Um rei que não reinou. É esta a definição de Isabel Lencastre, autora que escreve sob pseudónimo, para D. Luís Filipe de Bragança, o filho mais velho do rei D. Carlos e que foi assassinado com o pai em 1908, aos 20 anos. Viveu poucos minutos para além do então monarca, o que fez dele rei por aqueles breves momentos antes do colapso. “De D. Luís Filipe pouco ou nada se sabe. É uma figura apagada ou esquecida da história de Portugal”, explica ao Observador a escritora, que considera que “contar a sua história, que não será empolgante mas é interessante, pareceu-me um dever de justiça. Uma espécie de serviço público.” A autora destaca que, apesar da vida breve, Luís Filipe de Bragança “desempenhou um papel mal conhecido na agonia da Monarquia da Carta”, baseada na Carta Constitucional outorgada por Pedro IV em 1826 e que teve o seu terceiro período entre janeiro de 1842 até outubro de 1910. “E foi um dos protagonistas do Regicídio“, recorda Isabel Lencastre, sobre o episódio que marcou a história de Portugal.
Foi a 1 de fevereiro de 1908, quando regressavam de Vila Viçosa, a passar de carruagem pelo Terreiro do Paço, mais precisamente na rua do Arsenal, que dois militantes republicanos, Manuel Buíça e Alfredo Costa, atingiram primeiro D. Carlos e em seguida o príncipe herdeiro. Terá sido o próprio rei a mandar baixar a capota do landau, escreve Isabel Lencastre, baseada em relatos da época. Na carruagem ia também o irmão mais novo, D. Manuel II, que foi mais tarde proclamado rei aos 18 anos, e que recorda a atitude heróica de Luís Filipe ao levantar-se e abrir fogo contra os atacantes, a tentar defender o pai. Foi atingido no peito e, depois, no rosto, num tiro que se revelou fatal. “O príncipe sobreviveu uns poucos minutos a seu pai, que viu morrer. E caiu logo depois de se levantar na carruagem, para fazer frente aos assassinos. No seu mais que fugaz reinado creio que só pode ter pensado na morte – de que, dizem alguns, estava aliás à espera”, assinala a autora de O Rei que Não Reinou, editado pela Oficina do Livro, uma das poucas biografias sobre o príncipe até hoje.
Infância: um incêndio, algumas manchetes e muitos passeios
Luís Filipe de Bragança tinha apenas oito meses quando enfrentou a primeira situação que terá colocado a sua vida verdadeiramente em risco. O quarto do príncipe no paço de Vila Viçosa incendiou-se e o bebé foi salvo pela ama, ficando com queimaduras na testa e num braço. Noutra passagem da infância, o príncipe terá “previsto” o reinado do irmão, ao trocar com Manuel uma fatia de bolo rei com a “fava da profecia”. “Será rei tanto quanto eu puder”, terá dito Luís Filipe sobre o irmão mais novo, que celebrou a “sorte” naquela noite.

O príncipe real só foi reconhecido como sucessor do trono pelos pares do reino e deputados depois da ascenção do pai, D. Carlos, que se tornou rei com a morte de D. Luís em outubro de 1889. Tal responsabilidade caminhou com Luís Filipe ao longo de toda a vida, tendo já aos quatro anos assentado praça no Regimento de Infantaria no quartel de Santo Ovídio, sob a matrícula 1724. Ao mesmo tempo, viajava com a família real e mostrava-se simpático às abordagens dos populares, com a típica inocência infantil — numa ida ao santuário do Bom Jesus do Monte, em Braga, terá sido perguntado sobre como se chamava: “Olhe, não sei. O papá chama-me Luís, a mamã Luizinho, e toda a outra gente príncipe”.
Pormenores que Isabel Lencastre foi buscar “à imprensa da época, mas também diários e memórias de personalidades ligadas à Família e à Casa Real. E os documentos (cartas, fundamentalmente) existentes no cartório da Casa Real, na Torre do Tombo, uma mina que tem muito que contar”, revela. “Quando os reis e os príncipes apareciam em público, essa aparição era notícia de quase todos os jornais do tempo. E as pessoas reais mostravam-se quase todos os dias – passeando-se por Lisboa, visitando estabelecimentos públicos, assistindo a espectáculos vários, tomando parte em cerimónias oficiais. Tudo isso era objeto de notícias, publicadas, regra geral, nas secções mundanas. Mas tudo isso, também, era feito com conta, peso e medida”, assinala a autora.

As passagens dos jornais relatam, por exemplo, os muitos passeios dos príncipes com a mãe, a rainha Amélia, e a avó, a rainha Maria Pia, seja por Lisboa, Cascais ou Vila Viçosa. “É costume dizer-se que D. Luís Filipe era o menino querido de sua mãe. Mas o que me surpreendeu foi a força dos laços que o prendiam a seu pai – por quem tinha uma adoração. Foi aliás a defendê-lo (ou a vingá-lo) que ele perdeu a vida”, ressalva Isabel Lencastre. Uma devoção que foi construída principalmente ao longo da segunda década de vida, quando recebeu a educação para, um dia, ser rei.
Juventude: preparado para reinar e os limites da vida privada
Aos 12 anos o príncipe passou a ser acompanhado pelo aio, Mouzinho de Albuquerque, e por um perceptor de educação, Franz Kerausch. Tanto Luís Filipe como o irmão Manuel iniciaram os estudos com vários professores para Português, Latim, Inglês, Francês Aritmética, Desenho, Química, Física, Pintura, Equitação — enquanto Filosofia, Direito, Literatura, História, Estratégica, Tática e História Natural foram disciplinas reservadas apenas ao herdeiro ao trono. A preparação para assumir como o rei de Portugal envolvia uma rotina com aulas a partir das 7h até as 19h30. Contudo, também havia tempo para os hobbies da época, entre os quais as caçadas nas tapadas de Queluz ou de Vila Viçosa com D. Carlos, as cavalgadas pela Avenida da Liberdade com D. Amélia e as matinées com o irmão e o aio.

Dois anos depois de iniciar a formação, Luís Filipe passa a assumir um papel mais importante no cenário institucional. No aniversário de 14 anos janta pela primeira vez à mesa de Estado, e é quando também atinge a idade prevista na Carta Constitucional da Monarquia para prestar o juramento como príncipe real: “Juro manter a Religião Católica, Apostólica Romana, observar a Constituição Política da Nação Portuguesa, e ser obediente às Leis e ao Rei”, repetiu o pretendente ao trono português no Palácio de São Bento. Na sala da Câmara, ainda antes do juramento do filho, D. Carlos discursou a todas as autoridades presentes: “A santidade do juramento, as tradições dos seus ascendentes e os sentimentos, em que tem sido educado, de veneração pelas heróicas tradições deste nobre povo, de firme dedicação às nossas instituições liberais e de fervoroso empenho nas prosperidades da pátria lhe asseguram que Sua Alteza Real, fiel aos deveres jurados, saberá sempre guardar a religião do Reino, sustentar a liberdade da Nação e merecer o afeto do povo português, que é o melhor e mais decoroso galardão dos príncipes”.
Alguns meses depois do juramento, o príncipe real viajou com o aio e o perceptor ao Norte do país, passando vários dias a visitar as cidades da região, entre elas o Porto, Braga e Guimarães. A viagem não terá tido um caráter oficial, mas a postura muitas vezes informal de D. Luís Filipe durante os encontros terá sido questionada na imprensa — com críticas diretas à educação de Mouzinho de Albuquerque. De acordo com os relatos dos jornais da época, em algumas ocasiões o príncipe terá evitado cumprimentar autoridades e até mesmo a população, deixando eventos sem ser notado. Correspondentes acusaram o filho de D. Carlos de tratar o povo com desdém e ter práticas de incivilidades e grosserias. E o culpado seria o aio, que teria excessiva “liberdade de procedimento”. No regresso à Lisboa o rei nada terá dito sobre as críticas, mas a viagem poderá ter tido impacto na decisão de Mouzinho de Albuquerque que, quase três meses depois, tirou a própria vida. “Perdoe-me Vossa Majestade e não me ache cobarde pelo que fiz. Mas ser tido em mau conceito, ser desprezado é mais do que posso. Não creio que o suicídio nestas circunstâncias não seja um direito”, escreveu o aio do príncipe à rainha.
Pouco tempo depois, Luís Filipe assumiria a sua primeira missão oficial como príncipe real no estrangeiro a representar a família real portuguesa na coroação de Eduardo VII em Londres, que acabaria atrasada devido a uma apendicite diagnosticada ao monarca britânico. Enquanto outros príncipes deixaram a Inglaterra ao saberem da doença, o príncipe português permaneceu — e dias depois recebeu as insígnias de cavaleiro da Ordem da Jarreteira das mãos do então príncipe de Gales, uma condecoração que era “testemunho de gratidão a Portugal pela simpatia manifestada pelo seu rei durante a guerra do Sul de África”, escreveu Soveral, ministro de Portugal em Londres, num telegrama enviado a Lisboa. O príncipe foi o único português condecorado ainda antes de subir ao trono e o seu irmão, Manuel, o último rei de Portugal, foi também o último cavaleiro português da prestigiada ordem. Isabel Lencastre repete ainda o relato de um jornal australiano que escreveu que Luís Filipe foi o único dos príncipes convidados a ver o rei Eduardo VII, a quem abraçou e disse “coisas simpáticas acerca dos seus pais e do seu país”. O jovem príncipe de 15 anos ainda terá recusado um convite para fumar um charuto, respondendo: “I’m too small yet“. A coroação acabou adiada para 9 de agosto de 1902, e foi o marquês de Soveral a representar a família real portuguesa, o que terá causado alguma frustração ao príncipe real.

Já com Afonso XIII de Espanha a proximidade dava-se pela idade. Quando o rei espanhol visitou Portugal tinha 17 anos, era apenas um ano mais velho do que o príncipe português. “Os dois pareciam estudantes muito amigos em férias encontrando em tudo pretexto para se desforrarem da monotonia e das preocupações do tempo passado no colégio”, escreveu o jornalista Lourenço Cayolla sobre o que presenciou em Vila Viçosa. Anos mais tarde Luís Filipe viajaria a Madrid para acompanhar o casamento real, que foi alvo de um atentado bombista que provocou dezenas de vítimas — apesar do casal sair ileso.
As relações com outras realezas europeias também geravam rumores de casamento. A imprensa especulou algumas vezes sobre uma potencial noiva para o príncipe português, incluindo Dagmar da Dinamarca, a princesa Patrícia, filha dos duques de Connaught, ou Beatriz de Saxe-Coburgo. Entretanto, Luís Filipe morreu aos 20 anos sem ter oficializado nenhum noivado. “A vida amorosa de D. Luís Filipe é um segredo bem guardado – e, depois de todas as pesquisas efetuadas para escrever a sua biografia, não creio que venha alguma vez a ser desvendado”, confidencia Isabel Lencastre.
Vida adulta: um príncipe com qualidade para reinar
Aos 18 anos Luís Filipe já era um membro ativo da realeza e começava a assumir funções políticas. Institucionalmente, recebia ao lado dos pais figuras importantes internacionais, como a rainha Alexandra ou o imperador Guilherme II, assim como o Presidente francês, Émile Loubet, e passou a ser o regente na ausência do rei. “Todos os que o conheceram louvam as qualidades que teria para reinar: o seu bom senso, a sua capacidade de escutar e aprender, a clara noção dos seus deveres, a cuidada educação que recebera. Nenhum príncipe português terá sido tão cuidadosamente preparado para subir ao trono como este – o primeiro (por exemplar exemplo) a visitar as províncias ultramarinas portuguesas”, explica a escritora, sobre a viagem às colónias em África durante um dos momentos mais críticos da política no país, em 1907.

Contudo, Luís Filipe não vivia num bom momento para reinar. Em novembro de 1905 a monarquia parecia à beira do abismo, altura em que o príncipe assumiu, pela primeira vez, a regência, devido a uma viagem de D. Carlos a Paris. A regência ficou marcada pela concessão do hábito de Cristo ao jornalista português Clímaco dos Reis, que terá sido expulso do Brasil por “mercadejar com mulheres”. Alertado por jornais como o jornal de dissidentes progressistas Novidades ou o Século, o príncipe mandou rasgar o decreto que tinha assinado, e deixou a ordem sem efeito. A atitude de Luís Filipe, assim como a forma pacífica com que comandou o reinado durante o mês de ausência do pai, serviram de combustível para os que defendiam uma abdicação de Carlos a favor do filho. “O Rei D. Carlos não tinha muitos amigos. E, no final do seu reinado, eles eram ainda menos. Houve então quem defendesse a abdicação do monarca para salvar a Monarquia. Não é certo que essa abdicação tivesse salvo o que quer que fosse. Mas também é verdade que não foi seriamente tentada”, explica Isabel Lencastre.
Um episódio sucedido durante a regência poderá refletir a opinião do príncipe real sobre o tema. Durante uma ópera no São Carlos, o filho do rei e a rainha Amélia foram ovacionados pelo público (incluindo alguns dissidentes progressistas, contrários ao reinado de Carlos). Luís Filipe terá agradecido a homenagem e então se retirado, tendo assumido nos bastidores: “Miseráveis! Com os seus vivas insultaram o meu pai! Aquilo diante de mim são bofetadas no rei ausente. Canalhas!”. Para a autora da biografia, a devoção ao pai era tamanha que assumir o reinado naquele momento não era uma opção para o príncipe. “Uma coisa é certa: D. Luís Filipe seria sempre o maior inimigo dessa abdicação e só a aceitaria se essa fosse, de facto, a vontade do pai”.
A crise política e o regicídio
A 21 de março de 1906, caiu o governo regenerador de José Luciano de Castro e, a 19 de maio, o governo progressista de Hintze Ribeiro, que ficou conhecido соmo о “ministério dos Cinquenta e Oito Dias”. A 19 de Maio de 1906, Carlos confiou então o governo a João Franco, líder do Partido Regenerador Liberal, que em abril havia criado, com o Partido Progressista, a Concentração Liberal. Porém, a partir de maio de 1907, dissolvida a Câmara dos Deputados, o presidente do Conselho de Ministros passou a governar sem o parlamento. O rei foi de monarca constitucional a um soberano que apoiava uma administração equiparada a uma ditadura, e também responsável pela crise política do reino.
A oposição republicana crescia nas ruas, com greves nas universidades e o afastamento de antigos setores monárquicos. Ao mesmo tempo, aumentavam os questionamentos sobre os gastos da família real, além do apoio público de Carlos a João Franco numa entrevista ao francês Le Temps. Republicanos e dissidentes progressistas avançam então para uma tentativa de golpe de Estado a 28 de janeiro de 1908, junto ao Elevador da Biblioteca, com acesso pela Praça do Município. O movimento fracassa, e os rebeldes são enviados para colónias africanas por um decreto assinado pelo rei no mesmo dia. Porém, a 1 de fevereiro, no regresso da família real de Vila Viçosa a Lisboa, a confiança de Carlos I ditou o seu fim.
Rei e herdeiro ao trono foram mortos no ataque perpetrado por Manuel Buíça e Alfredo Costa, dois militantes republicanos. Os atacantes, bem como o oficial de ourives João Sabino da Costa, que mais tarde foi considerado inocente, foram abatidos pela polícia de seguida. Os funerais realizaram-se a 8 de fevereiro e só 25 anos depois os corpos foram levados para o mausoléu em mármore na igreja de São Vicente de Fora. Na sequência do regicídio, o trono recaiu sobre o segundo filho de Carlos e Amélia. O rei Manuel II governou por cerca de dois anos antes de ser destronado pelo golpe republicando, exilando-se em Inglaterra até o fim da vida, sem deixar herdeiros.