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Kate Moss, o boom das clínicas de detox e a overdose fatal que abalou a indústria: os anos do "heroin chic"

Em meados de 90, a moda entregou-se ao niilismo, excessos e magreza extrema. E fazer check in para reabilitação tornou-se elemento de status. O declínio acentuou-se com a morte de um fotógrafo.

Maria Ramos Silva
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O desejo de querer parecer cansado – ainda mais cansado do que o habitual – é uma tendência que muitos terão dificuldade em entender e assimilar, mas o facto é que “tired eyes” ou “sleepy eyes” é um dos tópicos correntes mais populares no TikTok por estes dias. Nada que não seja facilmente replicado em casa, à conta de um risco pronunciado nos olhos, uma sombra escura, ou mesmo uma noite mal dormida, a forma mais prática e económica de exibir os sinais de fadiga, caso deseje aderir à bizarria mais recente.

Tempos houve em que a moda teve uma expressão mais duradoura, e bem mais nefasta. Em meados dos anos 90, a expressão heroin chic disseminou-se, em oposição à estética e cultura saudáveis e vibrantes da década anterior, plasmada na euforia fitness que encheu as páginas das revistas e na proporção harmónica de lendas como Cindy Crawford, Brooke Shields, Christie Brinkley, e Elle Macpherson, caras frescas e saudáveis que as convertiam nas next door girls do momento. Não é que a cocaína não circulasse já abundantemente e provocasse os seus estragos, mas o advento da chamada “cultura da droga”, com a normalização crescente na classe média e aceitação cada vez mais pública dos consumos, preparava-se para voos mais altos e arriscados.

No princípio era Gia Carangi, depois o sexo, as drogas e o rock de Kate Moss

Passou à história como uma das primeiras “supermodelos” da Moda, que aos 18/19 anos auferia qualquer coisa como 100 mil dólares, uma pequena fortuna nos anos 70, começo de 80. Descente de italianos, descoberta numa discoteca em Filadélfia, a sua terra natal, chegou a Nova Iorque no final daquela década, ascendeu à fama num ápice, e em 1982, aos 26 anos, morreu de SIDA. Gia Carangi, eis a manequim que circulou pela famosa cena musical, noturna e artística servida pelo Studio 54, e cujo trajeto acabaria por pavimentar um certo elogio da degradação. Angelina Jolie interpretou-a no premiado filme da HBO de 1998, e quando Cindy Crawford ascendeu ao estrelato chegou a ser conhecida como “Baby Gia”, pelas semelhanças físicas. A saga de Carangi (a heroína chique que não foi uma pretty story, como narrava o The New York Times) foi, no entanto, bem menos feliz, facilmente remetida para segundo plano quando o foco se situa nas suas herdeiras. Mas o facto é que está associada a inúmeras referências do meio que até hoje perduram. Em julho de 1980, ocupava a primeira página da Cosmopolitan, cercada por um sem fim de chamadas de capa elucidativas dos desafios e pequenos dramas da época, da pintura do apartamento à maquilhagem, sem esquecer as dicas para melhorar a vida sexual. Ainda que o apogeu do heroin chic estivesse por chegar, a vida breve de Carangi foi premonitória do que estaria ao virar da esquina.

Curiosamente há outro vocábulo essencial neste glossário que ficará para sempre associado à antiga manequim. Em 2013, na Atlantic, o seu biógrafo desculpou-se pela criação do termo fashionista, que apareceu pela primeira vez na página 100 do livro de 1993 Thing of Beauty: The Tragedy of Supermodel Gia. “Criei-o porque enquanto estava a escrever sobre a indústria da moda – e a imersão da jovem modelo Gia Carangi nele – não havia uma maneira simples de me referir a todas as pessoas numa sessão para uma foto de revista ou imprimir um anúncio. Cansei-me de listar fotógrafos, editores de moda, diretores de arte, cabeleireiros, maquilhadores, todos os seus assistentes e modelos como o pequeno exército de pessoas que estavam no local. Este também foi o grupo que, de acordo com um ilustrador de moda de topo que entrevistei, se tornou coletivamente “as famosas pessoas não famosas” no Studio 54″, explicou Stephen Fried. “Uma vez que estava a reler um monte de jornais e revistas do período da carreira de Gia no final dos anos 70 e início dos anos 80, e a lembrar-de um monte de cobertura de sandanistas (e um monte de piadas “-ista” entre os meus amigos escritores da revista), eu só decidi tentar usar algo assim.”

A história que se segue cheira a Obsession for men. Em 1993, Calvin Klein enviou um jovem casal apaixonado de férias para as Ilhas Virgens britânicas. Ela era uma manequim pouco ou nada conhecida de 17 anos, ele um aspirante a fotógrafo com 19. O designer pediu-lhes que documentassem a viagem. Com uns centímetros abaixo do previsto no cânone e magnetismo ímpar, Kate Moss descolava na campanha a preto e branco para o perfume da Calvin Klein captada pelo então namorado Mario Sorrenti.

Natural de Croydon, Londres, descoberta aos 14 anos por Sarah Doukas, a modelo chamara a atenção da indústria logo em 1990, graças a uns retratos feitos pela britânica Corrine Day, publicados na revista The Face. Por altura daquelas imagens, que se tornariam fundamentais na história da moda e na sua história pessoal Moss ainda vivia com a mãe na capital britânica. A dupla de irmãos Sorrenti, napolitanos que cresceram em Nova York e que aos 10 anos e se mudaram para Londres para perseguir modelos, costumavam ficar com seu agente. “Éramos só um casal de namorados a tirar fotos”, comentava Mario em 2018 à Vogue, quando o antigo par se reuniu para o lançamento do álbum fotográfico “Kate”, com imagens dos primórdios da carreira da manequim.

Mais do que a rosto da manequim emergente ou o espírito andrógino, era o seu corpo que ia escrevendo um novo rumo no setor. A tradição curvilínia e o clássico glamour perdiam terreno para a chegada da anti-top model, com aquele charme desengonçado e um físico skinny. As acusações de promoção da anorexia não tardaram mas Moss lá foi trilhando o papel de musa, tornando-se uma das manequins mais icónicas e bem pagas daquela era – e mantendo a relevância nas páginas das revistas já no século XXI, fiel ao seu estilo e vencendo as polémicas que marcaram o seu caminho.

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A vida pessoal, a rotina fora de horas e as relações tempestuosas concorreram com o brado profissional. Em 1995, haveria poucas imagens mais emblemáticas do que vê-la entrar em alguma festa com um cigarro nos lábios e Johnny Depp ao seu lado. A super modelo e a super estrela de cinema simbolizavam como ninguém a trindade sexo, drogas e rock n’ roll, um namoro que preencheu as páginas das revistas, ocupou os fãs e terá alarmado boa parte dos encarregados de educação por esse mundo fora.

Na Moda, nesse mesmo ano, Kate figurava pela primeira vez na capa da Vogue, consolidando a aventura, e personificando cada vez mais a juventude branca, urbana e da classe média que importava para a sua zona de influência os consumos até aqui circunscritos às franjas da sociedade. “As configurações das fotos, bem como a implicação do uso de heroína transmitem um estilo de vida de classe inferior, no meio do qual são colocadas roupas caras e modelos de moda. Estas conotações de riqueza entre as insinuações da pobreza sugerem uma queda em desgraça, um desejo de vida no limite e uma incongruência fascinante que atrai o espectador. Embora a heroína antes dos anos 90 tenha sido amplamente retratada no cinema, na televisão e nos media como uma droga usada pelos negros, as modelos heroin chic são quase universalmente brancas.”, escreve-se na tese de 2001 “Embodying Withdrawal:Abjection and the Popularity of Heroin Chic”, de Mary Rizzo, uma de muitas que analisa a tendência e a forma como foi corporizada essencialmente pelo “branco angustiado, hipster de classe média”, transmitindo uma enganadora imagem de segurança no consumo”.

Kate ficou amorosamente associada ainda a nomes como o publisher britânico Jefferson Hack, com quem teve a filha Lila, em 2002, e ainda o músico Pete Doherty, com quem foi fotografada a consumir cocaína em 2005, um escândalo nos jornais que levou ao cancelamento de inúmeros contratos — e teremos sempre a galeria de looks em Glastonbury para revisitar a cartilha festivaleira. No ano seguinte, contudo, depois de um processo de reabilitação, retomaria o seu lugar na indústria. Seguiram-se o também o músico Jamie Hince, de quem se divorciou em 2016, mantendo no entanto o party mode relativamente ativo. Os tempos ao lado do Nikolai von Bismarck podem ser outros mas Kate ficará para sempre associada ao culto heroin – ao chic é certo é sabido, pelo menos bem ao seu estilo único.

Quando foi entrevistada para um documentário do Channel 4 em 1998, David Bailey’s Models Close-Up desvalorizou a fama que tinha nesta matéria: “Eu não uso mais drogas do que os outros – especialmente heroína depois de tudo o que aconteceu com Davide.” (já lá iremos).

Da viúva mais famosa do grunge a Trainspoting

Fotógrafos como Mario Testino foram essenciais no encanto da indústria pelo conceito. As páginas das revistas de Moda encheram-se de manequins menos conhecidas, que praticavam valores abaixo das principais top models. A atenção concedida a estas ilustres desconhecidas com potencial de super estrela foi recorrente nesta era. O minimalismo clean e depurado de nomes como Calvin Klein e da estética Clinique coadjuvava os dias movidos a nicotina, álcool e outros companheiros de estrada. À primeira vista, as intenções até tinham o seu quê de positivo: o triunfo de Moss mostrava que havia uma via aberta para aspirantes a manequins com outro perfil, menos romântico, menos glamouroso, menos fiel às medidas padronizadas, talvez um pouco mais próximo da comum das mortais. Mas em pouco tempo, o contrapeso à sensualidade extrema dos anos 80 revelou-se nocivo. E além da heroína, um recém-chegado ao mercado tornou-se igualmente trendy no mercado norte-americano, o Prozac.

Entre o cinema e a publicidade, uma jovem Drew Barrymore associava-se à Guess em 1993. A sua relação com as drogas nunca foi propriamente um segredo bem guardado. Álcool desde os 9, erva aos 10, cocaína aos 12, busca de ajuda aos 13. Aos 36, ainda acusava problemas em manter-se completamente sóbria. O caldo de cultura perniciosa foi especialmente apurado nesse ano: o mundo ficou em choque com a overdose fatal do ator River Phoenix. A partir daí, não faltaram poderosos embalos. Os primeiros anos de 90 pertencem ao grunge e todas as suas manifestações. Com Nirvana à cabeça, e a coroa sobre o casal Kurt (Cobain) & Courtney (Love), Seatle distribuiu lições sobre música, moda, e estilo de vida (e morte). O desfecho, funesto, adensou a lenda. Para alternativas à flanela, os combustíveis servidos pela cultura hip hop e gangsta, e ainda a emergência da cultura rave e clubing, num sortido de MDMA, Ecstasy, Ketamina e LSD que viram a sua popularidade escalar. Na pop, “Justify My Love” (1990) de Madonna testemunhava uma abordagem mais direta e desafiadora da sexualidade na música. De resto, as criações Gaultier para a Blond Ambition World Tour, nesse mesmo ano, mostraram ao que vinha a nova década.

No grande ecrã, os filmes dos anos 90 abraçaram os conteúdos explícitos, desafiando normas no retrato do sexo e das relações. O poder e o desejo foram cristalizados em títulos como Instinto Fatal e atrizes como Sharon Stone, Kim Basinger, Demi Moore reinaram como sex symbols absolutas. Em 1994, Pulp Fiction de Quentin Tarantino fornece o tom certo para definir a década e o glam de uma heroinómana Uma Thurman. Larry Clark lançava em 1995 o polémico Kids, a saga do amoral adolescente Telly (Leo Fitzpatrick) cujo objetivo era ir para a cama com o maior número possível de virgens, omitindo ser portador do HIV. O filme chegou a motivar acesos debates com pais e educadores, a uma escala hoje comparável ao efeito provocado pela série “Adolescência” (Netflix). No ano seguinte, Danny Boyle adaptava a obra de Irvine Welsh e lançava Trainspotting, objeto de culto para toda a uma geração. Clark voltaria à carga com Another Day in Paradise, com James Woods, Melanie Griffith, Vincent Kartheiser, e Natasha Gregson Wagner. Os anos 90 não terminam sem Delírio em Las Vegas, de Terry Gilliam (1998), para um pouco de psicadelismo. Já em 2000, o drama psicológico Requiem for a Dream, de Darren Aronofsky, repescava um romance de 1978 para ilustrar a cultura das drogas que marcara os últimos anos.

Na fotografia de moda, Terry Richardson é acusado desde 2001 de conduta sexual imprópria por várias manequins, levando a que inúmeras marcas e publicações cortassem o vínculo. Mas o facto é que os anos anteriores foram indissociáveis das doses de pornografia que trouxe para os seus retratos. O volume Terryworld (2004) é um compêndio de algumas dos mais gráficos e controversos conteúdos da sua autoria. O encontro entre arte e fotografia de Moda, ao serviço de uma sombria paleta de cores, ganha no entanto um fôlego através de autores como Juergen Teller, Craig McDean, e David Sims. Para trás ficavam os luxuosos cenários e modelos voluptosas da alta-costura de oitentas. Num registo tão austero quando cru, títulos como a I-D, The Face, Harper’s Bazaar, W e Interview reverberaram os passos das tendências imprimidas por Calvin Klein, Matsuda, Miu Miu, Prada e Hugo Boss.

Se Moss foi a poster girl do movimento por excelência, outros nomes ficaram associados ao conceito que vingou nos early noughties, com aqueles olhos borrados de maquilhagem como se acabassem de chegar de algum clube noturno; pele sem viço, cabelo desgrenhado; olhar perdido, ambientes de casas de banho ou caves decadentes a servirem de décor. Na Allure, a norte-americana Zoe Fleischauer chegou a relatar a sua dependência, confessando mesmo que em todas as fotos publicadas durante sua carreira estava drogada: “Ninguém percebia”. Para quem preferia alternativa ao nome heroin chic, havia também o junkie chic. A britânica Jodie Kidd foi outro rosto sonante do movimento.

Na capa de GQ, rotulou-se a novíssima “Geração H” (de heroína), numa alusão à anterior geração X. “Os heróis do estilo dos anos 90 são os adolescentes viciados em drogas e passarelles”, decretou na revista “Arena Homme Plus” o profeta Iggy Pop.

Depois de Obsession, a Calvin Klein continuava a canalizar milhões nas suas campanhas sexy que piscava o olho à complexidade dos verdes anos urbanos. CK One é outros dos lançamentos da década. Steven Meisel fotografou um casting aparentemente banal, como se os tivesse descoberto pela rua, e cultivou os melhores looks East Village numa produção e que juntou Kate Moss, a compatriota Stella Tennant, e uma vibe undergound do tráfico nova-iorquino.

Das clínicas aos artigos de jornal: o mercado da reabilitação

Depois dos seus anos na Casa Branca (1974-1977), a ex-primeira dama e mulher de Gerald Ford, manteve-se ativa no movimento feminista e na cruzada contra o alcoolismo e abuso de substâncias, demónios pessoais que não só confessou publicamente como se empenhou na tomada de consciência do vício. Depois de se recuperar, fundou e dirigiu o primeiro centro de recuperação com o seu nome. A partir de 1982, as clínicas Betty Ford estiveram para os EUA  e para um leque de celebridades como a rede The Priory Hospitals se afirmaria no Reino Unido.

“Nos últimos dois anos, tantos pacientes famosos vaguearam pelos seus jardins que a imprensa encurtou o nome da clínica, simplesmente para “The Priory”. Lenny Henry é o famoso residente deste mês. Antes dele, era Kate Moss; antes dela, era Derek Draper, ou Paula Yates, ou Eric Clapton ou Michael Barrymore (…) Em troca de £3.000 por semana, geralmente por várias semanas, The Priory persegue os seus demónios por eles. Trata problemas alimentares e alcoolismo, stress e depressão, Transtorno Afetivo Sazonal e “todos os transtornos psiquiátricos” no meio. Os métodos do hospital são altamente avaliados, até mesmo incansáveis: “A uma pessoa com uma fobia de aranhas”, diz um folheto do The Priory, “poderia primeiro ser pedido para olhar para uma imagem de uma aranha, mais tarde ser mostrado uma aranha viva em um recipiente fechado, e eventualmente incentivado a lidar com a aranha.”, lê-se num artigo de julho de 1999, no jornal The Guardian. Por essa época, o destino da rede privada de cuidados era incerto, mas anos antes fazer check in era quase seguir a tendência dos famosos.

Os media britânicos começaram a dar atenção aos “convidados” do The Priory, como eram conhecidos os pacientes em 1994, quando Paul Merson se instalou admitindo vício da cocaína e do jogo. O registo subiu de nível quando a aristocrata Lady Isa Brocket, amiga do então príncipe Carlos, começou a ser tratada depois de uma overdose de comprimidos para dormir. As clínicas garantiam que mais de 90% dos seus clientes eram anónimos mas a lista de caras conhecidas a nível doméstico foi crescendo. Seguiram-se as comediantes Ruby Wax e Caroline Aherne, o cantor escocês Marti Pellow, e até Marina Ogilvy, filha da princesa Alexandra de Kent.

A noção de que se podia lucrar com a saúde mental era uma novidade para o público e investidores britânicos, mas não para a Community Psychiatric, a empresa norte-americana que já geria centros deste género nos EUA, ganhando força nos anos 80 quando o governo norte-americano endureceu as punições pelo uso ilegal de drogas — o mercado de desintoxicação explodiu em conformidade, claro está. Para não falar do potencial criativo — Alice Cooper escreveu o álbum de 1978 From the Inside enquanto estava internado num dos centros Betty Ford; Ozzy Osbourne passou ali três semanas em 1986, e Lindsay Lohan é uma das veteranas no recurso àqueles serviços.

Do outro lado do Atlântico havia um outro fator em jogo: o serviço nacional de saúde (NHS) desinvestira das instituições de saúde mental, mas a procura não só não caiu como aumentou. No começo dos anos 90, quase metade dos clientes do Grupo The Priory estariam a ser compartecipados pelo governo. A rede de cuidados acabou por ser comprada pelos seus gestores, financiados pela Mercury Asset Management e vários bancos. Em 2005, a rede de 1800 camas dispersas por 42 localizações já valia 875 milhões de libras.

Facto é que germinou toda uma pequena teia de relações públicas ligadas aos programas de detox das celebridades. Também a ansiedade, a depressão e outras questões do foro mental fazem parte deste pacote. O ex-futebolista Paul Gascoigne, as cantoras Amy Winehouse Lilly Allen ou o banqueiro português António Horta-Osório juntam-se à A-List que passou pelas instalações do The Priory. Depois de Moss, Winehouse terá sido um dos exemplos mais gritantes de queda no abismo (desta vez sem retorno).

Antes da explosão das redes sociais, alguns pacientes realizavam conferências de imprensa para anunciar as suas recuperações. Outros lavravam artigos de jornal narrando os seus dias de internamento. No caso de Kate Moss, não era preciso dar-se ao trabalho: os jornais escreviam por si, como aconteceu quando deixou um lenço perto de uma vela e ativou três alarmes de incêndio, deixando a clínica-mãe em prevenção máxima. Roehampton, no sul de Londres, fora construída em 1811 como casa particular e convertida em hospital em  1872, sendo a mais antiga instituição psiquiátrica de Londres. Mas nos idos de 90 e primeira metade dos anos 2000, o entra e sai de celebridades dava ideia que não passava de um campo de férias para ricos, famosos e entediados.

O fim de festa e a geração Ozempic

Não é que Naomi Campbell fosse uma novata no assunto mas ainda em 97, depois do homicídio do designer e seu amigo Gianni Versace, a manequim britânica admitiu que passou a abusar de álcool e cocaína. Por essa altura, na passerelle, o arquivo guarda manequins com escaramuças várias, olhos negros, semblante pesado. Para a história passaria o desfile em Paris outono-inverno de Antonio Berardi, um ensaio sobre as implicações da violência, vitimização e auto-destruição, que provavelmente hoje obrigaria a muita contextualização. Estávamos no cair da década e, tal como Ícaro, a indústria haveria de pagar o seu preço por se aproximar demasiado do sol.

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A tendência rebentou com a morte precoce de Davide Sorrenti, irmão de Mario. Em 1997, o fotógrafo de moda tinha apenas 20 anos quando sucumbiu a uma overdose. Para trás ficava o resultado do trabalho com a sua Leica, uma vasta crónica da boémia nova-iorquina e retratos de nomes promissores como a atriz Mila Jovovich, a manequim Jade Berreau, ou a sua namorada Jaime King, também ela refém da adição. Curiosamente, o termo que aqui nos traz foi vincado após o desaparecimento de Sorrenti. “Isto é heroína, isto não é é chique. Esta coisa do heroin chic tem que parar“, alertava Ingrid Sischy, editora da Interview Magazine de 1989 a 2008.

A mãe de Davide, Francesca Sorrenti, moveria uma campanha ativa contra o uso de drogas no meio, tentando limpar o apelido do filho, mas o peso no ambiente era indisfarçável. O circuito que nunca se livrou de má fama sujeitava-se ao teste de stress máximo quando o assunto era cumplicidade e desvalorização de dilemas omnipresentes: o peso, idade e outros traços de perfil dos manequins, os comportamentos de risco associados, o espectro do assédio, etc etc etc.

Nas páginas do The New York Times, a editora de moda Amy Spindler (1963-2024), que seguiu de perto aquela era, assinalava o óbito que deixava uma nódoa no mundo da Moda, recordando como as fotos dos 90 bebiam dos registos do fotojornalista Larry Clark nos anos 60 ou dos instantâneos da madrinha do undergoundNan Golding, em 1970. Até o então presidente dos EUA, Bill Clinton, que já se manifestara sobre as fotos de adolescentes nas campanhas da Calvin Klein, interrompeu um pequeno-almoço para comentar a fatalidade. “Não é preciso glamourizar o vício para vender roupas,” observou Clinton. “A glorificação da heroína não é criativa, é destrutiva. Não é bonito; é feio. E não se trata de arte; trata-se de vida ou morte. E glorificar a morte não é bom para nenhuma sociedade.”, sentenciou, tal como é visível no documentário-biografia See Know Evil. Lançado em 2019, recorda o falecido fotógrafo.

Em 1999, o ritmo podia continuar acelerado mas a Vogue pregava o arranque de uma nova e urgente fase, liderada pela brasileira Gisele, que até 2006 se notabilizaria com as asas de anjo da Victoria’s Secret, um cortejo de perfeição física que voltou a mexer com o estereótipo vigente, incompatível com semblantes decadentes. Mais tarde, levantaria toda uma outra discussão.

Mais recentemente, contudo, o termo heroin chic voltava a ser alvo de menções. Ativa nos anos 2000, a manequim canadiana Erin Spanevello tinha apenas 21 anos quando morreu de overdose, em 2008. É comum observar a regra dos 20 anos quando se fala do retorno cíclico de tendências. Entre todos os possíveis throwbacks, entende-se que este é um dos mais alarmantes, já que envolve muito mais do que uma simples reciclagem de guarda-roupa, desfilado hoje por influencers que popularizam a estética Y2K, como as irmãs Hadid, Dua Lipa, Kaya Gerber ou Zendaya. Os alarmes voltaram a soar com a série Euphoria.

Em 2014, a manequim britânica Edie Campbell tornou-se o rosto da fragrância Black Opium, da Yves Saint Laurent (YSL) Beauté, uma campanha que chegou a ser investigada no Reino Unido pela Autoridade de Padrões de Publicidade após receber 11 queixas sobre a alegação de a publicidade dá uma imagem glamourosa das drogas, e a tendência das referências esbeltas mantinha-se para lá da viragem do milénio. De certa forma, a toada dos noventas nunca ter saído completamente de cena. Nos primeiros anos dos 2000, a diet culture continuou a fazer o seu caminho, programas como America Next Top Model ou The Biggest Loser tornaram populares o duelo contra a balança, e celebridades como Nicole Richie ou as gémeas Olsen reposicionaram os padrões de magreza e aspeto soturno. Bom, e trinta anos depois, quem diria que a corrida ao medicamento para emagrecer Ozempic dominaria as conversas de lifestyle.

Sobre manequins e magreza, a discussão é cíclica e nunca uma pasta totalmente arquivada. Recentemente, um dos gigantes da fast fashion teve que redimir-se por causa de uma campanha com modelos demasiado magras. Mas num mundo de smoothies verdes, tostas de abacate, sessões de yoga, estúdios de pilates e muito mindfullness, haverá realmente margem para reabilitar o pisar de risco de outros tempos? É provável que a discussão dure bem mais que um cigarro desmaiado na boca de Kate Moss.