Em 1930, na sequência de uma famosa conferência de grande sucesso, John Maynard Keynes escreveu um pequeno ensaio visionário, “Economic Possibilities for our Grandchildren”. Nele, o pai da Macroeconomia Moderna, antecipava que, graças ao progresso tecnológico e à acumulação de capital, os seus netos (isto é, nós!) trabalhariam cerca de 15 horas por semana, livres da necessidade económica e com tempo para se dedicarem ao que realmente importa, como despender tempo com cultura, arte e lazer, e com a procura de melhor qualidade de vida.
A previsão era ousada, mas otimista: no final do século XX, pensava ele, o “problema económico” — o da escassez, consubstanciado na luta pela subsistência e pela satisfação das necessidades básicas — estaria resolvido. E o grande desaÞo da humanidade seria encontrar propósito e equilíbrio num mundo finalmente liberto da tirania do trabalho.
Quase cem anos depois, estamos bastante longe disso. Continuamos a trabalhar em excesso, a medir cada hora, a justiÞcar cada pausa. E, como prova disso, eis o que nos ocupa, neste momento, uma boa parte do debate público: se uma mãe pode ou não amamentar afetando para isso tempo do horário de trabalho.
Não está em causa apenas um regime legal ou uma cláusula contratual. Não está em causa este ou aquele prevaricador, que os há em todos os contextos. Está em causa uma visão de sociedade que ainda valoriza o tempo em função da produtividade — e desconfia de tudo o que escapa a essa lógica. O tempo para cuidar, nutrir ou simplesmente existir tem de ser explicado. Justificado. Autorizado. E ainda assim, poderá não ser aceite…
Esta tensão entre o que conta para a economia e o que conta para a vida não é nova. Recordo, nas primeiras aulas de Introdução à Economia, quando somos confrontados com o facto de que o PIB ignora o trabalho não remunerado, como o das mulheres que, historicamente, cuidaram dos Þlhos, dos idosos ou da casa. Este trabalho, embora essencial para o funcionamento da sociedade, não entra nas contas nacionais — não porque não tenha valor, mas porque não tem preço. E aquilo que não tem preço, muitas vezes, não tem voz.
A amamentação, neste contexto, torna-se símbolo de uma distorção mais profunda: um ato vital, insubstituível, recomendadíssimo, mas invisível para a lógica contabilística que ainda hoje organiza o tempo e o valor. Um momento de cuidado transformado em “pausa” — e uma pausa transformada em “problema”.
O paradoxo é gritante: produzimos mais do que nunca, com menos pessoas e mais ferramentas. A produtividade por hora trabalhada cresceu de forma contínua nas últimas décadas, em todos os setores. As tecnologias de automação, análise de dados e inteligência artificial — que deveriam libertar tempo — são muitas vezes usadas para intensiÞcar o controlo. O tempo livre não aumentou, mas a pressão sim.
Keynes imaginava outra coisa. Escreveu: “para a primeira vez desde a sua criação, o homem vai encarar o seu verdadeiro, permanente problema — como usar a sua liberdade da preocupação económica, como ocupar o tempo de lazer que a ciência e o capital acumulado lhe conquistarão.” Mas esse tempo de lazer, de descanso e de cuidado continua suspenso. Porque o nosso modelo económico não sabe lidar com o que não rende, e isso inclui, ironicamente, tudo o que nos torna humanos.
Vivemos uma obsessão com o “tempo útil”. Desde as empresas que monitorizam cliques e chamadas, às que cronometram pausas para café, tudo é medido, gerido, otimizado. E nesse modelo, amamentar não entra. Porque não é quantificável, nem escalável, nem negociável.
Mas talvez o problema seja esse. Reduzimos o trabalho a uma métrica. E esquecemos que trabalhar é também cuidar. Que produtividade não é apenas output, mas também saúde, equilíbrio, bem-estar. Que uma sociedade com mães esgotadas e filhos malcuidados (malcriados?) pode crescer economicamente, mas não prosperará civilizacionalmente.
Importa sublinhar: a culpa não é exclusiva dos empregadores. Esta visão estreita do tempo e do valor é social e consubstanciada por um modelo económico que recompensa o consumo incessante e penaliza a pausa, o descanso e o cuidado. A pressão para produzir mais não vem apenas de cima, mas também das nossas expectativas coletivas sobre o que significa “viver bem”. Trabalhamos mais para manter estilos de vida que nos são vendidos como mínimos desejáveis, numa economia que gera desigualdade e ansiedade como efeitos colaterais do crescimento que se quer perpétuo. Simples.
Keynes pode ter errado o calendário, mas não o diagnóstico. O problema económico está, em grande medida, resolvido. O problema agora é o político, o cultural, o ético: o de redirecionar os frutos do progresso para onde realmente importam.
Talvez seja tempo de reformularmos a pergunta: não é se podemos permitir pausas para amamentar, mas sim se nos podemos continuar a permitir uma economia que ignora o valor de cuidar. 2030 está já aí.