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(A) :: Manutenção da Carris passou por várias fases. Iniciou externalização em 2005, mas a dos ascensores só aconteceu em 2012

Manutenção da Carris passou por várias fases. Iniciou externalização em 2005, mas a dos ascensores só aconteceu em 2012

A manutenção dos ascensores da Carris esteve dentro de casa até 2012. Agora, a maior parte das vistorias passa por terceiros, ainda que a Carris tenha a fiscalização.

Ana Suspiro
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Alexandra Machado
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A política de manutenção da Carris tem estado debaixo de fogo desde o acidente no elevador da Glória, que provocou a morte a 16 pessoas. Uma das primeiras teorias a aparecer na praça pública apontava o dedo à transferência das competências de manutenção da empresa de transportes para fornecedores externos. A tese que foi reproduzida, designadamente por entidades sindicais representativas dos trabalhadores, estabelecia uma ligação indireta entre esta transferência e a perda de know-how interno na empresa que isso teria implicado, em particular no caso do ascensor, um equipamento centenário e com uma tecnologia muito específica.

https://observador.pt/2025/09/08/elevador-da-gloria-manutencao-externa-e-rutura-no-conhecimento-sao-fatores-indiretos-defende-strup/

O processo de externalização da manutenção começou em 2005, mas durante os primeiros anos a responsabilidade ficou em casa, quer numa unidade dentro da própria Carris, quer numa empresa da transportadora — a Carrisbus — criada em 2005.

Nos primeiros anos, a Carrisbus tinha maioritariamente a responsabilidade pela manutenção dos autocarros, e em 2010 passou a ter também atribuições na frota elétrica e ascensores. Como indica o relatório e contas da Carris de 2010, “em novembro, a manutenção dos carros elétricos, ascensores e elevador foi totalmente subcontratada à Carrisbus”. O relatório e contas do ano seguinte revelava que “este [2011] foi o primeiro ano em que a manutenção da frota de carros elétricos foi assumida pela Carrisbus, na sequência da externalização concretizada no final de 2010”. Nesta última afirmação já não são referidos os ascensores. Ainda assim, não são conhecidos quaisquer contratos para a manutenção regular dos ascensores com entidades externas até esse período.

Só em 2012 é que foi assinado o primeiro contrato global de manutenção dos quatro ascensores — Bica, Lavra, Glória e Santa Justa — com uma empresa privada, a CME.

https://observador.pt/especiais/main-empresa-que-faz-manutencao-do-ascensor-da-gloria-recebeu-4-milhoes-de-municipios-e-empresas-publicas-desde-2017/

A CME — Construção e Manutenção Eletromecânica ganhou mais dois contratos (2015 e 2018), mas, em 2019, perdeu o concurso para a MNTC, uma empresa criada em 2009, pouco conhecida e muito mais pequena que a CME. E que é a atual responsável pela manutenção. A empresa tem estado sob fogo cruzado desde o acidente de 3 de setembro, ainda que, na primeira nota informativa, o Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF)  destaque que, “segundo as evidências observadas até ao momento, o plano de manutenção previsto estava em dia e na manhã do dia do acidente havia sido realizada a inspeção visual programada, a qual não detetou qualquer anomalia no cabo e nos sistemas de frenagem dos veículos.”

https://observador.pt/especiais/o-que-dizem-as-provas-recolhidas-sobre-as-causas-do-acidente/

Uma externalização “interna” e contratos fora para reduzir custos numa empresa que estava em falência técnica

Durante 20 anos, a Carris autonomizou parte da sua atividade de manutenção na Carrisbus, que tinha contratualizado com a casa-mãe várias áreas. Se inicialmente só teve a manutenção dos autocarros, em 2010 surge como sendo a responsável também pelos carros elétricos e ascensores. Mas a partir de 2012 surge, no seu relatório e contas, uma incumbência diferente: “A atividade de controlo e fiscalização da subcontratação ao serviço da Carris dos Ascensores e Elevador”. Uma função que é descrita até ao último relatório e contas disponível, de 2024. Pela informação recolhida pelo Observador, os trabalhos de manutenção estão concentrados na Carris, que, por exemplo, no caso dos ascensores, tem a responsabilidade pela vias férreas e aéreas, bem como de outras componentes que não são abrangidas pelos contratos de manutenção que têm sido atribuídos a privados.

Entretanto, já no ano passado, a autonomização da Carrisbus foi revertida e a operação foi reintegrada na Carris, juntamente com todos os trabalhadores. Esta “decisão estratégica” é justificada com a “relevância das prestações de serviço à Carris, mas também de forma a fomentar sinergias entre as duas empresas”. Os trabalhadores da Carrisbus voltaram à Carris em janeiro deste ano, 20 anos depois da autonomização da manutenção na empresa.

Criada em 2005, a Carrisbus resultou de “uma decisão estratégica do conselho de administração da Carris — à data presidido por José Silva Rodrigues — de externalizar os serviços de manutenção e reparação de autocarros, iniciada com terceiros”. O spin off da área da manutenção para a participada foi desenvolvido por etapas “no que respeita à integração das várias áreas oficinais de diferentes escalões de manutenção anteriormente realizados pela Carris”, de acordo com a descrição feita nos relatórios e contas da empresa.

Em 2008, estava “já totalmente concretizada a externalização complementada da manutenção, suportada na estratégia de concentração da empresa no seu core business” — “o transporte urbano de passageiros, a par do recurso à prestação de serviços com acrescida especialização e eficácia e com menor custo por outras entidades”.

Reduzir os custos era um dos objetivos claramente assumidos, como se pode ler no relatório e contas da empresa de 2008, que destaca uma redução de 6,7% da fatura com a manutenção em autocarros que constituía a principal rubrica desta despesa.

Numa auditoria do Tribunal de Contas de 2009 (relativo ao período entre 2003 e 2007) indica-se mesmo que a redução de custos era um dos objetivos estabelecidos no contrato de gestão celebrado em 2007, e que a administração da Carris superou. O corte de custos operacionais (trabalhadores e fornecimento e serviços externos) era, então, uma das metas numa altura em que a Carris estava em falência técnica.

Mas havia outros objetivos. Uma maior eficiência na gestão desta atividade e a preocupação em retirar os trabalhadores afetos à manutenção do acordo de empresa que tinha sido negociado a pensar nas carreiras e turnos dos motoristas. Segundo a informação recolhida pelo Observador, essa foi uma das motivações para criar a Carrisbus.

Decisão de autonomizar manutenção foi da Carris e não da tutela, diz ex-secretária de Estado

À data secretária de Estado dos Transportes, Ana Paula Vitorino afirma ao Observador que não deu qualquer orientação para esta externalização de funções na Carris, nem tinha que dar porque era uma competência da empresa. A então secretária de Estado do primeiro Governo de José Sócrates não se recorda de ter sido consultada sobre a decisão da Carris, mas indica que também não seria contra essa especialização desde que a manutenção se mantivesse na esfera do grupo e continuasse a ser exercida pelos quadros especializados da Carris, que tinham boa reputação na área.

Acrescenta ainda que seria contra uma externalização das funções de manutenção para empresas privadas, o que não aconteceu, pelo menos nos veículos elétricos e ascensores, enquanto esteve em funções até 2009. A manutenção dos autocarros por entidades externas era menos sensível, uma vez que existem muito mais operadores neste mercado para o qual há também mais fornecedores de serviços e peças.

Ana Paula Vitorino é presidente da AMT (Autoridade de Mobilidade e Transportes), mas nessa qualidade não se pronuncia nesta fase sobre o acidente do ascensor da Glória. A AMT vai realizar uma ação de supervisão que irá incidir sobre os aspetos jurídicos e económicos dos contratos de manutenção da Carris, sua respetiva execução e fiscalização.

A concentração da Carris na atividade core era considerada uma boa prática de gestão que então estava a ser adotada por várias empresas históricas de transportes dentro e fora de Portugal. Enquanto empresa centenária, a Carris era um muito verticalizada. Tinha tudo lá dentro. Até chegou a ser dona de uma das maiores gráficas da área metropolitana de Lisboa, usada para a impressão de horários e bilhetes.

A manutenção da frota de elétricos e ascensores foi subcontratada à Carrisbus até 2011, segundo o relatório e contas de 2010 da Carris.

Primeiro contrato fora é de 2012. CME ficou até 2019 com manutenção regular

Só em 2011 é lançado o primeiro concurso internacional para a prestação de serviços de manutenção dos Ascensores da Bica, Lavra e Glória e Elevador de Santa Justa da Companhia Carris de Ferro de Lisboa. O contrato foi assinado em 2012 com a CME, a única empresa que concorreu, pelo valor de 329,232 mil euros pelo período de um ano extensível duas vezes por mais um ano. Esta contratação consta do portal Base e está referenciada no relatório e contas de 2012 da empresa.

Seria a primeira e a última vez que os documentos de prestação de contas da Carris trariam informação sobre contratos externos para a manutenção dos ascensores. De 2011 para 2012, os pagamentos da Carris à sua participada Carrisbus desceram de 9,7 milhões para 8,7 milhões de euros.

2013 foi o ano em que a Carris ficou sem presidente — Silva Rodrigues, um histórico que esteve à frente da empresa durante quase dez anos —  foi um dos gestores afastados pelo Governo de Pedro Passos Coelho por causa dos contratos com swaps (produtos complexos de cobertura de risco que causaram perdas a várias empresas de transportes). E estava na administração o atual presidente da empresa, Pedro Bogas, que tinha sido nomeado para um primeiro mandato em 2012, vindo do gabinete do então secretário de Estado das Obras Públicas, Sérgio Monteiro, do qual era adjunto. Com a saída de Silva Rodrigues, Pedro Bogas fica com funções de presidente até 2014, quando é nomeado Rui Loureiro, que, durante a fase final do Governo de Passos Coelho, acumulou também a presidência do Metropolitano de Lisboa.

O projeto passava pela integração de áreas transversais das duas empresas de transportes de Lisboa, mas no que toca à operação e à manutenção foi mantida a separação pela especificidade de cada um dos modos de transporte. Isto apesar de ter sido feito um esforço de colaboração da manutenção do Metropolitano de Lisboa nos elétricos da Carris.

O plano do então Governo era entregar a grupos privados a subconcessão da exploração do Metro e da Carris e houve muitas alterações orgânicas e a saída de vários quadros superiores de várias áreas nessa altura. Os concursos para a concessão chegaram a ser feitos, mas a chegada do PS ao poder, em 2016, travou esse processo, o que representou um recuo na integração entre Metro e Carris.

E não foi preciso esperar muito tempo para haver outra mudança. A Carris passou para a esfera da autarquia de Lisboa, liderada por Fernando Medina, em fevereiro de 2017. Nesta mudança, entrou para a presidência da Carris Tiago Farias, que foi o responsável pelo cargo entre 2016 e 2021. Pedro Bogas, que tinha saído da administração em 2016, voltaria em 2022 como presidente, já pelas mãos de Carlos Moedas após a vitória nas autárquicas de 2021.

Durante todo esse período, e desde 2012, a Carris foi contratando empresas externas para a manutenção dos ascensores, de acordo com a informação recolhida pelo Observador. Depois do de 2012, um segundo concurso foi lançado em 2015 (depois de um ajuste direto de seis meses que não consta no portal Base), na gestão de Rui Loureiro, nas mesmas condições, tendo sido vencido pela mesma empresa, a CME, pelo mesmo preço, cerca de 330 mil euros.

Concorreram também a ISPT — Industrial Services e a Pinto & Bentes. Este contrato envolveu a prestação de todos os serviços de manutenção (preventiva, sistemática e manutenção curativa) dos equipamentos, sistemas elétricos e eletromecânicos constituintes dos ascensores da Bica, Lavra, Glória e Elevador de Santa Justa, incluindo estruturas e caixas, bem como cabos de tração.

Em 2018, terá sido feita uma consulta a três entidades, tendo também aqui ficado o contrato na mão da CME. E era esta empresa que tinha a manutenção regular quando se deu o incidente de 2018, mas, ao que o Observador apurou, o descarrilamento de maio desse ano terá sido provocado por uma falha de manutenção nos rodados, segundo noticiado, na altura, pelo Público. A Carris disse já esta semana que não foi gerado um relatório a este incidente, mas que dele resultou a antecipação da manutenção geral.

Os ascensores da Carris são sujeitos a várias ações de manutenção e reparação. A manutenção regular é feita diariamente, mensalmente, semestralmente; a reparação intercalar de dois em dois anos; e a reparação geral de quatro em quatro. A reparação geral de 2018 não foi feita pela CME, que, aliás, não terá feito qualquer das operações gerais durante o seu tempo de contrato. Ainda assim, segundo apurou o Observador, nessas reparações intercalares e gerais é dado suporte pela empresa contratada na manutenção regular, nomeadamente (no caso da intercalar) na assistência à Carris na montagem e desmontagem (com contratos distintos) e a cada dois anos com a substituição do cabo (também com um contrato à parte e sendo o cabo fornecido pela Carris).

A “inovação” do contrato de um ano que abriu portas à MNTC

O contrato para a manutenção regular de 2018, cujo valor se desconhece, teve a duração de apenas um ano, ao contrário do que tinha acontecido nos anteriores que previam prolongamentos e que podiam atingir os três anos. Assim, é feito um novo concurso em 2019. E é o fim da participação da CME nestes contratos. Na Carris, considerava-se que era uma boa política de prevenção de riscos abrir novamente concurso pelo facto de a CME estar com os contratos há seis anos.

Desse concurso sai vencedora a MNTC. A CME voltou a concorrer, mas apresentou um preço tão elevado que foi excluída. O valor proposto pela MNTC, nesse concurso de 2019, foi abaixo do apresentado pelos outros dois concorrentes — a Gasfomento e a GMF Railway Maintenance Gas (grupo Comnsa)

O primeiro contrato com a MNTC foi adjudicado por 289,380 mil euros sem IVA por um ano, com a possibilidade de ser renovado pelo mesmo período duas vezes — o que aconteceu e elevou o contrato a um valor global de 868,140 mil euros.

O valor anual é inferior ao contratualizado nos dois contratos anteriores com a CME. Já instalada na empresa, em 2022, a MNTC volta a ganhar novo concurso, batendo os três concorrentes: Gasfomento, GMF e Liftech. O contrato teve a duração de 12 meses também ele renovável até ao limite de três anos.

Além das componentes de manutenção passou a incluir a reparação de danos resultantes de vandalismo ou acidentes. O valor atingiu os 995,5 mil euros. Já este ano, e com a iminência do fim do contrato de 2022, a Carris lançou novo concurso este ano com um preço base de 1,19 milhões de euros, mas foi cancelado porque nenhum candidato assumiu um valor abaixo. E isso obrigou a Carris a fazer, no final de agosto, um ajuste direto com a MNTC por cinco meses para que a manutenção não ficasse sem fornecedor. O ajuste direto foi feito por 221,3 mil euros. Pedro Bogas, presidente da Carris, espera que esse período de ajuste direto seja o suficiente para concluir novo concurso público.

A Carris disponibilizou, no seu site, os contratos com a MNTC feitos em 2019, 2022 e 2025. Mas não há outra informação sobre contratos de manutenção.