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(A) :: O caminho do dinheiro, os elogios a Ivo Rosa e o cansaço. O fim (por agora) das declarações de Sócrates em tribunal

O caminho do dinheiro, os elogios a Ivo Rosa e o cansaço. O fim (por agora) das declarações de Sócrates em tribunal

Ex-primeiro-ministro queixou-se da violência de estar tantos dias seguidos a prestar esclarecimentos e foi dispensado de comparecer nas próximas sessões, ao alegar que também tinha de ir ao Brasil.

João Paulo Godinho
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E ao décimo dia de julgamento da Operação Marquês, José Sócrates suspendeu as suas respostas a questões do Ministério Público (MP), tribunal e defesas e informou a juíza Susana Seca de que pretende ir ao Brasil devido ao doutoramento que está a fazer numa universidade de São Paulo. Quando Sócrates voltará a falar em audiência de julgamento? Não se sabe. Certo é que foram nove sessões preenchidas com as palavras do antigo primeiro-ministro, marcadas por constantes ataques ao MP, pela negação dos factos da acusação, mas também pelo “cansaço”.

Sócrates já tinha assumido anteriormente (quase sempre no final de cada sessão) o seu desgaste, mas manifestou esse estado logo a abrir esta quarta-feira, o que deu o mote para o fim — para já — dos seus esclarecimentos. De fora, por agora, ficaram, por exemplo, os esclarecimentos sobre o apartamento de Paris, as alegadas entregas de dinheiro que viriam por referenciadas em código, como “fotocópias”, ou as despesas com viagens. Ao fim e ao cabo, uma parte relevante do “caminho do dinheiro” que liga Carlos Santos Silva a José Sócrates e, na ótica do MP, faz com que os fundos depositados em nome do empresário alegadamente pertençam a Sócrates — uma visão indiciária que foi confirmada pela pronúncia da Relação de Lisboa.

A visão de Sócrates é outra. Esta terça-feira abordou o tema e avisou logo que a lógica do MP tinha “muito que se lhe diga”. José Sócrates não se conteve nas críticas às teses dos procuradores, procurando apontar ‘buracos’ ou ‘direções erradas’ para resumir que em cada transferência bancária o MP via automaticamente um crime. As investidas sobre o MP traduziram-se num clima de crescente tensão na sala de audiência e levaram inclusivamente a juíza Susana Seca a deixar novos conselhos a Sócrates.

Em contraste com esse clima, o ex-primeiro-ministro trouxe também elogios, mas para uma figura que não está no julgamento (embora a sua influência seja preponderante no processo): o juiz Ivo Rosa.

Para o ex-primeiro-ministro, o magistrado que assinou a decisão instrutória em 9 de abril de 2021 e provocou um terramoto na acusação — ao fazer cair a esmagadora maioria dos 189 crimes imputados pelo MP aos arguidos — teve um “trabalho importantíssimo” e para o qual espera “que se faça justiça”. As palavras são de Sócrates mas não incluíram frases de Ivo Rosa que estão escritas na sua decisão instrutória como o “mercadejar com o cargo por parte do primeiro-ministro face ao arguido Carlos Santos Silva” devido às entregas em numerário do empresário ao ex-primeiro-ministro e o crime corrupção sem demonstração de ato concreto que, consequentemente, o juiz de instrução considerou fortemente indiciado mas prescrito.

A “loucura” do caminho do dinheiro, mas sem desvios para explicar viagens

“Quero falar sobre o caminho do dinheiro. (…) Tem muito que se lhe diga”, declarou, em tom dramático, José Sócrates ainda nos primeiros minutos da sessão. Centrando a sua vontade de falar sobre os circuitos financeiros no tempo em que exerceu as funções de primeiro-ministro, entre 2005 e 2011, o ex-primeiro-ministro recuperou até uma citação famosa que já tinha usado noutra sessão de julgamento.

Mostrem-me o homem, descobrirei um crime“, disse Sócrates, a partir de uma frase atribuída a um antigo procurador da União Soviética, Andrey Vichinsky (embora outras fontes aleguem também que talvez possa pertencer ao antigo chefe da polícia secreta de Stalin, Lavrenty Beria).

Ciente da importância do caminho de dinheiro para a acusação do MP, uma vez que a lógica follow the money norteou a investigação (e os circuitos financeiros de milhões de euros na órbita do antigo governante estão entre as provas mais fortes dos autos), José Sócrates apostou na sátira.

“O tal caminho do dinheiro é uma loucura tão grande, a vontade de acusar era tão grande que identificamos uma transferência e vamos ver o que aconteceu naquele período… O que está em causa é a afirmação de que essas transferências vieram parar ao meu património. Importa-se de apresentar uma prova?”, questionou Sócrates, numa espécie de inversão de papéis em que era agora o arguido a pedir esclarecimentos ao MP.

"Ou foi para uma coisa ou para outra: a isto chama-se um erro. Se vou expor todas as contradições, as juízas vão pensar que estou a atrasar o processo. Seriam duas horas para expor as maluquices"
José Sócrates

O ex-primeiro-ministro criticou o MP por, supostamente, atribuir uma mesma transferência a alegadas contrapartidas de situações distintas. Ou seja, que o mesmo valor tanto serviria como compensação de um suposto benefício ao grupo Lena pelo projeto do TGV, como seria para a questão das casas da Venezuela. “Ou foi para uma coisa ou para outra: a isto chama-se um erro. Se vou expor todas as contradições, as juízas vão pensar que estou a atrasar o processo. Seriam duas horas para expor as maluquices”, referiu.

Ao longo de todas as suas intervenções, Sócrates manteve sempre que as transferências bancárias apontadas na acusação não terminaram nos seus bolsos. “Mostrem-me uma prova de que o dinheiro me foi parar ao bolso“, desafiou. O MP procurou também expor uma contradição do arguido, quando este falou que as transferências não tinham ligação a factos relevantes do procedimento do TGV e depois o arguido elencou nesta sessão a proximidade entre algumas movimentações financeiras e momentos importantes desse processo. Contudo, isso apenas fez Sócrates recuperar os “absurdos” anteriormente invocados sobre a acusação, sem se alargar em novas explicações.

Além de recordar o desmentido que já tinha feito em relação às alegações do MP sobre a OPA da Sonae à PT ou do alegado pagamento de oito milhões de euros pela mudança da presença da PT no Brasil (da Vivo para a Oi), o ex-primeiro-ministro — que responde por 22 crimes (três de corrupção, seis de fraude fiscal e 13 de branqueamento) — denunciou uma “completa incongruência” nos pagamentos alegadamente corruptos para as casas da Venezuela.

“Esses pagamentos foram feitos em 26 de fevereiro e 28 de junho de 2007, que juntos são de três milhões de euros… pagos a alguém por umas casas na Venezuela que ninguém sabia que existiam. Nem aqui, nem na Venezuela, porque o projeto é posterior ao primeiro pagamento. Como é que se faz assim o caminho do dinheiro?”, questionou.

Ainda no tópico do dinheiro relacionado com a Venezuela, José Sócrates considerou insultuosa a relação estabelecida pelo MP entre os 4,5 milhões de euros transferidos para uma conta da sociedade Pinehill, na Suíça, controlada por Carlos Santos Silva, e a visita a Portugal do Presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Segundo o MP, a transferência teve lugar em 26 de setembro de 2008, dia em que o chefe de Estado venezuelano terá chegado ao país, tendo então previsto para o dia seguinte a assinatura de um contrato entre o Estado venezuelano e o grupo Lena.

Isso não passa de insultos. Essa conta não é minha, não tenho nada a ver com ela. E aquilo que o Ministério Público diz extravasa o tratamento que deve haver entre o Ministério Público e um sujeito processual. Sujeito! Não objeto”, atirou.

O procurador Rómulo Mateus explicou então que se tratava de duas parcelas, com 500 mil euros com origem no grupo Lena e quatro milhões de euros no BES, e José Sócrates acusou o magistrado do MP de andar “aos papeis” e que “levou o tribunal ao engano” nesse tema. “Não tenho conhecimento, não faço a mínima ideia de quem fez a transferência. Esse dinheiro não me pertence”, vincou.

"Não, não quero responder, porque me parece que a primeira coisa que o MP fez foi desrespeitar o que a senhora juíza disse"
José Sócrates

Porém, quando se tentou “percorrer o segmento das despesas” que o MP acredita terem sido feitas em benefício de José Sócrates e se falou numa viagem de dezembro de 2010, o ex-primeiro-ministro travou a fundo e recusou seguir essa direção do dinheiro.

“Não, não quero responder, porque me parece que a primeira coisa que o MP fez foi desrespeitar o que a senhora juíza disse”, afirmou, na sequência de um apelo de Susana Seca aos procuradores para respeitarem os temas que estavam combinados serem falados nesta sessão. E assim esse tópico ficou para algures no futuro deste julgamento.

A terminar, a juíza confrontou Sócrates se tinha conhecimento das movimentações financeiras de várias pessoas que “gravitavam à sua volta” e o arguido confessou ser “totalmente alheio” a essa realidade.

Ivo Rosa, o juiz “circunspecto” sobre o qual Sócrates espera que se faça “justiça”

Se houve alguém a escapar aos ataques de José Sócrates na sessão desta quarta-feira, esse alguém foi o juiz Ivo Rosa, atualmente na Relação de Lisboa, mas que em 9 de abril de 2021 assinou a decisão instrutória do processo e fez então cair 172 dos 189 crimes que constavam na acusação do MP. José Sócrates tinha sido inicialmente acusado pelo MP da prática de 31 crimes e a decisão instrutória de Ivo Rosa pronunciou-o apenas por seis crimes: três de falsificação e três de branqueamento (que dizem respeito ao processo pequeno da Operação Marquês, tendo os três primeiros crimes sido entretanto declarados prescritos).

Depois de apontar duas alegadas contradições sobre o destino de duas transferências entre o grupo Lena e a sociedade XLM, de Carlos Santos Silva, e que o Ministério Público acredita que tenham servido de contrapartidas, o ex-primeiro-ministro argumentou que não podia indicar todas as supostas contradições da acusação. Segundo Sócrates, tal já tinha sido realizado por Ivo Rosa na fase de instrução.

“Quem perdeu muito tempo com isto foi o juiz Ivo Rosa, que elencou uma a uma na decisão instrutória. Espero que se faça alguma justiça ao trabalho que ele desenvolveu neste processo. Não que eu tenha estado de acordo com a sua decisão e isso está nos recursos que apresentei, porque fez uma alteração substancial dos factos. O juiz Ivo Rosa fez um trabalho importantíssimo a elencar os erros da acusação”, defendeu o ex-primeiro-ministro.

"Quem perdeu muito tempo com isto foi o juiz Ivo Rosa, que elencou uma a uma na decisão instrutória. Espero que se faça alguma justiça ao trabalho que ele desenvolveu neste processo. Não que eu tenha estado de acordo com a sua decisão e isso está nos recursos que apresentei, porque fez uma alteração substancial dos factos. O juiz Ivo Rosa fez um trabalho importantíssimo a elencar os erros da acusação"
José Sócrates

No entanto, Sócrates não contou toda a história que o magistrado relatou na decisão instrutória, designadamente que existiam fortes indícios de corrupção e que esse crime só caiu por estar prescrito — na moldura de corrupção para ato lícito.

Ivo Rosa considerou que “os factos indiciados quanto às entregas em numerário indiciam, deste modo, a existência de um mercadejar com o cargo por parte do primeiro-ministro face ao arguido Carlos Santos Silva e, por conseguinte, uma invasão do campo da ‘autonomia intencional’ do Estado”, escreveu o magistrado na sua decisão instrutória.

Logo, o juiz de instrução considerou que se verificou um crime de corrupção sem demonstração de ato concreto, para o qual o juiz de instrução encontrou indícios fortes. Porém, decidiu que tal crime de corrupção prescrito.

Essa situação só se alterou no dia 24 de janeiro de 2024, com o acórdão da Relação de Lisboa que recuperou a maioria da acusação do MP e pronunciou 22 arguidos por um total de 118 crimes económico-financeiros, entre os quais os 22 crimes pelos quais Sócrates está agora a responder neste julgamento.

Mais tarde, Sócrates voltou a sair em defesa do magistrado responsável pela decisão instrutória, por contraponto a uma acusação “incapaz e incompetente” do MP. “O juiz Ivo Rosa é um juiz circunspecto e quando fala em fantasias e incongruências é disto que está a falar… porque eu acho que isto merecia uma apreciação pior”, defendeu.

Da “violência física” ao cansaço no julgamento

Ainda a sessão de julgamento não contava 20 minutos de duração e José Sócrates apresentou as primeiras queixas sobre o cansaço e a “violência física” que representava estar há nove sessões de pé, durante várias horas, a falar e a responder a perguntas.

“Compreenda que isto é violento. Eu defino o que digo. Vou falar dos empréstimos do meu amigo, mas dadas as perguntas do Ministério Público e dada a violência física que me é imposta, vou falar na sessão de hoje e peço… peço, não, deliberei que não faço mais declarações a partir de 2005 para lá”, afirmou.

E prosseguiu: “Para me defender fisicamente, quero terminar hoje as minhas declarações até ao período em que fui primeiro-ministro, 2011. A minha ideia, portanto, é terminar hoje”. José Sócrates garantiu que não evitava prestar declarações sobre nada, mas alegou o desgaste para traçar esta quarta-feira uma linha que já não quis passar.

Não quero isto à pressão. Eu não admito que o tribunal seja tão violento comigo“, acrescentou. O tribunal acede à pretensão de José Sócrates e para quinta-feira está já previsto que seja outro arguido a prestar declarações em audiência: Diogo Gaspar Ferreira. O antigo diretor executivo do empreendimento de Vale do Lobo está acusado de dois crimes, um de corrupção e outro de branqueamento de capitais.

Irritações e divergências, diálogos e conselhos

Durante a travessia desta sessão pelo caminho do dinheiro, o procurador Rómulo Mateus confrontou José Sócrates sobre uma transferência de Carlos Santos Silva para a sua amiga Sandra Santos, em 25 de junho de 2010, procurando explicações sobre o porquê de ter sido o seu amigo a fazer esta transferência. E isso deixou José Sócrates visivelmente irritado, muito mais do que em qualquer outro momento da décima sessão.

Por amor de Deus, autoriza uma pergunta destas? O que é que eu tenho a ver com isso?”, atirou Sócrates, dirigindo-se à juíza para fulminar o magistrado do MP: “É a segunda vez. Já tinham feito ontem… Os dois trazem este assunto e querem chegar a um sítio que não tem condições para ser considerado decente. Isto é indigno. Inacreditável”.

A juíza Susana Seca interveio então para aconselhar José Sócrates a não se exaltar. “Bastaria um não. O facto de ficar alterado com as perguntas traz desgaste. E as considerações que faz não alteram a perspetiva do tribunal, que é sempre objetiva. O senhor tem sempre a possibilidade de não responder à pergunta, mas não é necessário alterar-se”, referiu, com Sócrates a retorquir ainda à juíza para se colocar “por um breve instante” na sua posição.

"Bastaria um não. O facto de ficar alterado com as perguntas traz desgaste. E as considerações que faz não alteram a perspetiva do tribunal, que é sempre objetiva. O senhor tem sempre a possibilidade de não responder à pergunta, mas não é necessário alterar-se"
Juíza Susana Seca

Anteriormente, o ex-primeiro-ministro já se tinha indignado com os procuradores por, supostamente, não sustentarem as questões ou alegações com provas concretas. Perante esse escalar de tensão na interação entre procuradores e arguido, a juíza avisou Sócrates para não entrar “em diálogo” com o MP, que é o titular da ação penal na justiça portuguesa.

Apesar da compreensão manifestada pela juíza Susana Seca em diversos momentos, como o desgaste físico invocado, José Sócrates também não deixou de visar o tribunal, ao enumerar “várias divergências” e críticas. Começou por apontar o “elefante na sala” de Ricardo Salgado continuar a ser alvo de procedimento criminal. “O Estado português julgou e condenou um demente e insiste em julgar um demente. E não suspende, continua tudo”, salientou.

O ex-primeiro-ministro censurou também o tribunal por aceitar “uma pronúncia que é ilegal, porque não vem de um juiz de instrução “como nos oito séculos anteriores”, mas de um Tribunal da Relação. “Temos essa divergência que não está ainda sanada”, observou, sem deixar de considerar que o acórdão de janeiro de 2024 “decidiu manipular” o processo com a alteração do crime de corrupção, em alusão ao famoso “lapso de escrita” que tem criticado desde o primeiro dia do julgamento.

Essas críticas conhecem, finalmente, a primeira interrupção, com Sócrates a ser até dispensado de comparecer nas próximas sessões, ao alegar também que tem de fazer uma viagem ao Brasil por “motivos académicos” e que iria precisar de “10 ou 15 dias”.

A palavra passa agora para Diogo Gaspar Ferreira, acusado pelo MP de ter corrompido, em regime de co-autoria com Rui Horta Costa, o ex-primeiro-ministro José Sócrates e Armando Vara, ex-administrador da Caixa Geral de Depósitos, para conseguir um conjunto de empréstimos superiores a 200 milhões de euros que financiaram a aquisição do resort de Vale do Lobo.

O antigo diretor executivo do empreendimento imobiliário de Vale do Lobo começa a prestar declarações no Juízo Central Criminal de Lisboa esta quinta-feira, a partir das 9h30.