentemente a única maçada resultante de abater um homem pacífico a sangue-frio é a possibilidade de Trump poder retirar “dividendos” [sic] da proeza. E depois houve os “media”, que da América à paróquia lusitana, com escassas excepções festejaram à sua maneira e trataram Charlie Kirk enquanto “activista de extrema-direita”, “radical pró-Trump” e restantes epítetos necessários à desvalorização de uma vida e à legitimação subtil e velhaca de uma morte. A ajudar discretamente à festa, o Parlamento Europeu recusou um minuto de silêncio em honra de alguém que morreu por prezar o pensamento e a opinião e a discussão, blasfémias na Europa de hoje.

A festa, assumida ou dissimulada, é natural, e proporcional ao regozijo pelo 11/9 e aos queixumes pelo falhanço dos atentados contra Trump. Estamos a falar de espécimes que abominam o confronto de ideias e a divergência e a diversidade autêntica, não a “diversidade” postiça que enfeita discursos e proclama virtudes. Acima de tudo, os espécimes abominam a realidade, que se esforçam por esconder sob um simulacro grotesco e totalitário. Charlie Kirk, que promovia o diálogo, era um “extremista”, ao contrário dos moderados que lançaram confetes quando o calaram pela força. Era um “nazi” que lutava pela sobrevivência de Israel, ao contrário dos resistentes que exaltam o extermínio dos judeus. Era um “racista” que não segregava raças, ao contrário dos ecuménicos que afundam as “minorias” numa cultura de dependência e irresponsabilidade. Era um “radical” que acreditava nos dois sexos biológicos, ao contrário dos progressistas que veneram setenta “géneros” míticos. Era um “homofóbico” que condenava a discriminação dos homossexuais, ao contrário dos tolerantes que marcham com o terror islâmico. Era um “fascista” que, ao contrário dos democratas, não comemorava a eliminação física dos adversários políticos. E sim, era um “fanático” que apreciava a Segunda Emenda, ao contrário das boas alminhas que acham que as armas somente são úteis para fuzilar os que defendem a posse de armas. Para os espíritos totalitários, como para os loucos, a linguagem, como a realidade, não se respeita: recria-se à medida dos seus apetites.

Entre as festividades pela morte de Charlie Kirk, repetiu-se por aí uma frase, com ligeiras variações e rancor similar: “Os que lamentam a morte dele também são o problema”. Significa isto que, descontadas a notoriedade e a eficácia retórica do “extremista pró-Trump”, todos os que partilham as suas convicções acerca dos méritos da expressão livre são candidatos a um fim semelhante. Os inimigos de Charlie Kirk são os inimigos da civilização a que costumávamos chamar nossa, são os nossos inimigos e, sem vestígio de pudor, exigem pouco metaforicamente o nosso sangue. A partir do instante em que a bala trespassou a carótida de Charlie Kirk e o carnaval irrompeu na Internet, ficou a impressão de que uma linha que desconhecíamos foi atravessada, e que a hostilidade que ele recusara e combatera se tornou do lado oposto demasiado explícita.

A violência “deles”, a violência consentida, estimulada ou, no limite, a própria, não começou agora. Mas agora é prometida em voz alta. Não sei se é viável dividir a sociedade com quem grita que nos quer mudos ou, se preciso for, mortos. No mínimo, não é confortável.