Alto quadro do Banco de Portugal, dirigente da missão diplomática em Bruxelas na transição entre as décadas de 70 e 80, ministro das Finanças entre 1983 e 1985, Ernâni Rodrigues Lopes é uma figura fundamental da história financeira, económica e política de um Portugal em mudança, no pós 25 de Abril e na antecâmara da adesão à Comunidade Económica Europeia. E é também o protagonista o livro, “Ernâni Lopes: Vida e Pensamento”, que terá lançamento público na quarta-feira, dia 10 de setembro, às 18h, na conferência de homenagem ao professor e economista, na Universidade Católica (instituição que também publica a obra). O Presidente da República estará presente e fará o discurso de encerramento da conferência.
A coordenação de “Ernâni Lopes: Vida e Pensamento” é de José Pena do Amaral, Roberto Carneiro, Abraão de Carvalho, Filipe Coelho, José Poças Esteves, Madalena Martins e Sónia Ribeiro, que selecionaram e organizaram textos a partir de um vasto arquivo: de anotações a artigos de publicações académicas, de intervenções públicas a entrevistas. O objetivo foi traçar o perfil público de Ernâni Rodrigues Lopes, que demonstrou na ação política que desenvolveu e nas decisões que defendeu ao desempenhar cargos de governação. Mas também é óbvia neste livro a vontade de revelar um lado mais pessoal, de convicções particulares, nomeadamente sobre a vida familiar e sobre a relação com a fé.
O livro não é feito apenas de textos assinados pelo próprio e neste excerto, que o Observador revela em pré-publicação, lemos um texto de outra autoria. Quem o escreve é Amílcar Theias, antigo ministro das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente no governo de Durão Barroso, entre 2003 e 2004. Além de político, Theias foi também aluno universitário de um então “jovem assistente” Ernâni Lopes e fez parte de equipas de trabalho formadas pelo próprio. Neste texto, lembra o percurso académico e as primeiras iniciativas políticas de Ernâni Lopes, o papel que este desempenhou na adesão de Portugal à então CEE e os efeitos de decisões políticas posteriores.

Conheci Ernâni Lopes no meu terceiro ano de frequência do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, quando ele, jovem assistente, nos ensinava teorias do desenvolvimento económico. As suas aulas eram bem diferentes das que tínhamos tido nos dois anos anteriores do curso. A um mundo encapsulado pelo pensamento único, num modelo capitalista, abstrato e material, em que quase tudo se traduzia por equações, opunha-se agora o mundo real, centrado no Homem e na dinâmica social. A História, a dúvida, o método e a estratégia apareciam como as ferramentas principais da análise da sociedade, do seu comportamento e da respetiva projeção no futuro. Há dias, ao ler no Financial Times o obituário sobre Sir Alan Budd, um dos mentores da viragem na política económica inglesa, no tempo de Margaret Thatcher, pensei em Ernâni Lopes e, por isso, não resisto a transcrever estas linhas: “Budd’s subsequent success underscores a point that still has resonance today – that the narrow, mathema- tical focus of academic economics is not a necessary or sufficient ingredient to improve economic policy” (FT Weekend 21/22 January 2023).
Eram temas bem mais aliciantes. Ernâni Lopes era uma personalidade contagiante no entusiasmo com que expunha as matérias, fosse da fisiocracia ao marxismo, ou das causas do subdesenvolvimento às estratégias de desenvolvimento.
Entusiasmo e empenho que ele sempre revelou, nas suas múltiplas atividades ao longo da vida. Não era um indiferente em relação às pessoas com quem se relacionava. Recordo, num ano letivo de grande agitação académica, o de 1969/70, em que as aulas estiveram praticamente paralisadas e eu já não era seu aluno, o conforto que dele recebi perante as minhas angústias e dilemas entre o meu empenho na luta académica e o risco de ter que interromper o curso e ser mobilizado para o serviço militar. No final do ano, apoiou, junto do Diretor do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, o Professor Manuel Jacinto Nunes, a minha ida para Inglaterra para um seminário de formação de jovens políticos europeus, organizado por membros dos partidos social-democrata e liberal ingleses. Mantinha uma rede larga de contactos, com peso nas gerações mais novas, em quem apostava para projetos futuros. Raramente vi alguém que mais fizesse assentar a sua ação no trabalho de uma equipa e que valorizasse e motivasse os seus colaboradores. Poucos meses após a revolução do 25 de Abril, foi-me buscar ao Ministério das Finanças para colaborar com ele no Gabinete de Estudos do PSD, que acabara de se criar. Essa colaboração foi curta, dado que pouco tempo depois partia para Bona como Embaixador de Portugal junto do governo da República Federal Alemã. Melo Antunes, ministro e principal estratega no plano político-económico do movimento militar, escolhera Ernâni, alto quadro do Banco de Portugal, com a missão de conquistar o apoio do Estado europeu mais determinante na ajuda financeira a Portugal, crucial para o novo regime. A sua passagem por Bona haveria de reforçar a sua admiração pela Alemanha e pelo seu povo, pela sua cultura, pela sua filosofia, pela música, pelo rigor e autodisciplina que tanto se ajustavam ao seu carácter. Em 1979, o governo de iniciativa presidencial, liderado por Carlos Mota Pinto, decide colocá-lo em Bruxelas à frente da missão diplomática aí existente, com a tarefa de imprimir dinamismo às negociações para a adesão de Portugal às Comunidades Europeias. As negociações, iniciadas em 1978, em paralelo com Portugal e Espanha, pouco tinham avançado. As resistências, quer do lado dos Estados já membros das Comunidades Europeias, quer internas, eram muitas. Havia a consciência de que seria necessário nomear para Bruxelas alguém com perfil político, com iniciativa e com capacidade para iniciar um diálogo suscetível de colocar as negociações sobre os carris. Ernâni acabaria por aterrar em Bruxelas já no verão, na transição do governo Mota Pinto para o governo de Maria de Lurdes Pintassilgo. Contudo, a sua boa relação com Sousa Franco, novo ministro das Finanças, facilitaria, o arranque da sua missão em Bruxelas.

Consegue, de imediato, o reforço da equipa da missão diplomática com o recrutamento de vários diplomatas e técnicos, nas áreas financeira – em que me incluiu – e dos assuntos sociais. Beneficiando de um apoio político interno alargado, assume-se como um quase ministro residente em Bruxelas. Desenvolve rapidamente intensos contactos ao mais alto nível. Para além de encontros com o Presidente da Comissão, inicialmente Roy Jenkins e depois Gaston Thorn, reúne com os principais Comissários, nomeadamente com Lorenzo Natali que tinha o pelouro do alargamento, com Xavier Ortoli, Franz Andriessen ou Étienne Davignon e com os embaixadores dos diferentes Estados-Membros.
Elabora incessantemente documentos para o governo de Lisboa apontando estratégias, descrevendo pontos sensíveis, ou precedentes de outros alargamentos. Mas não fica sentado em Bruxelas. Está consciente de que o país ainda não sabe exatamente o que quer. A adesão desperta temores de desmantelamento de protecionismos, da indústria à agricultura. Figuras públicas várias fazem eco da impreparação do país.
Para contrariar essas resistências, desenvolve uma ação mobilizadora socorrendo-se dos seus atributos de professor. Constrói uma cartilha, que repete incansavelmente, defendendo que o desenvolvimento de Portugal não será possível sem a integração económica na Europa. Vem frequentemente a Lisboa. Faz conferências, desmultiplica-se em contactos com parceiros sociais, com universidades, com a administração pública. Defende com convicção o seu ponto de vista, que é bem aceite. Como disse Jacques Delors (ex-Presidente da Comissão Europeia), Ernâni Lopes era “un homme de poids et de conviction” (Jacques Delors, Mémoires, Plon, 2004).
Não basta a vontade dos negociadores em Bruxelas. É necessário que o país identifique as suas fragilidades, aponte remédios, estabeleça prioridades. Frequen- temente, solicitava aos seus colaboradores que se colocassem na pele das autoridades de Lisboa ou dos interesses económicos nacionais e elaborassem propostas e sugestões de prioridades, que remetia a Lisboa para serem sancionadas.
A chegada do PSD (AD) ao governo, em 1980, criaria alguma ansiedade. Ernâni fora uma das personalidades que se afastara do partido. Rapidamente, Sá Carneiro afirma-lhe a sua confiança. Há uma boa relação, não só com o Primeiro-Ministro, mas também com o Vice-Primeiro-Ministro e Ministro dos Negócios Estrangeiros, Diogo Freitas do Amaral, e com o Secretário de Estado da Integração Europeia, Rui Almeida Mendes. Todos partilham a ideia de que a consolidação do regime democrático e o desenvolvimento do País estão for- temente dependentes da adesão às Comunidades Europeias.
No entanto, com a morte dramática de Sá Carneiro, no final desse ano, as tensões dentro da Aliança Democrática e no país ressurgem entre os defensores da integração europeia e as tendências mais atlantistas e/ou nacionalistas, retirando ímpeto à negociação, já ela própria em compasso de espera a nível europeu. A 31 de janeiro de 1981, o Primeiro-Ministro Pinto Balsemão “mostra-se favorável à realização de um referendo sobre a adesão de Portugal à CEE” [Maria Fernanda Rollo, João Ferreira do Amaral e José Maria Brandão de Brito (eds.), Portugal e a Europa – Cronologia, Tinta da China, 2011]. Resistências da parte de vários Estados-Membros e as dificuldades da Espanha com a transição para a democracia – que culminariam com o golpe de Estado falhado da direita pró-franquista, em fevereiro de 1981 – alimentam o ceticismo relativamente ao Alargamento. Curiosamente, este último evento iria reforçar as posições daqueles que, na Europa, consideravam urgente consolidar as duas democracias da Península Ibérica. A Guerra Fria, entre a Rússia e o Ocidente, atravessava um período de grande tensão. No outono de 1983, a Alemanha, na linha da frente, acabaria por ver instalados no seu território, pelos americanos, no seu território, a nova geração de mísseis Pershing. A Europa não podia permitir-se o surgimento nas suas costas de regimes não democráticos, eventualmente próximos de Moscovo. Em Portugal, no final do verão de 1982, graças a um entendimento entre Mário Soares, Ramalho Eanes e Francisco Pinto Balsemão, a Assembleia da República dá um passo imprescindível para a normalização do regime democrático, condição prévia para o sucesso das negociações de adesão, com a revisão constitucional que extingue o Conselho da Revolução. Uns meses antes, Ramalho Eanes faz uma visita oficial à Bélgica e às Instituições Europeias. Ernâni Lopes acompanha o General e com a sua capacidade de persuasão encoraja o posicionamento deste em relação à imprescindibilidade da adesão de Portugal e à necessidade da adaptação do regime às novas realidades. O bom relacionamento de Ernâni com o Presidente consolida a sua posição em Bruxelas em 1981 e 1982, período de alguma indiferença e indefinição. Ernâni Lopes, tal como um bom oficial da Armada, que ele servira e que tanto admirava, perante mares difíceis, mantém o rumo e continua a sua cruzada de catequização do país.
Promove e dinamiza sucessivos estágios de jovens diplomatas em Bruxelas, com preleções dadas pelos próprios quadros diplomáticos e técnicos da Missão. Dinamiza, igualmente, um curso de pós-graduação em estudos europeus na Universidade Católica Portuguesa.

Ao mesmo tempo que acompanhava a rotina das negociações, procurava discutir e analisar cenários estratégicos com os seus colaboradores (os seus Oficiais, como frequentemente nos referia, tendo implícita a imagem da tripulação de um navio atravessando águas revoltas), que reunia num “brainstorming” semanal, em que se fugia de abordar a negociação da “pevide”, expressão depreciativa das negociações no plano técnico, plano este que não era obviamente determinante naquelas circunstâncias. A excelente capacidade de manter canais de informação privilegiados e a sua apetência pela construção de cenários tornavam aquelas discussões desafiantes. Recordo-me de, nesse âmbito, Ernâni Lopes ter referido a reunificação da Alemanha como algo a ponderar, situação altamente improvável sete anos antes da queda do muro de Berlim.
Enquanto isto se passava em Bruxelas, o governo português debatia-se com uma nova crise financeira. No início de 1980, num contexto em que a economia mundial sofria os efeitos do segundo choque petrolífero, as autoridades portuguesas, com governos da Aliança Democrática, tinham posto em prática uma política macroeconómica expansionista. “No dia 12 de Fevereiro de 1980, o escudo foi revalorizado em 6 por cento, e em Junho do mesmo ano, a taxa de desvalorização mensal foi reduzida para 0.5 por cento. Paralelamente, os controlos à expansão do crédito foram moderados e não teve lugar qualquer progresso em matéria de consolidação orçamental. A orientação expansionista da política económica, claramente motivada pelo calendário eleitoral (que previa a realização de eleições legislativas em Outubro de 1980), agravou o impacto do segundo choque petrolífero sobre a economia, conduzindo uma vez mais as contas externas a uma trajectória insustentável. O défice da balança de transacções correntes atingiu 13 por cento do PIB em 1982, obrigando à negociação de um segundo acordo de estabilização com o FMI” (Marta Abreu, “Inflação e Política Monetária em Portugal antes da adopção do Euro” Banco de Portugal/Boletim económico/primavera, 2005).
A 25 de abril de 1983, realizaram-se eleições para a Assembleia da República, tendo o Partido Socialista ganho apenas com maioria relativa. Perante a grave crise financeira, Ramalho Eanes, Mário Soares e Carlos Mota Pinto (novo líder do PSD) entendem-se para que se constitua um governo apoiado pelos dois maiores partidos e chefiado por Mário Soares, base indispensável à estabilidade requerida para se fazer face aos dois principais desafios do País: evitar a bancarrota e entrar rapidamente na Europa. Para essa dupla tarefa, Soares vai buscar Ernâni Lopes, que acumulará as Finanças e o Plano com a Integração Europeia. A adesão é importante para a recuperação financeira e esta última é um requisito indispensável para Portugal entrar nas Comunidades Europeias. Ernâni Lopes sabe isso melhor do que ninguém. Era preciso agir e depressa. Começava a desenhar-se na Europa uma convergência de vontades no sentido de concluir o alargamento a Portugal e à Espanha. Mas o País não se podia apresentar à mesa das negociações, em Bruxelas, em situação de rutura de pagamentos. Ernâni Lopes negoceia, em três meses, um Acordo de Estabilização com o FMI, que impôs um severo programa económico. Respondendo no Parlamento, afirma: “Estava em causa, muito cruamente, a própria capacidade de assegurar, em termos de financiamento externo, o financiamento corrente da actividade económica. Chegámos, meus Senhores, a essa fase. Não é o governo que enferma de uma estreita miopia financista, é a realidade que nos apresenta a fatura” (Assembleia da República, interpelação ao governo, outubro de 1983). Os tempos são muito difíceis. Como regista Rui Ramos, na sua História de Portugal, “a recessão de 1983-1984 foi a mais grave desde a Segunda Guerra Mundial. O desemprego chegou aos 10%” (Rui Ramos, História de Portugal, 2.ª ed., Dom Quixote, 2024).
A pressão de amigos de Mário Soares, que temiam que a política de austeridade levasse a fortes reveses eleitorais nas eleições legislativas e presidenciais seguintes, levam Soares a ponderar alargar um pouco o cinto: “Falei com o Ernâni, sensibilizando-o para a questão eleitoral. Teve uma resposta muito firme, recusando frontalmente alterar a sua política. Disse-me que o seu contrato era comigo e com o País – até ao fim – mas que não lhe parecia conveniente, em termos nacionais, ceder a pressões eleitoralistas. Respeitei o seu ponto de vista (…)” (Obras de Mário Soares, A História Contada com Maria João Avillez, Democracia, vol. 2, tomo II, Imprensa Nacional, setembro, 2024).
Em menos de três anos, Ernâni Lopes consegue pôr as contas externas no verde, com “superavit” corrente de 0,3% do PIB (fonte Bpstat.bportugal.pt).
Na frente europeia, apoiado pelo seu amigo e colaborador de sempre, António Marta, e beneficiando da boa recetividade de Bruxelas, onde tinha portas abertas, consegue, em estreita ligação a Mário Soares, acelerar as negociações. Os ventos estavam de feição, com as cimeiras de Estugarda, em junho de 1983, e de Fontainebleau, em junho de 1984, sob as lideranças do novo chanceler Helmut Kohl e do presidente François Mitterrand, que arrumaram finalmente a casa europeia, permitindo a entrada de novos membros.
Ernâni Lopes voa constantemente para Bruxelas. “Dossiers” espinhosos para Portugal, como a agricultura, as pescas, ou a livre circulação de trabalhadores, até então praticamente bloqueados, conhecem progressos significativos, que haveriam de culminar com as maratonas negociais de fevereiro e março de 1985, sob presidência italiana. O fecho dessas negociações foi difícil. Os técnicos e diplomatas levantando problemas de última hora e os interesses vários exercendo pressões em todos os azimutes criavam um clima de descrença e o sentimento de que ainda não seria desta. O Alargamento estava, porém, decidido ao nível político pelos chefes de Estado e de governo. O Reino Unido, depois das concessões que obtivera na cimeira de Fontainebleau, era claramente favorável à sua realização. O tempo das ameaças e pequenas chantagens nacionais estava terminado. Em outubro de 1984, Mário Soares conseguira, rompendo com os procedimentos comunitários estabelecidos, assinar com o presidente do Conselho Europeu, Garret Fitzgerald, em Dublin, uma Declaração Conjunta (“Constat d’Accord” entre Portugal e a CEE) gravando o compromisso da data de 1 de janeiro de 1986 para a entrada de Portugal como membro de pleno direito nas Comunidades Europeias. A dificuldade residia agora em cortar pontas soltas em alguns capítulos da negociação, permitindo plasmar num Tratado, dentro do prazo irreversível, o conjunto de direitos e obrigações de todas as partes envolvidas. “Le diable se cache dans les détails” seria uma das frases mais ouvidas nos corredores de Bruxelas por aqueles dias. O exercício requeria uma determinação que ultrapassasse as resistências das burocracias nacionais. A presidência italiana, exercida por Giulio Andreotti, de quem o Ministro espanhol dos Negócios Estrangeiros, Fernando Morán, afirmaria que tinha dado provas da sabedoria romana e da paciência de um franciscano, estava apostada em concluir as negociações. Madrugada dentro, numa pequena sala, Jacques Delors, o Comissário Lorenzo Natali, Giulio Andreotti e o notável Embaixador italiano, Presidente do Coreper, Pietro Calamia iam ouvindo as delegações num exercício conhecido por “confessionário”. Ernâni Lopes, com a sua forte personalidade, fazia ouvir os pontos de vista do País. Parecia que haveria uma corrente que passava entre os três homens, Andreotti, Delors e Ernâni Lopes, todos latinos, todos pró-europeus, todos católicos, todos com uma disciplina monástica de devoção ao trabalho, na tarefa de alargar a Europa a dois dos membros mais fiéis da cristandade, propósito que o próprio Vaticano não escondera que acarinhava. Várias madrugadas destas aconteceram, em que recordo Ernâni Lopes a sair das salas e a pedir que lhe trouxessem uma camisa lavada para a reunião da manhã seguinte. Num desses dias, ao início da noite, sou chamado por Ernâni ao gabinete do Presidente da Comissão, Jacques Delors. Encontro os dois com o principal conselheiro económico de Delors, Jérôme Vignon.

Pedem-me e a Vignon que façamos uma simulação do balanço financeiro da adesão – com o que Portugal receberia dos fundos comunitários e o que teria de pagar pela sua contribuição para o financiamento do orçamento comunitário – e que lhes apresentássemos o resultado antes do nascer do sol, o que foi feito. Delors parecia desesperado perante o arrastar de pés dos serviços da Comissão, que após anos e meses de negociações deixaram para as últimas horas um exercício essencial para a avaliação dos efeitos do Alargamento em termos políticos e económicos. Delors e Ernâni tinham apostado claramente em dois colaboradores próximos da sua confiança para fazerem aquele exercício. Ernâni tinha esta capacidade extraordinária de escolher colaboradores, de os liderar e de os manter em rede, mesmo que afastados física e institucionalmente. Eu tinha permanecido em Bruxelas após a sua ida para Lisboa como ministro das Finanças, mas isso não o impedia de me falar diretamente, sempre que considerava oportuno. Mais tarde, uns meses após a assinatura dos Tratados, Ernâni teria de participar, pela primeira vez, num Conselho de Ministros das Finanças, no Luxemburgo. Tratava-se de um Conselho “Informal”, isto é, um Conselho em que os ministros estão sozinhos, sem o apoio de embaixadores ou outros membros do aparelho diplomático. Ernâni, por motivos de agenda interna, não teria possibilidade de estar presente. Resolveu telefonar-me e pedir para o substituir, situação de algum embaraço para mim e para a própria presidência luxemburguesa de que tive de dar conta. Este facto e o meu protagonismo nas negociações de adesão, graças à confiança que em mim depositou Ernâni Lopes, acabariam por ser determinantes do convite que me foi feito, mais tarde, pelo Secretário-Geral do Conselho de Ministros das Comunidades Europeias, para ocupar o lugar de diretor para os assuntos económicos e financeiros daquele secretariado. Guardo, naturalmente, uma grande gratidão pela oportunidade que essa confiança permitiu.
No final da primavera de 1985, já com as negociações fechadas, o panorama político em Portugal iria alterar-se profundamente. A nova liderança política do PSD, ganha por Cavaco Silva (Congresso da Figueira da Foz, em 19 de maio), apostava em governar sozinha, rompendo com o modelo do bloco central. No combate político, um dos trunfos que usa são os resultados das negociações, que diz não acautelarem satisfatoriamente os interesses nacionais. Alguma comunicação social apoiante de uma rutura com os socialistas e setores do meio empresa- rial mais conservadores vergastam o governo com críticas e receios do desastre próximo. Procuram, a todo o custo, evitar ou adiar a assinatura do Tratado. O desentendimento entre o PS e o PSD é tal que, conforme diz Mário Soares a Maria João Avillez, “nas vésperas [da cerimónia da assinatura do Tratado, em 12 de junho], ainda não se sabia se assinavam ou não” [leia-se: se o PSD estaria de acordo ou não que o governo assinasse o Tratado de Adesão] (Obras de Mário Soares, A História Contada com Maria João Avillez, Democracia, Vol. 2, Tomo II, Imprensa Nacional, setembro 2024). No dia seguinte, 13 de junho, os ministros do PSD demitem-se fazendo cair o governo do Bloco Central. Curiosamente, após as eleições legislativas de 6 de outubro, os governos do PSD aderem com entusiasmo ao desafio europeu e ganham até o epíteto do “Bom aluno”.
Ernâni Lopes termina ressentido com esse clima de partidarite que se sobrepôs ao verdadeiro interesse nacional. Ressentimento tanto maior para quem, como ele, tanto priorizava a causa pública. Ernâni acabaria por se afastar da política europeia durante uns longos anos, embora continuasse ligado às suas temáticas, através do Centro de Estudos/Instituto de Estudos Europeus, que ele dinamizou na Universidade Católica Portuguesa. Ernâni Lopes teria sido um notável comissário europeu, prestigiando o país. A sua voz autorizada e respeitada em Bruxelas, em particular por Jacques Delors, a capacidade de antecipação, a sua visão estratégica e o seu profundo sentido de homem de Estado teriam certamente muito beneficiado a construção europeia. Concluo com o melhor elogio das qualidades de Ernâni Lopes enunciado por Mário Soares na entrevista a Maria João Avillez: “Competente, corajoso, combatente, determinado, rigoroso, patriota, com um invulgar sentido de Estado e de missão” (Obras de Mário Soares, A História Contada com Maria João Avillez, Democracia, Vol. 2, Tomo II, Imprensa Nacional, setembro 2024).