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Accountability: eleições no rescaldo de uma tragédia

Não sei qual será a sorte de Carlos Moedas: talvez seja penalizado sem ser directamente responsável ou talvez ganhe as eleições apesar de ter responsabilidade. Nem uma coisa nem outra seriam inéditas.

Mafalda Pratas
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Na teoria da democracia e na ciência política, o conceito de accountability é um dos mais fundamentais. Curiosamente, e apesar da expressão ter a sua origem no francês antigo acontable, não tem uma boa tradução para português. As traduções existentes apontam para responsabilização e prestação de contas.  O significado é simples de entender: através do acto eleitoral, os cidadãos podem não apenas expressar as suas preferências ideológicas e políticas para o futuro, mas também levar em conta tudo o que se passou nos mandatos anteriores para julgar a qualidade dos políticos em funções e decidir se a reeleição é a escolha acertada. Por sua vez, através de uma delimitação temporal dos mandatos, os políticos em funções sujeitam-se a ter de prestar contas aos seus eleitores. Assim, gera-se uma “válvula de segurança” no sistema democrático que impede que os políticos ignorem por completo os interesses e opiniões dos eleitores. Permite, por exemplo, que os cidadãos se consigam livrar de políticos que se revelaram particularmente catastróficos para a democracia ou para a economia, se assim o desejarem. Apesar da accountability como prestação de contas não ser apenas concretizada através de eleições, estas são um dos seus mecanismos centrais.

Na sequência do trágico acidente do elevador da Glória, muito se tem falado em “responsabilidade política” e se o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, tem responsabilidade política perante o ocorrido. Os vários significados que podem ser atribuídos à expressão levaram a um debate intenso entre partidos e comentadores e até a confusões na interpretação das palavras do Presidente da República.

Naturalmente, do ponto de vista simbólico, ninguém nega que é o presidente da Câmara em funções que dá a cara pelo ocorrido e que deve liderar os esforços de apoio à população, de investigação às causas do acidente e de explicação do sucedido à população. Tudo isto são acções importantes que fazem parte da prestação de contas (na sua vertente não eleitoral). Desse ponto de vista, tem responsabilidade política, uma vez que o acidente ocorreu num transporte municipal sob sua alçada. No entanto, a expressão responsabilidade política tem sido utilizada também num outro sentido: o de accountability no contexto eleitoral. Isto é, a verdadeira pergunta que tem sido debatida, embora raramente de forma clara, é a seguinte: deve Carlos Moedas sofrer consequências eleitorais por causa das falhas que levaram ao acidente do elevador da Glória?

De facto, como referi, a ciência política na sua vertente empírica tem-se dedicado muito ao tema da accountability eleitoral, nomeadamente ao debate sobre se os eleitores são capazes, como seria ideal, de atribuir responsabilidades políticas de forma competente e consistente, gerando uma accountability justa e eficaz. Não é uma pergunta fácil de responder e o debate tem sido imenso. Um dos problemas é que o mundo e a sociedade são tão complexos que nem sempre é fácil identificar decisões políticas concretas numa cadeia de causalidade clara que conduz aos efeitos que sentimos na pele. Frequentemente, os cidadãos podem castigar eleitoralmente políticos em funções por desastres, tragédias e eventos negativos cujas causas não estão minimamente sob o controlo do político em causa. E, de forma semelhante, também podem premiar certos políticos em funções por coisas positivas que acontecem mas que em nada se devem a ele.

Um dos exemplos clássicos são os ciclos económicos internacionais. Recessões e períodos de crescimento económico que se devem a factores muito para além do controlo político doméstico ou local, mas que podem gerar consequências eleitorais enormes para os políticos que estão em funções, por acaso, naquele momento. Por exemplo, em países exportadores de matérias-primas (commodities), como o Brasil, a economia doméstica depende em larga medida dos preços dessas matérias-primas no mercado global, que geram períodos de prosperidade ou de forte crise. Naturalmente, os políticos locais não controlam essas flutuações do mercado global, mas vários estudos já demonstraram que nesses países os eleitores, ainda assim, penalizam ou premeiam os políticos pelo impacto que advém dessas flutuações globais. Outro exemplo que ilustra a dificuldade da tarefa em causa: uma accountability eficaz e justa implica que os cidadãos saibam qual a jurisdição correcta responsável por determinada política pública, entre as inúmeras jurisdições entrelaçadas na nossa vida – municipal, regional, nacional, europeia, etc. De onde veio a decisão? Nem sempre é fácil de perceber. Algumas análises mais intrigantes até sugerem que coisas como vitórias ou derrotas da equipa local de futebol americano podem ter impacto eleitoral local. Isto apesar de serem eventos completamente irrelevantes.

Como se tudo isto não bastasse, a tarefa torna-se ainda mais difícil porque só há eleições de 4 em 4 anos, mas há inúmeras políticas públicas e decisões importantes, com impacto na nossa vida, feitas ao longo de um período tão longo. E, portanto, os eleitores teriam de pesar o prós e contras nesse universo global de coisas, bem como as qualidades e competências dos outros concorrentes eleitorais, para fazer uma comparação adequada.

Se leu até aqui, o leitor já terá compreendido que almejar que o mecanismo da accountability funcione desta forma “ideal”, quase tecnocrática e algorítmica, é uma ilusão. Não admira que livros controversos como Democracy for Realists: Why Elections Do Not Produce Responsive Government de Christopher Achen e Larry Bartels, ou mesmo Against Democracy de Jason Brennan, que argumentam que a democracia não funciona, façam sucesso. Também não sei qual será a sorte de Carlos Moedas: talvez seja penalizado sem ser directamente responsável, ou talvez ganhe as eleições apesar de ter responsabilidade. Nem uma coisa nem outra seriam inéditas e o eleitorado é imprevisível nestas situações.

Mas há, no entanto, algumas lições a retirar de tudo isto, e talvez uma consolação. Em primeiro lugar, várias análises inteligentes já demonstraram que, em matéria de accountability, não interessa apenas o evento exógeno em si, seja ele um desastre natural ou uma evolução mundial fora do controlo do político local, mas também a reacção e resposta que os políticos dão a esses eventos e acidentes. Qual foi a sua resposta? Foi eficaz? Demonstrou competência? Conseguiu repor a segurança, a confiança e recuperar qualidade de vida às populações? Estas decisões – como se reage ao choque aleatório — estão sob o controlo dos políticos em funções. Podem revelar liderança e qualidade, ou o seu oposto, e ser recompensadas nas urnas.

Em segundo lugar, a accountability não é apenas eleitoral. Em casos como este, é importante que haja outras instituições e organizações, incluindo assembleias políticas, os media, outras entidades reguladoras e burocráticas do Estado, que possam fiscalizar com transparência o que ocorreu e que dêem essa informação aos eleitores. Infelizmente, não estou certa de que isso venha a acontecer. Espero estar errada. Num caso como este, incomoda ainda mais que se possa ir a eleições sem alguns esclarecimentos cabais.

Por último, e em relação à accountability nas urnas, as análises empíricas no seu conjunto revelam que, apesar de não serem perfeitos e cometerem alguns erros de atribuição de responsabilidade, os eleitores são competentes o suficiente para que, em média, consigam realizar os valores da accountability. Os resultados eleitorais não são aleatórios. Um político que cause uma situação grave ou muito negativa deve esperar, em média, ser penalizado nas urnas. Isto poderá parecer pouco. No entanto, daqui podemos retirar uma lição e uma consolação. O mais importante no valor normativo da responsabilização política – que, apesar de relevante, não é o único valor importante numa democracia – não é castigar ou recompensar os políticos, ou avaliá-los como se de um exame escolar se tratasse. O importante é que as instituições e o funcionamento real da democracia gerem os incentivos necessários para que os políticos em funções sejam obrigados a considerar o bem-estar e os interesses dos cidadãos. O fundamental é que os políticos saibam que não podem ignorar as opções e preferências dos cidadãos e que têm de considerar as consequências das suas decisões na vida das pessoas. Muitas vezes estas decisões podem passar despercebidas, mas por vezes em momentos de crise acabam por vir ao de cima.