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(A) :: "Democracia brasileira não se abalou" e Bolsonaro foi condenado a 27 anos de prisão. Mas a sua luta política está longe de terminar

"Democracia brasileira não se abalou" e Bolsonaro foi condenado a 27 anos de prisão. Mas a sua luta política está longe de terminar

O julgamento histórico foi um "check-up" da democracia brasileira, disseram os juízes. Consideram que o desfecho prova que está saudável, mas os EUA servem de aviso sobre como seria a "recaída".

Madalena Moreira
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A apenas 24 dias de a Constituição do Brasil completar 37 anos, a democracia brasileira testemunhou novamente um momento histórico: pela primeira vez um antigo Presidente foi condenado por tentativa de golpe de Estado. A condenação de Jair Messias Bolsonaro e dos seus sete aliados, que formam o “núcleo crucial” foi confirmada esta quinta-feira, durante a quinta sessão do julgamento na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Federal (STF).

O tribunal deveria reunir novamente esta sexta-feira para avaliar as penas, mas a sessão de quinta-feira revelou-se suficiente para selar as oito condenações e as respetivas penas, que variaram entre os 27 e os 16 anos de prisão. A pena máxima foi atribuída ao antigo chefe de Estado, pela sua liderança do plano. Depois, por ordem de envolvimento no eventos, os seus aliados foram condenados a 26, 24, 21, 19 e 16 anos — com Mauro Cid, que assinou um acordo com o Ministério Público, a ser condenado a apenas dois anos, em regime aberto.

Contudo, não foi necessário esperar sequer pelo fim da sessão desta quinta-feira para se confirmar a condenação. O voto da juíza Cármen Lúcia, a quarta magistrada a votar, bastou para selar a condenação. Foi Lúcia, aliás, que fez questão de sublinhar o aniversário da Constituição que se aproxima, para argumentar que, ao longo dos 37 anos que estão perto de ser comemorados, o Brasil testemunhou muitos momentos de “dor”.

“Desde 2021”, contudo, estes tornaram-se mais frequentes, criando um terreno cada vez mais fértil “ao grão maligno da anti-democracia“. Foi neste contexto que emergiu o plano para reverter o resultado das eleições presidenciais de 2022 e manter Bolsonaro no poder — mais um momento de “dor”. “O que há de inédito nessa ação penal é que nela pulsa o Brasil que dói. A presente ação penal é quase um encontro do Brasil com o seu passado”, declarou Lúcia.

Porém, nem só de dor se fez a Nova República. As décadas de democracia brasileira também tiveram a sua dose de “esperança”, considerou a juíza. Ora, o processo contra o antigo chefe de Estado e a sua cúpula política e militar também é um sinal de esperança, pois deu provas de que a “a democracia brasileira não se abalou” com a tentativa de golpe de Estado que culminou nos ataques do 8 de Janeiro de 2023, em que milhares de manifestantes invadiram a Praça dos Três Poderes.

A solidez da democracia brasileira e das suas instituições refletiu-se, elaborou a magistrada, no facto de o poder judicial ter conseguido sentar no banco dos réus as pessoas acusadas desse mesmo golpe — crimes que configuram um ataque aos direitos fundamentais de uma sociedade —, sem nunca os privar do seu direito ao “devido processo legal”, a uma defesa e a um contraditório. Porém, a relevância da condenação de Bolsonaro não se limita ao seu simbolismo.

A corrupção dos antigos Presidentes deu lugar ao golpe com generais do Exército

Os Presidentes do Brasil não são completos desconhecidos da justiça. Metade dos chefes de Estado que assumiram funções depois da redemocratização já foram presos: Lula da Silva, Michel Temer, Fernando Collor e, agora, Jair Bolsonaro. Aos processos mediáticos na democracia brasileira soma-se ainda o impeachment de Dilma Roussef. Alargando a contagem a todos os líderes da República brasileira, o número de líderes presos sobe para 10, em 37 Presidentes. Contudo, o caso de Bolsonaro distingue-se dos dos seus antecessores numa questão chave.

Tanto Lula como Collor e Temer foram presos (e, no caso dos dois primeiros, condenados — embora o processo de Lula tenha sido depois anulado) no âmbito de investigações a crimes de colarinho branco. Já Jair Bolsonaro foi esta quinta-feira condenado a 27 anos de prisão por cinco crimes bem diferentes: tentativa de golpe de Estado, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, organização criminosa armada, dano qualificado e deterioração de património protegido. A condenação não foi inédita apenas para o Presidente.

Também pela primeira vez, oficiais das mais altas patentes das Forças Armadas do Brasil foram condenados por golpe de Estado. São eles: os generais do Exército Augusto Heleno, antigo ministro do Gabinete de Segurança Institucional, condenado a 21 anos de prisão; Walter Braga Netto, antigo ministro da Defesa e da Casa Civil, condenado a 26 anos; Paulo Sérgio, antigo ministro da Defesa, condenado a 19 anos; e o Almirante da Marinha, Almir Garnier, condenado a 24 anos. Mauro Cid, antigo assessor de Bolsonaro e tenente-coronel do Exército foi igualmente condenado. Apesar de mais metade dos condenados serem militares, os juízes fizeram questão de salientar que este não foi um julgamento das Forças Armadas.

A maior parte do coletivo de juízes confirmou ainda a interpretação da Procuradoria-Geral da República (PGR) de que o golpe de Estado só foi impedido nas suas fases finais porque os líderes máximos do Exército e da Força Aérea se recusaram a colaborar com o plano e não cederam à “pressão” dos ministros.

O grupo de réus inclui ainda o antigo diretor dos serviços de informação (Abin), Alexandre Ramagem, que enfrentava apenas as três primeiras acusações e foi condenado a 16 anos de prisão, e o antigo ministro da Justiça, Anderson Torres, condenado a 24. Os juízes, com uma votação de 4 contra 1 deram como provado que o núcleo empregou “violência e grave ameaça” para tentar manter Bolsonaro no poder e derrubar o governo eleito de Lula — elementos penais centrais do crime de golpe de Estado.

O plano começou ainda no verão de 2021, com declarações públicas em que os réus questionaram o sistema eleitoral brasileiro e desacreditaram o poder judicial, e prolongou-se com uma campanha de desinformação digital que se estendeu durante toda a campanha e pré-campanha das eleições de 2022. Depois de a contagem dos votos ter dado a vitória a Lula da Silva, seguiram-se uma série de reuniões — com os restantes ministros, os embaixadores e as Forças Armadas — e a redação da chamada “minuta do golpe“, documentos que detalhavam os planos para efetivar o golpe, que culminou — e falhou — nos ataques do dia 8 de Janeiro de 2023.

— "Pessoa inteligente cuida da saúde para não tratar da doença."
—"Esse julgamento é check-up da democracia."
— "E eu espero que seja um remédio para que a doença não volte com frequência. A recidiva não é boa."
Cármen Lúcia e Flávio Dino em intervenção durante a votação

Os juízes consideraram ainda que todo este plano foi organizado de forma hierarquizada: no topo, a liderar os golpistas, estava Jair Messias Bolsonaro, pelo que este recebeu a pena mais pesada.

Julgamento foi “check-up” da democracia. Plano de Tarcísio de Freitas para 2026 pode ser “recaída”

Na sala de audiências do STF, quando já a condenação tinha sido garantida e Cristiano Zanin fazia a sua intervenção, comparou-se o julgamento a uma ida ao médico, o golpe a um “vírus” e a sociedade brasileira ao “paciente” em análise. “Pessoa inteligente cuida da saúde para não tratar da doença”, comentou Cármen Lúcia com Flávio Dino. “Esse julgamento é check-up da democracia”, declarou Dino. “E eu espero que seja um remédio para que a doença não volte com frequência. A recaída não é boa”, respondeu a juíza mais velha da secção.

A avaliação do lado dos réus foi totalmente oposta. Flávio Bolsonaro, filho do ex-Presidente condenado, declarou que “a pretexto de defender a democracia, os pilares da democracia foram quebrados para condenar um inocente”. Flávio, tal como muitos bolsonaristas, saudou a voz divergente do coletivo de Luiz Fux — que havia declarado não ser da competência do STF pronunciar-se sobre julgamentos políticos ou aos juízes ser agentes políticos — e condenou “a farsa” e o “joguinho combinado dos 4 outros membros”.

“Alexandre de Moraes acaba de provar que transformou o STF num grande teatro e usou a caneta para se vingar de Jair Bolsonaro. A mais alta Côrte do Judiciário está fazendo um justiçamento com as próprias mãos em praça pública”, escreveu esta quinta-feira. A mensagem terminava como todas as outras que deixou na sua página: “SUPREMA PERSEGUIÇÃO. QUEREM MATAR BOLSONARO”.

Apesar das críticas, os aliados de Bolsonaro não atiraram a toalha ao chão. Na frente jurídica, os seus advogados prometeram avançar com recursos sobre a decisão. De notar que apenas será possível um embargo de declaração, em que o caso será avaliado novamente pela mesma secção, e não um embargo infringente, em que a ação seria apreciada pelo plenário do STF — para isso, era necessário que pelo menos dois dos juízes tivesse votado pela absolvição.

Porém, na frente política, os bolsonaristas têm mais caminhos em aberto. A hipótese de Jair Bolsonaro se recandidatar à presidência em 2026 é impossível, dada a condenação, que o impede de poder voltar a concorrer a cargos públicos. Mas o seu nome continua a pesar no seio do Partido Liberal (PL). Isso mesmo foi dito pelo presidente Valdemar Costa Neto em entrevista à CNN Brasil. “O Bolsonaro é que vai decidir quem é o candidato a presidente e vice-presidente. Quem ele apontar será bem recebido e nós vamos cumprir a sua determinação”, declarou, mantendo, horas antes de uma condenação que parecia quase certa e que assim se confirmou, a “esperança” na sua candidatura.

Ora, Bolsonaro ainda não terá tomado uma decisão final sobre o seu sucessor, segundo fontes próximas do ex-Presidente, citadas pelo jornal Estadão. Mas entre os nomes mais à direita, há um que sobressai: o de Tarcísio de Freitas, governador do estado de São Paulo. Freitas já declarou que, caso seja eleito, irá iniciar o processo de amnistia a Bolsonaro. Assim, mesmo face ao aparente fracasso de um voto de amnistia no Congresso — processo que já deu os primeiros passos —, o perdão de Bolsonaro não dependeria do poder legislativo.

Em ambos os casos, Bolsonaro mantém uma mão no volante: seja por poder nomear o sucessor político ou por alimentar esperanças de um perdão. Mais: o voto de Fux pela absolvição revelou uma fresta no STF que também pode ser trabalhada a favor do líder brasileiro, argumenta Silvio Cascione, cientista político na Universidade de Brasília, no mesmo jornal.

O “perdão sem paz” dos Estados Unidos que ainda “podem fazer muito pelo Brasil”

Esta quarta-feira, enquanto Luiz Fux votava a absolvição de Jair Bolsonaro, um aliado político de Donald Trump, Charlie Kirk, era morto a tiro nos Estados Unidos. O incidente do outro lado do continente americano foi invocado esta quinta-feira por Flávio Dino para alertar para os perigos de insistir no perdão como solução para todo o processo.

“Há uma ideia segundo a qual a amnistia é igual a paz. E foi feito perdão nos Estados Unidos e não há paz. Porque, na verdade, o que define a paz, que sempre devemos buscar, não é a existência do esquecimento. A paz se obtém através do funcionamento adequado das instâncias repressivas do Estado”, analisou Dino.

Em Washington, como em Brasília, também eram traçados paralelos, mas do ângulo oposto. Dino viu no facto de Donald Trump ter amnistiado os manifestantes que atacaram o Capitólio no dia 6 de Janeiro de 2021 um erro. Já o Presidente dos Estados Unidos viu o erro no facto de os juízes do STF terem levado a cabo a condenação num julgamento, que anteriormente classificou como “uma caça às bruxas”.  “É muito parecido com o que tentaram fazer comigo, mas não conseguiram”, declarou Trump, revelando-se descontente com o desfecho do julgamento.

"O governo tem que ter juízo e se aproximar dos Estados Unidos, porque podem fazer muito pelo Brasil, pela nossa gente. Se os americanos resolverem ajudar o nosso país, isso aqui dá um salto. Eu acho que o Trump ainda vai fazer muito."
Valdemar Costa Neto, atual presidente do Partido Liberal (PL)

Alheios aos alertas de Dino, os apoiantes de Bolsonaro ainda veem no apoio de Trump uma outra saída para a condenação do líder brasileiro. A viver nos Estados Unidos, o filho Eduardo Bolsonaro fez questão de manter o Presidente norte-americano informado sobre todos os detalhes, segundo a jornalista da CNN Brasil, Debora Bergamasco. Valdemar Costa Neto vincou a ligação entre os dois países ao apontar que a embaixada no Brasil também assegurou esta comunicação.

Mas o líder do PL mostra-se confiante que o apoio norte-americano não se limitará à troca de informações. “O governo tem que ter juízo e se aproximar dos Estados Unidos, porque podem fazer muito pelo Brasil, pela nossa gente. Se os americanos resolverem ajudar o nosso país, isso aqui dá um salto. Eu acho que o Trump ainda vai fazer muito”, afirmou. Nesse sentido, a porta-voz da Casa Branca não recusou, na passada terça-feira, a utilização de “meios militares para proteger a liberdade de expressão ao redor do mundo” no caso de uma condenação.