Há uma imagem resplandecente que ilustra o caminho feito até aqui: um cravo vermelho colocado no cano de uma arma. Símbolo mais popular da Revolução de Abril, é porventura a imagem mais reconhecida de um momento basilar da história contemporânea portuguesa. Marca a ligação afetiva que se estabeleceu, de imediato, entre os militares que nesse dia mudaram o rumo do país, com o povo nas ruas em sinal de apoio. Para o artista greco-britânico Mikhail Karikis (n. Tessalónica, 1975), há alguns anos ligado a Portugal – onde atualmente reside –, a imagem é também símbolo de um legado que ainda hoje se pode escutar no silêncio. “É dessa imagem, a partir do gesto poderoso que enuncia, que se pode ouvir o som da revolução”, explica. Seja o das vozes silenciadas durante os anos da ditadura, do som das canções censuradas ou, naturalmente, da voz de um povo que, nesse dia, se libertou.
Foi a partir desse mote, com imagem e som a convergir simbolicamente, que se começou a desenhar o projeto participativo do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian (CAM) “Sons de uma Revolução”, que juntaria o artista a um grupo de 52 alunos do Artallis – Conservatório d’Artes de Loures. Marcou o início de um processo colaborativo que culminou numa performance no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian com a Orquestra Gulbenkian, em 2024, e na instalação audiovisual “Mikhail Karikis. Estamos juntos porque…”, patente no CAM até 22 de setembro deste ano.
Ao longo de um período de três anos, que se iniciou ainda antes da reabertura oficial do CAM, o projeto foi ganhando ramificações e envolveu diferentes áreas da fundação, como a Gulbenkian Música e o Serviço Educativo, tornando-se o primeiro projeto de arte participativa lançado pelo renovado centro. Ao Observador, Mikhail Karikis sublinha o carácter inovador da experiência, tanto para o seu percurso como para a própria instituição: “Foi a primeira vez que se comissariou um projeto com estas características, criando um diálogo que nem sempre existe entre áreas distintas, com o intuito de desenvolver algo a partir de uma visão única, mas sempre coletiva. Mesmo no contexto do meu trabalho, foi um processo que ligou muitas pessoas, que se focaram mais no caminho percorrido do que no resultado final”. É também agora a primeira obra de arte participativa a ser adquirida pela coleção da instituição.
Como se compõe uma revolução?
Perante um conjunto de ecrãs, a instalação visual e sonora de Mikhail Karikis revela o processo por detrás do percurso artístico e fruitivo que se gerou, num crescendo que conduz até à performance no auditório da fundação, acompanhada pela Orquestra Gulbenkian. Por outro lado, o público é, desde logo, interpelado por respostas dos alunos do conservatório à pergunta “Estamos juntos, porque?”. À medida que surgem os seus rostos, escutamos: “Estamos juntos para enfrentar o que o futuro trouxer; estamos juntos para compreender o presente; estamos juntos para rirmos em conjunto; estamos juntos para seguir em frente até ao fim”.

A instalação, assinala o artista, encerra um ciclo, mas também se expande: existe como testemunho para o futuro e como prova de “que é sempre possível estarmos juntos em diálogo sobre o mundo que nos rodeia, apesar das diferenças de opinião que possamos ter”. Nas vozes dos alunos ecoam mensagens inerentemente políticas, que reverberam perante os desafios que enfrentamos juntos na contemporaneidade. É também assim que, afinal de contas, se vão compondo novas revoluções.
Já o título, explica Karikis, presta homenagem à falecida compositora norte-americana Pauline Oliveros, que concebia a escuta como uma prática de empatia e consciencialização ambiental. Na obra do greco-britânico, testemunham-se momentos de ligação humana, alegria, aprendizagem e cuidado mútuo, cultivados pela escuta e pela produção coletiva de som. O trabalho capta os workshops e diálogos entre os alunos e o artista, em torno de temas que foram sendo debatidos. “Houve espaço e tempo para abordarmos as mais diversas questões; falou-se de política, identidade e problemas que afetam a nossa vida em comunidade”, sublinha.
De igual modo, o processo serviu também para aproximar jovens que, embora pertencentes ao mesmo conservatório, não tinham relação entre si. Em entrevista ao Observador, o professor Isaac Fernandes, diretor do Artallis, explica que a experiência foi transformadora, capaz de unir diferentes gerações, linguagens artísticas e formas de pensar o futuro. “Os momentos de diálogo permitiram que os alunos refletissem sobre a Revolução de Abril, mas também sobre as ‘revoluções por fazer’, como as ambientais e sociais, e como a arte pode ser um espaço de tomada de consciência. Houve uma forte dimensão de escuta e de construção coletiva, em que todos os participantes tiveram voz ativa e puderam sentir-se parte de algo maior. A fruição artística foi sentida não apenas no palco, mas também durante o processo: cada ensaio, cada troca, cada gesto foi vivido como uma celebração da liberdade, da criação conjunta.”
No seu desenvolvimento, a música funcionou como um gatilho e que, em simultâneo, conduziu a investigação artística levada a cabo por Karikis. Tal como na Revolução Portuguesa, foi através da canção que, muitas vezes, se formou um pensamento coletivo sobre a ditadura, a guerra colonial e outros temas que marcaram a época, recorda-se. Ao revisitar a história política e social portuguesa, Mikhail refletiu igualmente sobre a queda do “Regime dos Coronéis” e a instauração da democracia parlamentar na Grécia, onde também a música desempenhou um papel central.
“Num espaço de dois ou três minutos, uma canção pode captar ou cativar o espírito de uma revolução. É uma forma de expressão que facilmente liga as pessoas a algo em comum. Sempre procurei que o meu trabalho explorasse este tipo de possibilidades, precisamente pela conexão emocional que cria e que tanto precisamos atualmente perante o tipo de discursos divisionários que hoje voltaram a ter palco”.
Onde as vozes se encontram
Depois de refletir sobre como pôr em prática o projeto e de o apresentar à fundação, a escolha recaiu sobre o Artallis, já então parceiro da Gulbenkian. Fundado em 2008, o conservatório artístico especializado, situado em Loures, tem desenvolvido o seu trabalho na intersecção entre a criação artística e os problemas da exclusão social, com a missão de “com o poder da arte, criar felicidade, transformar vidas e mudar o mundo”. Essa vocação, sublinha o artista, foi essencial para a relação estabelecida com os alunos. “Desde o princípio houve abertura e vontade de experimentação que se tornaram fundamentais”, recorda Karikis.
Todo o processo foi igualmente acompanhado pelo sociólogo e músico Alix Didier Sarrouy, do Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança da Universidade Nova de Lisboa. Num relatório produzido sobre o projeto, Sarrouy destaca a colaboração intensa e sinérgica que se gerou: “Após introduções e conversas alargadas entre os parceiros, houve sessões mensais no Artallis. Cada uma requereu grande preparação e mediação, asseguradas por Daniela Vieitas do CAM. As sessões permitiram cocriar com os alunos, fornecendo material e direção aos compositores e ao coreógrafo”.


Duas formas de expressão surgiram de imediato: o canto coral e a percussão corporal. Mensalmente, todos se juntaram ao mote lançado por Karikis – “Estamos juntos” – que cada jovem completava com palavras próprias, partilhando sensações e desejos. O impacto foi evidente. Num dos testemunhos recolhidos, Martim Silva, saxofonista de 17 anos, recorda: “Durante estas sessões, sinto abertura para falar do modo que me é mais natural, sem qualquer julgamento, e recebo dos outros o mesmo tipo de feedback. Isto permite conhecer melhor quem me rodeia e ajuda a desenvolver relações”.
Sob direção de Karikis, o projeto reuniu ainda quatro criadores: Teresa Gentil, pianista e investigadora; Sara Ross, Jovem Compositora em Residência da Casa da Música em 2024; Francisco Joaquim, guitarrista, compositor e professor no Artallis; e o coreógrafo Maruan Sipert, atento às expressões corporais do quotidiano. Desta colaboração nasceu a ideia de dividir o espetáculo em quatro grandes partes baseadas nos elementos da Natureza – Fogo, Ar, Água e Terra – a partir das quais cada compositor escreveu uma obra original.
“Os libretos foram escritos na base das conversas com os jovens participantes (…). A descoberta das novas composições foi sempre um momento de expectativa. Lendo a partitura no telemóvel ou impressa, os alunos testavam as obras. Arregalavam os olhos e sorriam ao reconhecer frases e melodias que tinham proposto nas sessões”, pode ler-se no relatório de Sarrouy.
A primeira obra participativa na coleção do CAM
De regresso à sala onde agora se apresenta a instalação visual de Mikhail Karikis, o público é convidado a revisitar tanto o espetáculo final como o processo de bastidores: os ensaios, as conversas, os gestos de escuta e criação coletiva. Para Ana Botella, diretora-adjunta do CAM, o projeto traduz a missão do centro enquanto “lugar de intercâmbio e de conhecimento partilhado”, destacando ainda as dimensões da empatia e da criação de sinergias com diferentes comunidades.
Daí nasceu também a vontade de integrar a obra na coleção, tornando-se a primeira aquisição resultante de um processo participativo. “A aquisição é uma manifestação do compromisso do CAM em ligar-se de forma profunda ao nosso contexto e às nossas comunidades. Este projeto exemplifica a nossa dedicação em fazê-lo de forma transversal a todo o programa. Ao longo de dois anos, assumiu a forma de investigação, participação, artes performativas (o concerto), exposição e, agora, fecha o círculo ao integrar a coleção.”
A incorporação da obra marca ainda uma viragem na forma como a instituição olha para o seu património. “As coleções validam o valor artístico e as histórias de um momento específico que, através da arte, merecem ser preservadas para o futuro. Ao integrar a coleção, reconhecemos a prática participativa de Mikhail Karikis, bem como as vozes dos jovens de Loures com quem colaborou. Isto é fundamental: atribuímos valor ao mesmo tempo que continuamos a amplificar o seu apelo à ação – para que todos nos unamos, enquanto seres humanos”, acrescenta Botella.
As revoluções por vir
De regresso aos cravos de Celeste Caeiro, outra figura recordada, encontramos o símbolo de uma natureza que se fez aliada do projeto democrático, contrapondo-se à imagem da morte, como sintetiza Karikis. A instalação capta esse percurso criativo e incorpora cenas do concerto, oferecendo vislumbres de mundos alternativos que se podem construir em conjunto. “Se, no caso da revolução portuguesa, uma flor se tornou exemplo de como a natureza está com a mudança, também aqui quisemos unir as nossas vozes e sentidos a esse ímpeto de resistir à lógica divisionária que hoje, infelizmente, volta a ganhar força.”

Formam-se novos públicos, experimenta-se e arriscam-se novos caminhos, defende Karikis, que insiste na importância de não esquecermos o passado. “Para muitas gerações posteriores, sem ligação física ao 25 de Abril, é uma imagem que simboliza, mas que também ecoa na forma como olham para o país.” No Artallis, a experiência deixou uma marca indelével. “Este projeto veio mostrar o papel importante da escola artística como espaço de participação cívica e de reflexão social, para além do ensino técnico-musical. Reforçou e mostrou a identidade do Artallis como uma instituição que acredita no poder transformador da arte, colocando os jovens no centro do processo criativo. Trouxe metodologias inovadoras de colaboração entre músicos, compositores, coreógrafos e pensadores, mostrando aos alunos e professores que a música pode dialogar com questões políticas, sociais e ambientais”, afirma o diretor Isaac Fernandes.
De horizontes alargados, a resposta à pergunta “estamos juntos porque?” multiplicou-se em possibilidades. Para o artista, a chave está na procura por formas participativas e colaborativas: “Vamos continuar juntos e, tal como se diz na instalação, ‘eu ainda acredito nas pessoas’”. Cabe-nos agora fazê-lo numa voz coletiva, para que se voltem a ouvir os sons da revolução.