A inteleção da primeira crença indubitável (cogito) confere ao sistema cartesiano um critério de verdade. Sumariamente, o raciocínio de Descartes pode ser aduzido do seguinte modo: se a indubitabilidade do cogito se deve ao facto de a sua existência ser concebida de forma clara e distinta, então, presumivelmente, todas as coisas que podemos conceber clara e distintamente são verdadeiras. Tenhamos em consideração que o cogito representa uma verdade independente do espaço e do tempo, bem como de toda a materialidade do mundo.
Não obstante a imperfeição óbvia do cogito (não ético-axiologicamente, mas em sentido ontológico), este possui a ideia de perfeição. Se o conceito de imperfeição (não perfeição) tem uma conotação negativa, quer dizer que deriva de uma comparação com o conceito positivo que lhe corresponde — o conceito de perfeição. Ao investigar a causa desta ideia, Descartes analisa as realidades que transcendem a esfera mental, mas não encontra em nenhuma delas mais perfeição do que aquela que o cogito evidencia. Conjeturalmente, equaciona ainda a hipótese de a ideia de perfeição ter sido criada pelo cogito; todavia, não tarda a refutar esta conjetura, afirmando que algo imperfeito não pode originar a ideia de perfeição, na medida em que a causa não pode ser inferior ao efeito. Conclui, então, que a génese da ideia de perfeição reside na existência real da própria perfeição, que é Deus. A este respeito, leia-se o argumento exposto nas Meditações sobre a Filosofia Primeira:
“Então agora é manifesto, pela luz natural, que deve haver pelo menos tanta realidade objetiva na causa eficiente e total como no efeito da mesma causa. Porque, pergunto, de onde pode o efeito tirar a sua realidade, a não ser da causa? E de que modo poderia ela conferir-lha se não a possuísse também? Daqui se segue que nem algo pode provir do nada, nem também aquilo que é mais perfeito, isto é, que contém em sim mais realidade, daquilo que contém menos perfeição.”
Tal como explicitámos na parte I, a dúvida cartesiana adquire uma dimensão metafísica aquando do aparecimento da conjetura do deceptor. Contudo, na Terceira Meditação, o percurso dialético de Descartes leva-o, como vimos, a admitir a existência concreta da perfeição em ato (Deus), o que redundaria no afastamento da hipótese do deceptor. Por conseguinte, no início da Quarta Meditação é invocado o seguinte raciocínio: “(…) em toda a falácia ou logro se descobre alguma imperfeição. (…) Querer enganar atesta, sem dúvida nenhuma, malícia ou fraqueza de espírito: o que, por isso, não pertence a Deus.”
Importa, outrossim, adentrar na noção de “substância” e compreender a sua tripartição na filosofia cartesiana: 1) a substância pensante (res cogitans), que “(…) duvida, compreende, afirma, nega, imagina e sente”. 2) a substância divina (res divina), que é infinita, omnisciente, omnipotente e sumamente boa. 3) a substância extensa (res extensa), que diz respeito a toda a realidade física/corpórea. Em contraposição a toda a filosofia medieval e renascentista, Descartes defende que o cosmos não foi feito à imagem de Deus e que representa apenas a evidência da Sua vontade e omnipotência. Não esqueçamos que o mundo, na ótica do filósofo francês, não passa de uma substância extensa e dinâmica cujo funcionamento pode demonstrar-se matematicamente.
Nos Princípios de Filosofia, o autor define uma “substância” como sendo “aquilo que pode ser pensado como necessitando somente de si mesmo para existir”; talvez esta definição evidencie uma incongruência pelo facto de não contemplar os conceitos de “mundo” e de “cogito”, contrariando o que havia sido preconizado nas Meditações sobre a Filosofia Primeira. Leia-se a explicação adiantada na sinopse desta obra: “(…) todas as coisas que são concebidas com clareza e distinção, (…) do mesmo modo que se concebem o espírito e o corpo, são na verdade substâncias entre si realmente distintas (…)” Esta é uma problemática deveras interessante, no entanto, ousar enquadrá-la no presente artigo seria um empreendimento pouco sensato. Como tal, terminaremos com uma exposição telegráfica sobre este ponto.
No cartesianismo, as substâncias divergem entre si por culpa do seu atributo essencial ou principal: Deus distingue-se pela perfeição/infinitude, enquanto o mundo se distingue pela extensão e o cogito pelo pensamento. A distinção entre duas substâncias verifica-se, pois, quando é possível conceber uma delas separadamente. Por exemplo, podemos pensar a ideia de Deus sem que nesse ato de pensamento conste a ideia de mundo ou a ideia de cogito.
A distinção entre uma substância e o seu atributo essencial só pode efetivar-se por intermédio da razão, visto que na realidade essa separação não existe; somente o intelecto pode formar uma representação deste tipo. É exequível, e. g., distinguir a ideia de Deus da ideia de infinitude, pese embora Deus seja uma substância infinita. Apraz-me referir, por último, que Descartes proclama a necessidade de discernir os modos da substância: trata-se da distinção entre a substância e os modos como ela pode existir (por exemplo, um corpo, que é substância extensa, pode ter figura ou movimento, que são modos seus), ou da distinção entre dois modos da mesma substância (num corpo, a figura, que é um modo, distingue-se do movimento, que é outro modo).