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“Adilson”, a ópera crioula de Dino D’Santiago: “Nossos corpos também são pátria”

A partir de uma história real, feita de imigração, cidadania e legado colonial, o espetáculo estreia-se esta sexta-feira no CCB. Acompanhámos os últimos preparativos e falámos com os protagonistas.

Ricardo Farinha
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“Eu não sou português. Eu sou Portugal. Um país à espera.” Aos 41 anos, Adilson Correia Duarte vive desde os 11 meses de idade no país que, até hoje, nunca lhe deu a nacionalidade. Nascido em Angola, filho de pais cabo-verdianos, tem o passaporte de um país que nunca visitou, e uma imprecisão no nome do pai na sua certidão de nascimento levou-o a um pesadelo burocrático que se arrasta há quatro décadas. Verdadeira e singular, a história de Adilson representa a de muitos outros afrodescendentes em Portugal — e foi aquela que o seu amigo de infância Dino D’Santiago escolheu para simbolizar, na sua primeira ópera, a dura realidade de quem enfrenta uma vida de obstáculos por não conseguir documentação ou cidadania.

Precisamente intitulada Adilson, estreia-se esta sexta-feira, 12 de setembro, no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, onde fica até dia 14. As sessões estão esgotadas há largos meses. Depois, esta “ópera crioula” segue até ao Theatro Circo, em Braga, a 19 de setembro; ao Teatro das Figuras, em Faro, a 25 de outubro; e ao Teatro Aveirense, em Aveiro, a 7 de novembro. Uma data em Leiria será anunciada em breve e estão a ser estudadas outras hipóteses para que o espetáculo circule pelo país.

O Observador esteve no ensaio geral na tarde desta quarta-feira, 10 de setembro, no Grande Auditório do CCB. No fosso, uma orquestra dirigida por Martim Sousa Tavares recebe as mais recentes indicações do maestro antes de um dos últimos ensaios. Testam-se as afinações finais de luzes, o espetáculo é interrompido a meio pelo menos um par de vezes para que os músicos e os atores (que também cantam, sendo uma ópera) estejam coordenados nos tempos.

O verdadeiro maestro, porém, é Dino D’Santiago, instalado na régie, longe dos holofotes e totalmente compenetrado em finalizar o espetáculo para o qual foi desafiado pela BoCa — Bienal de Artes Contemporâneas. A ocasião são os 50 anos das independências dos PALOP — o início do período pós-colonial, tanto na velha metrópole como nas antigas colónias, um processo que trouxe a liberdade a muitos mas que não é livre de falhas, negligências e dos seus próprios traumas.

O ponto de partida para esta narrativa é um telefonema real, entre Dino D’Santiago e o seu irmão Elísio, que nos últimos anos o tem vindo a acompanhar nos seus concertos. “Lembras-te do Adilson? Uma vez estava com ele no aeroporto e não o deixaram embarcar”, recordou Elísio. A cena aparece replicada na ópera. Adilson tinha 18 anos quando se viu impedido de rumar ao Reino Unido sem um visto. A mala estava feita, a viagem paga, o desejo de passar uma temporada em Inglaterra à flor da pele. E de repente chocou, às portas do avião, com o difícil facto de que, sem um passaporte ou um bilhete de identidade português, não poderia simplesmente embarcar para outro país da União Europeia, num tempo antes do Brexit.

Entre o extinto SEF, a nova AIMA e a embaixada de Cabo Verde em Portugal, Adilson atravessa um terror burocrático que se prolonga durante anos e mais anos, o rolo compressor de uma lentidão tecnocrata mórbida que desfaz sonhos e demole esperanças. Uma espera interminável e um desalento fatal quando falta sempre mais um documento, quando surge constantemente uma nova dificuldade, quando se passam horas e horas em salas de espera, quando os procedimentos e formulários se transformam em obstáculos à liberdade de viver.

"O Dino conhece profundamente a minha história e quase toda esta ópera é real, mas isto não é sobre o Adilson, é sobre algo que está normalizado na comunidade negra, que é um dado adquirido, tal como noutras comunidades imigrantes. Aposto que acontece o mesmo com a diáspora portuguesa fora de Portugal."
Adilson Duarte

E o pior é quando — como assistimos numa cena com outra das personagens que personificam diferentes nuances dos mesmos problemas e realidades, contribuindo para traçar um quadro maior e mais complexo — essas barreiras se tornam hostis e até violentas. “Vai-te lá embora para a tua terra”, diz um agressivo polícia do aeroporto a um homem angolano que só ao comer pitangas lembra o país a que chama pátria e que deixou há muitos anos. “Mas eu sou daqui, vivo aqui”, diz Adilson quando chega a sua vez. A polícia não se mostra satisfeita com a resposta. “Então, se te mandarmos para a tua terra e te deportarmos, para onde é que te mandamos?”

“Isto não é só um espetáculo, isto é totalmente político”

Entre o texto falado e cantado, há mornas que ganham outras vidas com o canto lírico, canções de Dino D’Santiago (Esquinas) ou Mayra Andrade (Vapor di Imigrason) que constroem imaginários culturais para tantas pessoas que vivem num limbo, na única terra que conhecem mas que não as acolhe como um dos seus, com a referência de um outro território que muitas das vezes nunca visitaram e que na verdade desconhecem. Sem nacionalidade, documentação ou aceitação, sem poder viajar ou cumprir tantos outros direitos.

“Eu sou apenas a cara de uma história que tem muitas caras”, conta-nos Adilson Duarte, bailarino e coreógrafo mais conhecido como Bonny The Gemini, no final do ensaio. O espetáculo encerra justamente com uma performance sua, utilizando habilmente o corpo — que também é pátria, como enfatiza a canção de Dino, embora não seja reconhecido como um corpo português pelo país onde vive desde que era um pequeno bebé.

“Quando o Dino me fez este convite, aceitei porque era maior do que eu… O Dino conhece profundamente a minha história e quase toda esta ópera é real, mas isto não é sobre o Adilson, é sobre algo que está normalizado na comunidade negra, que é um dado adquirido, tal como noutras comunidades imigrantes. Aposto que acontece o mesmo com a diáspora portuguesa fora de Portugal. Isto é lançar a luz sobre um problema dos imigrantes — e nesta ópera o Adilson é só isso, Adilson é igual a imigrante”, explica o bailarino, que se diz focar no lado positivo e na procura de soluções, em vez de apontar o dedo a quem tem culpa e responsabilidades. “E este não é um problema só da imigração, é transversal à sociedade portuguesa. Tudo em Portugal é lento.”

Numa ópera que se afigura mais como simbólica do que literal, Adilson é interpretado pela cantora e atriz Koffy, enquanto Soraia Morais ficou com o papel que representa Dino D’Santiago. “Para mim, um fator fulcral nesta história é dar voz à quantidade de casos que existem”, diz a atriz de Leiria, sendo que Dino D’Santiago fez questão de contar com um elenco de norte a sul do país, sobretudo afrodescendente e com uma forte presença feminina. “São pessoas que têm a vida empatada por existirem problemas de documentação. Eu própria não tinha noção do quão esta história existe e que é um pouco abafada, tendo em conta as muitas pessoas que ainda hoje estão nessa situação. Por isso, esta história é muito importante.”

Por sua vez, o cantor e rapper NBC, outro dos atores e protagonistas de Adilson, sublinha a relevância de estas histórias ocuparem um palco como o Centro Cultural de Belém, sendo que depois irão circular pelo país em diferentes teatros.

"Esta ópera traduz a linguagem do Dino, que é sinfónica — os ritmos, a estética — para a linguagem de orquestra. Isto vai ser feito com quatro orquestras diferentes [consoante a cidade], é um verdadeiro buffet de orquestras, e tenho a certeza de que as quatro vão gostar muito deste projeto, porque este estilo de música mexe com toda a gente."

“Quando acontece uma coisa destas num espaço como este, parece que chega a consagração e o reconhecimento real das milhões de histórias que existem. São as senhoras que estão aqui em baixo a trabalhar, que saem de casa às cinco da manhã para trabalharem nas casas das outras pessoas, as que estão a servir num evento, as que estão na cozinha ou na copa… Estas histórias existem, a toda a hora, à nossa frente. Só que, se não existe algo que te possa pôr em contacto com aquela pessoa, tu nunca vais reconhecer aquilo. Se não te toca, tu não vês. A empatia real e profunda que nos toca mesmo no coração e no espírito, que é difícil de explicar a quem não lá está, só mesmo com uma ópera”, acredita o artista.

Dino D’Santiago é o encenador e o autor do libreto, embora tenha partido de um texto do dramaturgo e jornalista Rui Catalão, intitulado Serviço Estrangeiro, numa mediação feita pelo encenador, programador e fundador da BoCa, John Romão. As canções originais também são de Dino, que trabalhou com o músico e produtor Djodje Almeida, um dos instrumentistas que se apresentam em palco, tal como o percussionista Iúri Oliveira, que também revela a sua faceta de ator, puxando um carregado sotaque às suas raízes angolanas. As composições foram arranjadas por João Martins, tendo cabido a Martim Sousa Tavares o papel de diretor musical.

“Isto é uma ópera com uma orquestra clássica no fosso, com recitativos, com texto falado, recursos que o Mozart e o Bach usavam… Continuam vivos e o Dino fazia questão de que isto fosse, de facto, uma ópera”, explica o maestro ao Observador. “E é engraçado porque traduz a linguagem do Dino, que é sinfónica — os ritmos, a estética — para a linguagem de orquestra. Isto vai ser feito com quatro orquestras diferentes [consoante a cidade], é um verdadeiro buffet de orquestras, e tenho a certeza de que as quatro vão gostar muito deste projeto, porque este estilo de música mexe com toda a gente. Mesmo quando a orquestra não toca e só há um riff de guitarra, os músicos estão todos a mexer-se e é muito bom podermos tocar uma morna, para não serem sempre valsas”, diz, sobre um espetáculo que conjuga o erudito e o popular no mesmo palco, procurando também quebrar barreiras nesse sentido.

Koffy, que está no centro da peça ao representar a figura de Adilson, tem provavelmente a voz mais importante nesta ópera — com um espetro impressionante na maneira como alcança diferentes notas e tons. “Parte do meu papel é representar tantas vozes que não são ouvidas aqui em Portugal — e noutros sítios. E fazer essa fusão entre a morna, a ópera e o canto lírico, que pode até ser polémico. Dá-nos direito a um momento de reflexão e para vermos que esta junção é possível. Seja musical, seja social… Essa combinação já descreve aquilo que estamos a tentar passar, aquilo que o Dino certamente está a querer pôr as pessoas a refletir.”

Embora tendo Dino D’Santiago como homem do leme, Adilson é uma construção conjunta, feita ao longo das semanas de ensaios, realça outra das cantoras e atrizes da peça, Rebeca Reinaldo.

“Não foi só um trabalho como outro qualquer, em que pessoas foram contratadas e está aqui um guião. Houve, desde o início, um processo de construção coletiva. Houve muita mudança desde o início até chegarmos aqui e senti mesmo que houve uma colaboração de cada um. E isto não é só uma história, são várias histórias — é a história do Adilson, é uma história real mas todos os dias ouvíamos mais histórias e… como é que é possível? Esta ópera, de uma forma muito bela e única, é um abre-olhos, uma chamada de atenção, mas feita de uma forma tão bonita como só o Dino conseguiria.”

Num dos últimos ensaios antes da estreia, entre as derradeiras arestas a limar e os nervos que antecedem a apresentação ao público, NBC remata ao argumentar com as intenções a que Adilson se propõe. “Apesar de ser algo belo, não gostávamos que ficasse só no belo. Isto não é só um espetáculo, isto é totalmente político. Cada um de nós terá de analisar o que quer ser neste país: que tipo de país é que queremos?”