O habitualmente bilioso David Thomson é biliosíssimo para com Peter Sellers no seu The New Biographical Dictionary of Film. Uma das muitas coisas que Thomson recrimina a Sellers, que nasceu faz hoje 100 anos, é “nunca ter encontrado uma personagem”, como Groucho Marx, W.C. Fields ou Jerry Lewis, que se interpretavam sempre a eles próprios, quem quer que personificassem. Ora Peter Sellers não era, nunca foi, esse tipo de cómico. Ele era, muito pelo contrário, um construtor de personagens. O genialmente catastrófico Inspector Jacques Clouseau, da imortal série de filmes A Pantera Cor-de-Rosa, de Blake Edwards, por exemplo, foi concebido por ele. Sellers deu-lhe o sotaque francês ridículo (quem se poderá esquecer de tiradas como aquela em que, num hotelzinho na Suíça, Clouseau pergunta ao dono, “Do you have a reuuuuuum?”), o bigode, o aspecto geral, e a gabardina e o chapéu que Clouseau usava sempre, criando-lhe a identidade cinematográfica.
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A exemplo de Sir Laurence Olivier, que só se sentia à vontade numa personagem e a considerava “completada” para interpretar, quando lhe acrescentava um pormenor de caracterização específico, uma minudência de maquilhagem particular, um detalhe de guarda-roupa, uma forma de falar ou de se mexer própria, Peter Sellers esforçava-se por compor da forma mais cuidadosa e pormenorizada possível as suas personagens. Usando para isso todos os recursos da sua riquíssima paleta cómica, que iam da mestria vocal até aos talentos mímicos e histriónicos, e à capacidade de improvisação (era também um excelente baterista e poderia ter tido uma brilhante carreira musical no jazz ou no rock).
Quando chegou ao cinema, nos anos 50, Sellers, cujos pais eram artistas de variedades, tinha já bastante experiência nos palcos, e na tropa, durante a II Guerra Mundial, a fazer pantomina e comédia; e brilhava na rádio no pioneiro e popularíssimo programa cómico nonsense The Goon Show, ao lado de Spike Milligan e Harry Secombe, em que interpretava dezenas de personagens diferentes – um talento que levou para o cinema e lá aperfeiçoou. Recordemos o triplo papel da Grã-Duquesa e do Primeiro-Ministro de Grand Fenwick, e de Tully Bascombe, em O Rato que Ruge, de Jack Arnold (1959); ou, é claro, o inesquecível trio de Dr. Estranhoamor (1964), de Stanley Kubrick: o capitão da RAF, o Presidente dos EUA e o próprio Dr. Estranhoamor, na sua cadeira de rodas e com o seu traiçoeiro tique nazi no braço.
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Estava previsto que Peter Sellers interpretasse também o major King “Kong”, para o qual trabalhou aturadamente o sotaque texano, mas um acidente na rodagem fez com que o papel acabasse para ir para Slim Pickens. Juntamente com Clouseau e com Hrundi V. Bakshi, o “extra” indiano que, sem querer nem reparar nisso, espalha o caos na festa de um produtor de Hollywood no fabuloso A Festa, de Blake Edwards (1968), os três papéis de Dr. Estranhoamor, completamente diferentes na abordagem técnica, na caracterização individual, na modulação cómica, na atitude física e nas personalidades expressas, sintetizam a mestria cómica de Sellers na sua mais consumada expressão. E todos sem pinga de exibicionismo, nem deixar transparecer o menor esforço na sua criação e personificação.
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Num depoimento ao Guardian sobre esta efeméride de Peter Sellers, Woody Allen nota que ele era daqueles actores que “bastava aparecer na tela para nos começar a fazer rir”, uma qualidade muito rara, e que partilhava, por exemplo, com Totò, Louis de Funès ou os nossos Vasco Santana e António Silva. Sellers tinha também compreensão e carinho pelas personagens a que dava vida, por mais ridículas, desastradas, apalhaçadas ou falhadas que fossem. Numa entrevista sobre o Inspector Clouseau, disse: “Interpreto Clouseau com grande dignidade, porque ele pensa que é o maior detective do mundo. Mesmo quando se estica ao comprido, ele deve sempre recompor-se com essa ideia intacta em mente. No argumento original, ele era um completo idiota. Acho que uma vaidade desculpável o ia humanizar e torná-lo algo tocante”.
O mesmo sucede com o citado Hrundi V. Bakshi de A Festa, que é um desastre ambulante, mas cuja ingenuidade e vontade sincera de ajudar o mantêm sempre humano e impedem de se tornar num “boneco”, ou numa mero gatilho de gags. Idem para o excêntrico multimilionário Sir Guy Grand e os seus “jogos de dinheiro” de Um Beatle no Paraíso, de Joseph McGrath (1969), acompanhado por Ringo Starr (daí o inenarrável título português para o original The Magic Christian), ou para o patético toureiro-cantor Juan Bautista de O Bobo, de John Guillermin (1967). Este um dos filmes (e não foram poucos…) que Peter Sellers fez que merecem ser vistos única e exclusivamente pela sua interpretação.
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Outros dois papéis superiores de Peter Sellers que transcendem o registo cómico, apesar de participarem dele, são o fuinha, manhoso e sinistro Clare Quilty de Lolita, de Stanley Kubrick (1962), um dos favoritos do actor, a quem o realizador deu liberdade total para improvisar e moldar a personagem (Kubrick disse que Sellers atingiu um “estado de êxtase cómico” ao fazê-lo). Tal como Clouseau, Quilty é o produto daquilo a que poderíamos chamar um trabalho de anarquia controlada por parte de Sellers; e Chance, o jardineiro pobre de espírito e viciado em televisão de Bem-Vindo, Mr. Chance, de Hal Ashby (1979), cujas frases banais e vagas são tomadas por previsões político-económicas de grande alcance e o fazem entrar na alta roda política de Washington, sem que ele nunca perceba o que está a acontecer.
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Sellers, que dois anos antes tinha sofrido o seu segundo ataque cardíaco, obrigando à instalação de um pacemaker, alicerçou a subtilíssima interpretação da personagem, na voz, no andar e na inexpressividade lacónica, tornando totalmente plausível o facto de todos aqueles que entram em contacto com Chance o tomem pelo oposto daquilo que ele é: um sábio de poucas palavras, e não um adulto com mente de criança. O actor nunca “saiu” da personagem durante toda a rodagem, segundo o testemunho de Shirley MacLaine, que contracenou com ele. Nomeado (pela segunda vez, a primeira havia sido em 1965, pela tripla interpretação em Doutor Estranhoamor) ao Óscar de Melhor Actor, perdeu-o para Dustin Hoffman em Kramer Contra Kramer).
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Entre outros papéis notáveis que contribuíram para que Peter Sellers fosse considerado um dos maiores cómicos de todos os tempos, estão um dos membros dos desastrados assaltantes de bancos de O Quinteto Era de Cordas, de Alexander McKendrick (1955), ao lado do seu “ídolo e ideal”, Sir Alec Guinness; um sindicalista corrupto e um aristocrata em Simpático Idiota, de John Boulting (1959); em O Mundo de Henry Orient, de George Roy Hill (1964), num extravagante pianista clássico perseguido por duas adolescentes; em Duras Batalhas em Camas Fofas, de Roy Boulting (1974), vivendo cinco personagens diferentes, incluindo Hitler; em Um Cadáver de Sobremesa, de Robert Moore (1976), num detective a glosar Charlie Chan; no remake cómico-aventuroso, por Richard Quine, de O Prisioneiro de Zenda (1979), brilhante no rei Rudolfo da Ruritânia e no seu sósia cockney; e no paródico O Plano Diabólico do Dr. Fu Manchu (1980), o seu último filme, que realizou em parte após o despedimento do realizador, Piers Haggard, e onde é Fu Manchu e o seu perseguidor, o Inspector Nayland Smith.
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Sellers também assinou um filme, Mr. Topaze (1961), baseado na peça Topaze, de Marcel Pagnol, onde faz o papel do título. E em 1959, entrou numa premiada curta-metragem experimental de Richard Lester, The Running Jumping & Standing Still Film, que foi nomeada para o Óscar da respectiva categoria. Como muitos outros cómicos, Peter Sellers era um melancólico dado a depressões, e dizia ser “um exemplo clássico de todos os humoristas – só tenho piada quando estou a trabalhar”. Alegava também não ter personalidade própria. No episódio de Os Marretas em que entrou, em 1978, e pelo qual foi nomeado para um Emmy, nunca apareceu como ele mesmo mas como uma série de personagens, e disse ao sapo Cocas: “Eu nunca poderia ser eu mesmo. É que não há ‘eu’, eu não existo. Havia um ‘eu’, mas fi-lo ser retirado por cirurgia”.
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Quem trabalhou com ele teve experiências muito diferentes, dizendo que Peter Sellers podia ser intragável, impossível e errático, e um sonho de colega e profissional até à ponta dos cabelos (quando, em 1964, um ataque de coração o afastou de Beija-me, Idiota, de Billy Wilder, este disse que Sellers “precisava de ter um coração antes de ter um ataque”). Casou quatro vezes e teve três filhos, e vidas familiares complicadas. Era vaidosíssimo e chegava a ficar furioso com os filhos, se estes lhe faziam algum reparo menos simpático a uma interpretação. Tinha problemas de bebida e de drogas, e a sua saúde física e mental foi-se complicando, sobretudo a partir dos anos 70, prejudicando como o contacto com amigos, colegas e realizadores. Steven Bach, vice-presidente da United Artists, que trabalhou com ele nos filmes do Inspector Clouseau, disse que a fonte do génio de Sellers era o seu desequilíbrio mental.
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Peter Sellers morreu de ataque cardíaco, em Londres, no dia 24 de Julho de 1980. Tinha apenas 54 anos e o mundo perdeu um actor cómico prodigiosamente camaleónico e em completo domínio da sua arte, e que, nos seus melhores e mais inspirados momentos, conseguiu tocar a perfeição. No seu funeral, Sellers fez uma última piada, ao deixar escrito que fosse tocado In the Mood, de Glenn Miller, que os seus dois amigos e parceiros do Goon Show, Spike Milligan e Harry Secombe, detestavam. Mas tiveram que aguentar a peça uma última vez. David Thomson está enganado, enganadíssimo, Peter Sellers era sobredotado, proteiforme e inigualável. Talvez fosse um monstro. Mas ao menos, era um monstro com o dom do riso em jacto contínuo.