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Natália Correia no cinema: poetisa, profetisa e fantasma

“A Mulher que Morreu de Pé”, um ensaio cinematográfico em que Rosa Coutinho Cabral ajusta contas com um país que “reduziu a sua maior poeta a um anedotário”.

Joana Emídio Marques
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Numa imagem a preto e branco granuloso, o rosto de Natália Correia surge fantasmático do fundo dos arquivos: “Exijo que me chamem poetisa”, declara e declama como se estivesse a ver-nos hoje, embrulhados no século XXI, no ocaso de todas as utopias, ataviados de realismo televisivo, de absolutos vendidos como sentimentalismo, subnutridos de sonho e num tempo em que a poesia se reduz a migalhas de versos cortados à medida dos ecrãs portáteis. “Nojo das que se definem mulheres-poetas”, continua, sem remorsos e sem poder adivinhar que “poeta” é hoje o título reclamado por tantas escribas que, seguindo o exemplo da sua amiga, ex-amiga e rival Sophia de Mello Breyner, se querem herdeiras da sua herança grega.

Este fragmento é apenas um dos muitos escolhidos a dedo pela realizadora Rosa Coutinho Cabral (que também fez um filme sobre Camilo Pessanha, PE SAN IÉ) para integrar o documentário A Mulher que Morreu de Pé, que se afirma como “um ensaio cinematográfico”, uma viagem à procura da “mulher que continua a ser uma ferida aberta na cultura portuguesa (…) uma mulher até hoje odiada tanto à esquerda como à direita e, por isso, reduzida a um anedotário, a uma caricatura que é outra forma de a apagar”. Tomando como ponto de partida esta realidade, o filme constitui-se como uma provocação feita de fatos esquecidos, depoimentos quase anónimos e de uma premissa corajosa: nenhuma obra poderá comportar a intensidade perturbadora, transbordante e impertinente de Natália Correia.

A rapariga açoriana, de ossos malares salientes, que nem sequer concluiu o ensino secundário e veio para Lisboa cantar sob o nome de Célia Navarro, surge agora envelhecida entre um céu plúmbeo e poças de água. Quem foi Natália para lá da poetisa que criou um universo lírico feito de tradições populares e eruditas, de cancioneiro medieval e Barroco, de Romantismo e Surrealismo? Para lá da performer que fez do poema um palco de corpo, crítica e sátira? Para lá da ativista que viveu o desconforto que só a coragem conhece? Da mulher para quem a liberdade nunca foi apenas uma palavra, mas um compromisso de vida e de morte? Impossível saber. Resta-nos fazer como as atrizes e os atores do filme, que se submetem a um casting para interpretar o papel de Natália, e partir numa viagem entre Lisboa e os mitos, entre a ilha de S. Miguel e os cátaros heréticos, entre os olhos delineados a negro como Ava Gardner e a solidão das palavras que sobram depois da “festa das coisas possíveis”, quando “todos lhe viraram as costas e a deixaram a morrer sozinha, à exceção de Ramalho Eanes”, conta Rosa Coutinho Cabral, também ela açoriana, sem disfarçar o sotaque, que se atreveu a “cair nos abismos de Natália” para nos lembrar a centralidade desta escritora, ativista, resistente e política para a cultura da segunda metade do século XX português, e para nos mostrar que a revolução não foi de veludo e que a história não acaba nas narrativas dos vencedores.

“A inteligência do Homem mede-se pela quantidade de incerteza que consegue suportar”, escreveu Schopenhauer. Certamente a inteligência superior de Natália Correia corporiza esta frase e este filme mostra-o bem, o que desde logo o torna um objeto também ele incómodo, num tempo em que as biografias se tornaram uma mercadoria mais cobiçada do que a poesia, essa matéria apaixonada e sombria, ameaçadora da estabilidade dos pactos de classe e género, das identidades políticas e religiosas, do passado visto como coisa acabada. A Mulher que Morreu de Pé não é um biopic, nem uma série televisiva. “É uma colagem”, explica a realizadora, “incerta”, procurando quebrar “ideias cristalizadas”, interpelando “silêncios”, “exclusões educadas”, “vinganças”, “desencontros”.

Certamente um dos momentos mais inquietantes é a entrada das câmaras na casa da rua Rodrigues Sampaio, onde Natália Correia viveu mais de quatro décadas e por onde passaram poetas, escritores, opositores, conspiradores e marginais. Por lá passou até Henry Miller, os filhos de Luiz Pacheco ou as lagostas trazidas do Hotel Britânia. A casa, testemunho maior da resistência dos artistas portugueses ao Estado Novo, de paredes amarelas de tabaco e milhares de folhas de papel amontoadas, foi vendida discretamente a um casal que lhe pintou os tetos, varreu os fantasmas e a decorou sem memória. “Também a casa dos Açores foi transformada num centro de dia e depois fez-se um centro cultural com o nome dela que não serve para nada”, diz Rosa Coutinho Cabral, antes de acrescentar: “Portugal continua a odiá-la”.

Com as suas performances inflamadas, a sua poesia dionisíaca, as suas tertúlias, Natália Correia colocou a poesia feminina no centro do debate público e abriu espaço para dizer o erotismo feminino, como Diotima fez n’O Banquete de Platão, a mulher que ensina Sócrates que o sentido maior do Amor é o conhecimento. Ela foi o vírus que ajudou a matar um tempo doente — e pagou o preço. Oito livros apreendidos pela PIDE, que nunca lhe descolava do pé, um auto de fé da antologia Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, publicada em conjunto com Ribeiro de Mello, uma condenação em tribunal em plena primavera marcelista e a sua exclusão total depois do 25 de Abril de 1974, quando a sua rejeição do gonçalvismo teve como consequência o corte de relações com figuras como Mário Cesariny, Ary dos Santos, Sophia de Mello Breyner…

“A morte de Sá Carneiro e Snu foi o último golpe”, conta Rosa Coutinho. “Ela ficou sozinha, com problemas financeiros, doente, nem sequer a enterraram nos Açores, como desejava.” Em 2023, o seu centenário passou praticamente despercebido. Na Academia, a sua obra continua a ser revisitada e, pouco a pouco, a sua originalidade e a sua atualidade iluminam-se, nomeadamente o seu pensamento sobre o feminismo que, curiosamente, está muito mais alinhado com as teorias do século XXI do que com as do seu tempo.

“Bebo o vinho da/vida até ao fundo/e no fundo encontro-me/bebendo o mundo”, escreveu no poema Cântico. Oracular e desmedida, mitológica e herética, poetisa: uma das mais complexas e fecundas da nossa história, “deixou-se morrer não como pessoa, mas como árvore” e este documentário é um ato de justiça entre os muitos que lhe faltaram.