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(A) :: "Este elevador morreu." Entre um segundo cabo, novos travões ou uma renovação completa, por onde pode passar o futuro Elevador da Glória?

"Este elevador morreu." Entre um segundo cabo, novos travões ou uma renovação completa, por onde pode passar o futuro Elevador da Glória?

Sistema totalmente novo? Revisão menos redundante? Instalação de mais um cabo? Os peritos ouvidos pelo Observador apontam o caminho que pode ser seguido para o futuro Elevador da Glória.

Miguel Pinheiro Correia
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O relatório preliminar do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Acidentes Ferroviários (GPIAAF) ajudou a perceber que, ao que tudo indica, o acidente do Elevador da Glória terá sido provocado por uma cedência do cabo subterrâneo que liga as duas cabinas no ponto de fixação. No entanto, o documento — sem caráter conclusivo — levanta muitas questões que continuam sem resposta, nomeadamente no que diz respeito ao sistema de redundância que não conseguiu impedir o desastre que matou 16 pessoas e feriu mais de 20.

Em bom rigor, explicam alguns peritos ouvidos pelo Observador, um sistema de redundância que não funciona quando falha o sistema principal (no caso, o sistema de travagem não funcionava sem estar ligado ao cabo que cedeu) não se pode chamar um sistema de redundância. “Uma coisa é ter um sistema de emergência, que aparentemente tinha. Mas não tinha sistemas de redundância”, diz Carlos Neves, presidente do Conselho de Colégio de Especialidade do Colégio de Engenharia Mecânica da Ordem dos Engenheiros.

https://observador.pt/especiais/o-que-dizem-as-provas-recolhidas-sobre-as-causas-do-acidente/

Ainda sem certezas sobre o que originou o descarrilamento, os especialistas não arriscam o desenho definitivo de uma conclusão. Mas traçam um esboço do que pode vir a ser a solução a aplicar àquele meio de transporte emblemático de Lisboa — que alia a importância de manter os traços de um veículo que gera receita, precisamente por ser um símbolo histórico, com a fulcral necessidade de reforçar a segurança de todos os que utilizam um transporte que não é só para turistas.

Dos sistemas de redundância que falharam às fiscalizações redundantes que nada detetaram

A nota preliminar publicada pelo GPIAAF indica que o freio pneumático e o freio manual foram “rapidamente” aplicados por André Marques, o guarda-freio que estava aos comandos do Elevador da Glória e que acabou por morrer no acidente. Mas esses travões “não têm a capacidade suficiente para imobilizar as cabinas em movimento sem estas terem as suas massas em vazio mutuamente equilibradas através do cabo de ligação”, refere a mesma nota. A conclusão dos dados é taxativa: o modelo de segurança que estava implementado naquele equipamento “não constitui um sistema redundante à falha dessa ligação”.

Essa não era, contudo, a única forma de impedir o desastre, havendo também um sistema de emergência localizado no volante de inversão que se situa no cimo da Calçada da Glória — onde termina a viagem no sentido ascendente — e que procede ao corte de energia às cabinas. Relativamente a esse sistema, o gabinete que está a investigar o incidente considera que “funcionou como previsto”. Mesmo assim, não foi possível confirmar se a sua ativação resultou na “aplicação automática do freio pneumático nos veículos”.

Carlos Neves clarifica que o sistema de redundância não tem que cumprir as mesmas funções que o sistema crítico utilizado em todas as viagens diárias do funicular, mas deve ser uma alternativa para “quando falha o sistema crítico”. “Aprendemos agora, da pior maneira possível, que [a redundância] não estava presente e que todos os sistemas, ditos normais, não estavam preparados para um cenário de acidente crítico, que é a rutura no cabo”, diz o especialista em engenharia mecânica ao Observador.

Como contributo para esse problema, Carlos Neves aponta não para a redundância física da segurança do veículo, mas antes para a “fiscalização redundante” que foi provocada por uma legislação de 2020. O Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), que tutela a Autoridade Nacional de Segurança Ferroviária, explicou ao Público que, de acordo com a alteração aprovada em 2020, deixou de ter competências de supervisão de “sistemas de transporte por cabo” construídos antes de 1986 e classificados como património — o Elevador da Glória foi considerado monumento nacional em 2002, pelo que escapa a esta fiscalização. “Redundância não é tanto física, mas procedimental”, conclui o especialista.

E agora, por onde deve passar a solução?

Regresso à roda dentada e o caso de Braga

A lista de funiculares e elétricos em todo o mundo é extensa, com a diversidade de sistemas a acompanhar a variedade de composições, adaptadas às especificidades encontradas em cada país: seja pelas exigências do terreno ou simplesmente por diferenças de pensamento dos engenheiros que projetaram esses modelos.

“As maiores diferenças são ditadas pelo tempo em que foram feitos. Em tese, o sistema instalado em 1915 não tem que ser inseguro, dependendo do que se vai adicionando ao longo do tempo”, resume João Cunha, especialista em ferrovia e detentor do portal Portugal Ferroviário. Qual a razão para o ascensor da glória ter duas composições autopropulsoras e um cabo em tensão para as sincronizar? “É a prática da época. Hoje, se fizermos algo de raiz, fazemos talvez algo mais parecido com o que temos na Graça. Temos veículos mais modernos, uma potência elétrica mais forte.”

https://observador.pt/2025/09/04/duas-composicoes-autopropulsoras-e-um-cabo-em-tensao-para-as-sincronizar-como-se-movia-o-funicular-da-gloria/

O elevador da Glória foi construído de forma semelhante ao funicular que ainda hoje funciona no Bom Jesus do Monte, em Braga, ainda com a compensação dos pesos a ser feita com água, como acontecia originalmente no elevador que agora descarrilou em Lisboa. Essa não é a única diferença, uma vez que o elevador da cidade minhota ainda tem uma roda dentada, o que é entendido como uma vantagem nestas situações mais críticas.

“Não é que a roda dentada possa por si só parar o elétrico, mas obviamente que há uma aderência muito maior e é mais fácil fazer a mobilização e a aceleração”, sugere João Cunha. “A roda dentada alivia o esforço de subir, porque tem mais aderência. Cria atrito, mas é atrito positivo que ajuda que [a composição] tenha aderência e suba. Da mesma forma, a descer há uma maior resistência, é um bocadinho mais fácil reduzir a velocidade”.

Por outro lado, o Elevador da Glória tem, atualmente, uma “conceção que era quase como um elétrico, ou dois elétricos ligados um ao outro”, com a diferença de ter uma carruagem “ligeiramente diferente por causa da inclinação da rua” — mantendo, assim, os passageiros numa posição horizontal — e o cabo a fazer equilíbrio entre os veículos. Em Braga, no entanto, já outra vantagem: o facto de o funicular funcionar numa zona sem acesso pedonal permite que o cabo esteja visível a quem faz a fiscalização diária.

Sem a certeza de que um desastre destes era impossível em Braga, Carlos Neves concorda que a roda dentada é mais eficaz, porque a própria roda trava na “cremalheira”. Mas, se seria mais eficiente, porque foi abandonada no Elevador da Glória? “Porque na altura em que se fez a eletrificação, em 1914, já não havia necessidade de ter a cremalheira instalada, a prática já tinha evoluído nesse sentido”, responde João Cunha. A água ainda usada em Braga foi substituída em Lisboa por um motor elétrico de baixa potência, que faz a compensação da diferença de pesos entre as duas carruagens. No entanto, o motor elétrico poderia ser usado, como é em outros casos, para apoiar a travagem do veículo.

Travões magnéticos dos elétricos também podem ser alternativa

Com os freios automáticos do Elevador da Glória a mostrarem-se ineficazes para travar uma cabina desgovernada, que desceu em grande velocidade até descarrilar, João Cunha alude a outros funiculares para sugerir que a solução para também poderia passar pela utilização de motores elétricos no apoio à tração. “Os motores elétricos hoje em dia são utilizados para tração. Os motores elétricos que hoje em dia são utilizados nos transportes permitem, quase todos, a frenagem. Conseguem, pela absorção da energia cinética, criar um efeito de travagem”.

O especialista em engenharia mecânica concorda com Carlos Neves, que também sugere outra alternativa no sistema de travagem. O engenheiro lembra que “na ferrovia” já há travagem magnética que poderia ser replicada no Elevador da Glória, como, diz João Cunha, já acontece nos elétricos que circulam nos carris de Lisboa.

“Os elétricos da Carris, mesmo os mais velhos, já estão todos renovados com sistemas de segurança de topo: além dos sistemas normais, têm um travão magnético que não atua sobre as rodas, mas diretamente sobre o carril para travar o veículo”, exemplifica.

Rosário Macário, doutorada em Sistemas de Transportes, sugere uma revisão mais profunda. “Tem que haver um sistema de travões que segure um veículo nestas condições. O que parece ter acontecido é que a tecnologia que está implementada não segura, como se viu, o veículo com esta carga. Tem que haver outro sistema que trave e sustente o veículo, o que nos obriga, provavelmente, a uma alteração tecnológica, porque as tecnologias que estão implementadas não são manifestamente suficientes”.

A solução mais profunda: uma revisão da tecnologia em vigor

Essa revisão mais profunda do sistema utilizado é apontada pela maioria dos peritos como a solução mais indicada para o futuro do Elevador da Glória. “Tem que haver uma substituição total do elevador. Este elevador morreu no dia 3 de setembro. Morreu com a configuração, com aquelas cabinas, com aquela tecnologia. Aquele princípio de funcionamento até se pode manter, não há problema nenhum. O princípio físico pode-se manter, mas a tecnologia não. Esta tecnologia teve o seu enterro fatal e fatídico, porque nada pode prosseguir para o futuro. A grande questão que também se coloca é em todos os outros sistemas que estão a operar em Lisboa. Já não vale a pena confiar na sorte”, avisa Carlos Neves.

João Cunha acrescenta que “em qualquer caso”, para o elevador que descarrilou e para os restantes da cidade lisboeta tem que “haver uma revisão da solução técnica” e, mesmo que não se altere o sistema, é necessária a instalação na tecnologias que complementem as funções de segurança. Na Glória, diz o especialista, a solução até pode passar por “aproximar ao sistema usado na Graça”, outro dos três elevadores da capital, onde o modelo é “de última geração, mais moderno”.

Certo é que depois do descarrilamento na Glória, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa determinou a suspensão de funções dos restantes elevadores. Com o objetivo de melhorar estes serviços, a autarquia liderada por Carlos Moedas propôs a criação de ​​uma equipa de missão com membros designados pela Carris e por entidades técnicas habilitadas, “nomeadamente representantes da Academia, da Ordem dos Engenheiros e do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), para a conceção do novo sistema tecnológico do Ascensor da Glória”.

Sem uma renovação profunda, instalação de segundo cabo garante maior segurança

Mantendo os traços atuais do sistema de elevador, uma sugestão aparentemente simples que reúne consenso entre os peritos consultados pelo Observador é a instalação de um segundo cabo, que assegure que os sistemas de redundância conseguem continuar a funcionar quando falha o principal.

A ideia, explicam, não é inovadora; na prática, é o que já acontece com os elevadores de todos os prédios relativamente mais modernos. “Dois cabos asseguram que, caso um elemento falhe, há um segundo elemento que evita esse problema — ou minimiza as consequências dessa falha. Neste tipo de veículos e de sistemas em que o cabo tem uma função mais importante, existe um segundo cabo e um sistema de freios que é acionado quando há uma rutura do cabo. Isso permite imobilizar o veículo”, descreve Fernando Nunes da Silva, especialista em Mobilidade e Transportes e antigo vereador da Câmara de Lisboa.

Além de propôr o reforço da ligação do cabo ao trambolho — ponto onde terá cedido o cabo no acidente do Elevador da Glória —, Telmo Santos, presidente do departamento de engenharia mecânica e industrial da NOVA FCT, também apoio a utilização de um segundo cabo, “totalmente descolado do outro” e “verdadeiramente redundante” que permita que os travões de emergência sejam acionados quando se perde a ligação a um dos cabos, como aconteceu na tragédia recente.

João Cunha não consegue garantir que esse segundo cabo seja suficiente para impedir um desastre, mas tem a certeza de que seria sempre mais uma barreira de segurança. “Imaginemos que o maior problema do acidente não foi os freios serem ineficazes. Imaginemos que os freios são eficazes, mas apenas se atuarem automaticamente no momento em que a falha acontece. Bom, aí um segundo cabo já dá uma segurança suficiente, porque, em caso de necessidade, garante que o elevador não entra em queda livre e dá tempo para o acionamento dos travões, mesmo que seja manualmente”.

Para perceber se essa solução é a mais viável, João Cunha defende uma “análise de risco”, mas deixa transparecer alguma inquietação com as análises de risco (não) realizadas nos últimos tempos. Lembra, nesse seguimento, o acidente sem vítimas que aconteceu no mesmo local em 2018, de acordo com notícia do Público, e que, segundo revelou o Observador, não chegou a resultar numa “verdadeira retrospetiva do acidente”. “Tudo tem que ver com a análise de risco, é uma questão pura e dura de solução técnica de engenharia, com base na análise de risco”.

Entre a construção histórica que atrai turistas e a segurança: solução pode passar pelo material da carruagem

Outro dos pontos que merece análise, segundo os especialistas, é a construção destas carruagens. A destruição da composição ainda está bem presente na memória de quem viu as imagens do veículo acidentado. Para os peritos consultados pelo Observador, o facto de a carruagem ter um arranjo tão antigo não terá ajudado — além de ter uma base “pesadíssima de aço”, a parte superior “em madeira” destruiu-se facilmente com o embate. “A carroceria continua a ser, toda ela, em estrutura de madeira e destruiu-se como um castelo de cartas”, descreve Nunes da Silva.

“Com uma construção com todas as normas que hoje em dia existem aplicadas a veículos novos, relativamente a resistência às colisões e choques, não tenho nenhuma dúvida que o resultado seria menos grave. Agora, com um elevador a cair a 60 km/h, com uma inclinação de 18%, também não seria [só] uma caixa mais resistente que iria deixar os passageiros intactos”, entende João Cunha, que volta a reforçar a análise de risco e os valores económicos que entram em equação.

“O Elevador da Glória não era um símbolo de Lisboa por ser um veículo moderno, antes pelo contrário, há um valor económico do património que é muito visível neste caso. Ninguém vem a Lisboa para andar nos elétricos modernos. Sem prejuízo disto, há coisas muito pouco intrusivas que se podem fazer no habitáculo. Não me é difícil conceber que uma caixa deste género com um interior da época — com as madeiras, com iluminação e tudo mais — não possa ter nos extremos algumas caixas que amorteçam colisões”, completa.

“Há soluções que podem ser adotadas que não têm que pôr em causa o valor turístico e patrimonial que o veículo obviamente tem. Mais uma vez, é uma questão de análise de risco. Um sistema destes tem uma probabilidade ínfima de acontecer [um acidente destes]. Vamos ter que esperar para ver se foi uma dessas tristíssimas probabilidades estatísticas. Mas o que me parece que aconteceu foi uma análise de risco deficiente, nomeadamente não olharmos bem para os riscos que o sistema tem”, remata.