(c) 2023 am|dev

(A) :: Thérèse Martin: a mística francesa que quis mostrar que o Paraíso está ao alcance de todos

Thérèse Martin: a mística francesa que quis mostrar que o Paraíso está ao alcance de todos

Conhecida como Santa Teresinha do Menino Jesus, Thérèse Martin é uma figura central do Catolicismo do século XX. Novo musical conta a história da mística francesa que procurou um elevador para o Céu.

João Francisco Gomes
text

Dos frescos da Capela Sistina às missas de Bach, o sagrado e as expressões religiosas estão no centro de algumas das mais extraordinárias obras de arte da história da Humanidade. Hoje, essa relação é menos óbvia: num Ocidente crescentemente secularizado, onde os Estados laicos e os mecenas privados substituíram a Igreja no papel de principais financiadores da expressão artística, a religião está longe de ser o tema central da arte contemporânea. Que lugar ocupa o sagrado na cultura de hoje? Que espaço têm a fé e a espiritualidade, por exemplo, na programação dos teatros e das salas de concertos?

“A arte tem sempre uma aproximação ao transcendente”, responde ao Observador a encenadora Matilde Trocado, sentada numa esplanada em frente ao centro paroquial de São João de Brito, no bairro lisboeta de Alvalade. Lá dentro, um elenco de 24 atores e 13 músicos prepara-se para dar início a um dos últimos ensaios do musical Thérèse Martin, sobre a vida e a espiritualidade de Santa Teresa de Lisieux, popularmente conhecida como Santa Teresinha do Menino Jesus, uma das quatro mulheres reconhecidas pela Igreja Católica com o título de Doutora da Igreja.

A apenas quatro dias da estreia — que aconteceu na última sexta-feira, 12 de setembro, no Teatro Camões, em Lisboa —, a encenadora, que é também a autora do texto, recebeu o Observador na sala de ensaios onde ao longo das últimas semanas a equipa preparou o musical sobre a jovem que morreu em 1897 com apenas 24 anos e que se tornou numa das principais figuras de referência para crentes e não-crentes no século XX, homenageada pela Unesco como uma das mulheres que mais contribuíram, com a sua vida, para a defesa da paz e para a promoção de valores universais.

“A arte é uma porta aberta para o infinito e acho que essa porta aberta para o infinito nos atrai a todos, com mais fé ou com menos fé”, sublinha Matilde Trocado, encenadora que, entre outros trabalhos, já levou a alguns dos mais importantes palcos do país peças sobre a Madre Teresa de Calcutá e o Papa João Paulo II — e que assinou a direção artística dos principais eventos da Jornada Mundial da Juventude de Lisboa, em 2023. “Nem todos os meus projetos estão ligados à Igreja, mas a minha forma de viver a criação artística é sempre um bocadinho espiritual. Muitas vezes, a arte que não fala sobre Deus também fala sobre Deus.”

Thérèse Martin estreou-se na sexta-feira perante uma longa ovação em pé num Teatro Camões cheio e com várias figuras da hierarquia eclesiástica nacional nas primeiras filas, seguindo-se várias sessões ao longo do fim de semana na mesma sala, também praticamente esgotadas. O musical estará, a 30 de setembro, no Coliseu do Porto.

Escrito integralmente a partir dos textos da própria Teresa de Lisieux, com música composta por António Andrade Santos a partir das sonoridades de Debussy, Ravel e Satie (compositores franceses contemporâneos da santa), a peça segue a história de vida e as lutas interiores da autora de um dos escritos religiosos mais relevantes do último século, História de uma Alma, em que, a partir da sua própria fragilidade, Teresa desenvolve uma teologia da infância espiritual: a ideia de que o paraíso está ao alcance de todos, até dos mais incapazes, bastando que se abandonem nas mãos de Deus como uma criança se abandona nos braços dos pais.

Um elevador para o Céu

A ideia de fazer um musical sobre Santa Teresinha partiu da Ordem dos Padres Carmelitas Descalços em Portugal, a família religiosa a que a jovem padroeira de França (a par de Santa Joana d’Arc) pertenceu. Originalmente, Matilde Trocado foi desafiada pelos carmelitas a levar o musical aos palcos em 2023, por ocasião da presença de milhares de jovens de todo o mundo em Lisboa para a JMJ. Como a encenadora acabou por se envolver na organização da própria JMJ, o projeto sobre Santa Teresinha foi adiado para 2025 — coincidindo com o centenário da sua canonização pelo Papa Pio XI.

Matilde Trocado mergulhou a fundo na vida de Marie-Françoise-Thérèse Martin, nascida em janeiro de 1873 em Alençon, mais conhecida por Santa Teresa de Lisieux (por ter sido o lugar da sua morte em 1897) ou por Santa Teresinha do Menino Jesus e da Santa Face (o nome religioso que adotou quando entrou no Carmelo de Lisieux em 1888). A História de uma Alma, que reúne os textos autobiográficos de Santa Teresinha, foi a principal fonte da encenadora, mas não a única. “Há muita coisa escrita”, conta Matilde Trocado. “Há cartas, há poesia, há peças de teatro. Ela escreveu muito, apesar de ter vivido pouco.”

"A arte é uma porta aberta para o infinito e acho que essa porta aberta para o infinito nos atrai a todos, com mais fé ou com menos fé."
Matilde Trocado, encenadora

A encenadora visitou também Lisieux, onde hoje se situa o Santuário de Santa Teresinha, consultou os arquivos do Carmelo e acedeu aos documentos da causa de canonização, onde se encontram as entrevistas feitas a muitas das pessoas que a conheceram, para escrever um texto em que praticamente todas as palavras são inspiradas, quando não totalmente decalcadas, dos escritos da religiosa francesa.

Contar a história de Santa Teresinha implicava, para Matilde Trocado, contar a história da família Martin. “Também por isso, o musical chama-se Thérèse Martin. Fazia sentido que o nome da família estivesse presente”, justifica. Os pais de Santa Teresa, Luís e Zélia Martin, são também eles venerados como santos pela Igreja Católica. O casal teve nove filhos, dos quais quatro morreram ainda na infância; as outras cinco — Marie, Pauline, Leonie, Celine e Thérèse — tornaram-se todas freiras. A relação entre estas cinco irmãs e os seus pais constitui, de resto, a trama central do musical, que segue as tormentas interiores da pequena Teresa ao longo de uma vida pontuada pela tragédia: a morte da mãe, a demência do pai, a partida, uma a uma, das suas irmãs mais velhas, as suas segundas mães, para o convento e, finalmente, o combate interior com a dúvida e com a escuridão espiritual.

Num espetáculo que entretece momentos apoteóticos de música e dança protagonizados por duas dezenas de atrizes em palco com quadros da vida familiar e conventual da padroeira de França, o espectador é guiado pela própria Santa Teresinha — interpretada pela atriz Margarida Martins, de 26 anos — já no final da vida, a refletir enquanto observa os momentos da sua infância em Alençon, a morte da mãe, a partida da família para um novo começo em Lisieux, o abandono sentido com a partida das irmãs, a descoberta da própria vocação, a frustração com a rejeição inicial no convento, a entrada no Carmelo, as complexidades da vida conventual, a doença e a própria morte. Através de constantes saltos na linha do tempo — e no espaço, graças à multiplicidade de elementos cénicos que vão transformando o palco —, é possível acompanhar, de certa forma, o processo de construção de uma obra que é simultaneamente teológica e autobiográfica.

O espectador é confrontado, a todo o momento, com a grande questão da vida de Teresa de Lisieux: se for necessário ser sobre-humano para cumprir a dificílima tarefa de chegar ao Céu, o que será daqueles que se sentem fracos, impotentes e incapazes de o fazer? “Ela é uma pessoa que sofreu bastante na vida”, sublinha Matilde Trocado. “Ela percebe que sempre foi frágil e pensa: ‘Se é preciso subir uma escadaria enorme para chegar ao Céu, ser um super-herói, eu nunca vou conseguir. Mas sinto a vontade de lá chegar. Por isso, tem de haver outra maneira.’” Reside aqui a origem da teologia de Santa Teresinha, que se sente incapaz de subir os degraus da árdua escadaria para o Céu e procura um elevador para os mais fracos: o abandono total de si próprio nos braços de Jesus, como uma criança se abandona nos braços dos pais. A transformação interior ocorrida em Teresa de Lisieux no momento em que faz esta descoberta é, aliás, um dos momentos centrais do espetáculo, com o elemento visual da escada a dominar o palco.

É esta a “pequena via” de Santa Teresinha para chegar ao Céu: o despertar espiritual da jovem francesa para a ideia de que não era chamada a fazer coisas grandiosas, mas a fazer com amor todas as pequenas coisas do dia-a-dia. “Para a época dela, foi muito revolucionária”, sublinha Matilde Trocado, admitindo que “se calhar, hoje em dia, até nem estranhamos muito esta forma de Santa Teresinha ver as coisas”. No entanto, no final do século XIX, quando ainda estavam bem presentes na Igreja os ecos do rigorismo moral do Jansenismo, esta perspetiva tornou Santa Teresinha uma figura altamente popular, capaz de transformar o catolicismo do século XX e convertendo-se numa das santas mais veneradas em todo o mundo. Em Portugal é fácil constatar isso na maioria das igrejas paroquiais: serão poucas as que não têm uma estátua de Santa Teresinha do Menino Jesus, reconhecível pelo hábito de carmelita, pela cruz na mão e pelas rosas que leva junto do peito.

“A minha esperança é que as pessoas possam querer ler mais sobre Santa Teresinha, que desperte a curiosidade”, diz a encenadora. “Há muito mais devoção a Santa Teresinha do que eu imaginava. Mesmo neste processo, quando digo que estou a trabalhar nisto, há muitas pessoas que dizem que são muito devotas ou que têm alguém na família que é muito devoto. Mas, de uma maneira geral, é um nome que nos é familiar, mas não sei se muita gente conhece bem a história. É das santas, talvez a par de São Francisco de Assis e de Santo António, mais amadas no mundo. Atrai bastante crentes e não-crentes.”

A música que Santa Teresinha também ouviu

Porquê um musical para contar a história de Santa Teresinha? Matilde Trocado não tem dúvidas de que esta era a melhor forma de contar a história da jovem francesa do final do século XIX. “Vou responder com uma coisa que está nos escritos da mãe dela. Ela diz que, quando estava à espera da bebé Teresinha, ao contrário de todos os outros bebés, quando cantava, sentia que a bebé cantava com ela”, diz a encenadora. “A música já lá está desde a barriga da mãe.”

Ao longo do espetáculo, a história de Santa Teresinha é contada com recurso a múltiplos momentos musicais, interpretados ao vivo por uma orquestra de 13 músicos dirigida pelo compositor António Andrade Santos e pelo elenco em palco. Os espectadores deverão, ainda assim, sentir-se familiarizados com uma boa parte dos momentos musicais, inspirados em obras célebres de Maurice Ravel, Erik Satie e Claude Debussy, compositores franceses contemporâneos de Santa Teresinha cujas peças terão sido ouvidas pela religiosa. “Ela é padroeira de França, por isso tentamos ter França presente de forma especial”, destaca a encenadora.

"Tanto as pessoas que estão ligadas à religião como as que não estão tanto têm uma grande devoção a Santa Teresinha, e eu não sabia porquê. À medida que fomos percebendo mais a história dela, fui ficando com um carinho cada vez maior."
Margarida Martins, atriz que interpreta Santa Teresinha

O protagonismo da peça cabe à atriz Margarida Martins, que dá corpo a Santa Teresinha no final da vida — a personagem que guia o espectador pelos vários quadros da vida da freira francesa. Encontramo-la na agitada sala de ensaios no centro paroquial de São João de Brito, depois de um ensaio corrido da peça poucos dias antes da estreia, rodeada de adereços e figurinos ainda a receber acertos finais. Fez uma audição para este espetáculo movida pela vontade de trabalhar com a encenadora Matilde Trocado e foi escolhida para o papel principal.

Durante meses, não se limitou a ensaiar o texto: leu os escritos de Santa Teresinha e vários livros sobre ela, pesquisou por vídeos na internet e procurou conhecer a fundo a vida da mulher a quem dá vida em palco. O elenco conversou também com padres da Ordem Carmelita para aprofundar o conhecimento da vida e da espiritualidade de Santa Teresinha. “Eu conhecia o nome, mas não conhecia a história”, diz a atriz, que se descreve como uma católica que hoje pratica menos a fé do que no passado. “Nos ensaios, foi inevitável voltar aos meus anos de catequese.”

“Há uma paixão partilhada muito grande por aquilo que fazemos e por aquilo que nos move. Tanto na arte como na religião há muita fé”, sublinha. “Tanto as pessoas que estão ligadas à religião como as que não estão tanto têm uma grande devoção a Santa Teresinha, e eu não sabia porquê. À medida que fomos percebendo mais a história dela, fui ficando com um carinho cada vez maior. Acho que, crendo ou não, vir ver é uma ótima oportunidade para conhecer uma história muito bonita de superação e de amor, que acho que é importante nos dias de hoje. Quer seja o amor a Deus, quer seja o amor a qualquer outra coisa em que acreditemos.”

Madalena Alvim, atriz de 9 anos de idade que interpreta Santa Teresinha em algumas das cenas de infância, conta ao Observador que a peça lhe permitiu conhecer a história da santa francesa. “Agora sei quase toda a vida dela”, conta a criança. “Gostei muito de a conhecer.”

No princípio do século XX, Santa Teresinha do Menino Jesus foi a grande santa “sensação”, contava recentemente ao Observador o padre Ricardo Figueiredo, sublinhando que foi uma figura que trouxe à Igreja Católica a mensagem mais útil e necessária no tempo concreto em que viveu — à semelhança do que parece acontecer atualmente com o recém-canonizado Carlo Acutis, o primeiro santo da geração millennial, transformado em símbolo do catolicismo jovem contemporâneo. Cem anos depois da canonização, Matilde Trocado acredita que esta santa francesa ainda tem algo a dizer aos jovens de hoje.

“Quando fui a Lisieux, levei a minha filha mais velha, que tem 15 anos, e acho que, de facto, Santa Teresinha interessou-a, captou-lhe a atenção”, conta a encenadora. “A juventude vive num contexto que não foi aquele em que eu cresci. Vive num contexto de redes sociais, de parecer, de muita fachada, de muita imagem. A Santa Teresinha rasga isso um bocadinho ao meio: não é preciso fazer coisas extraordinárias, é preciso fazer coisas com amor, mesmo as coisas pequenas do dia-a-dia. Acho que Santa Teresinha, mesmo no contexto da Igreja, ajuda-nos a olhar para o que é essencial.”

“Uma masterclass sobre amor verdadeiro”

A vida de Santa Teresinha do Menino Jesus foi curta. A constatação da própria fragilidade levou-a a escrever amplamente, sobretudo nos últimos anos da sua vida e durante a doença que acabaria por matá-la aos 24 anos. A partir dos seus escritos, o musical de Matilde Trocado apresenta esta personagem central do catolicismo contemporâneo na sua dimensão fragilmente humana e profundamente mística.

A poucos dias da estreia, a encenadora não arriscava tentar adivinhar quem seriam os espectadores interessados no musical: “O público deve ser muito heterogéneo. Deve haver os devotos de Santa Teresinha, que só por ser Santa Teresinha vão querer ver. Mas espero que não só. Sei dizer da equipa: para fazer parte deste projeto, não foi um critério ter mais fé ou menos fé, mais ou menos devoção a Santa Teresinha.”

Essencialmente, diz Matilde Trocado, é a “humanidade muito grande” de Santa Teresinha que fica evidente no musical e que atrai a generalidade das pessoas, crentes e não-crentes, para a sua figura. “Ela viveu uma vida a falar sobre amor. Ler Santa Teresinha é fazer uma masterclass sobre amor verdadeiro, amor em ação, em coisas concretas, amor a acontecer mesmo”, diz a encenadora, sublinhando também a “confiança e o abandono nas mãos de Deus”, bem como o grande “encanto pela natureza”, como traços distintivos da santa francesa.

Matilde Trocado, que já levou a vários palcos nacionais múltiplos espetáculos relacionados ou não com a fé e a espiritualidade, coloca agora nos palcos do Teatro Camões em Lisboa e do Coliseu do Porto a vida de Santa Teresinha, numa época em que os temas do sagrado parecem mais afastados da cultura contemporânea. Ainda assim, a encenadora garante que não se sente num meio avesso à espiritualidade. “Às vezes, as pessoas podem achar que o meio artístico é hostil à fé”, sublinha. “Não é essa a minha experiência.”