Durante décadas, o relógio serviu apenas para medir o tempo. Hoje, no pulso de milhões de pessoas, já não se limita a marcar minutos e segundos. É também um observador silencioso da saúde. Os smartwatches [relógios inteligentes] transformaram-se em dispositivos capazes de recolher dados em tempo real sobre o corpo e, no caso do coração, de oferecer sinais precoces que podem fazer a diferença entre ignorar um sintoma e procurar ajuda médica. Não fazem diagnósticos, mas podem dar o alerta que desencadeia uma avaliação clínica. É essa a conclusão de um artigo de revisão de 2024 que analisou 25 anos de investigação sobre o papel destes dispositivos na monitorização, motivação e previsão em saúde.
No centro desta revolução estão seis parâmetros que estes relógios, dependendo da marca e modelo, obviamente, conseguem medir [ver imagem sobre os parâmetros monitorizados por smartwatches]. O primeiro é a frequência cardíaca. Um sistema de sensores óticos, com pequenas luzes LED que iluminam a pele e captam o reflexo da luz no sangue, mede o número de batimentos por minuto. É um dado simples, mas poderoso: uma alteração inesperada no ritmo — seja demasiado rápido, demasiado lento ou irregular — pode ser o gatilho para que o utilizador procure um médico.
À noite, o relógio continua atento. Recolhendo dados de movimento e da variação da frequência cardíaca, avalia padrões de sono e descanso. Estes registos ajudam a perceber se o corpo está a recuperar como deve, algo fundamental para quem vive com doença cardiovascular ou está em reabilitação após um enfarte.
Alguns modelos têm ainda a capacidade de registar um ECG de um só canal. Não substituem o exame completo feito no hospital, mas permitem ao utilizador registar o ritmo cardíaco quando sente palpitações ou outro sintoma, informação que pode ser útil para confirmar arritmias.

Durante o dia, o smartwatch também contabiliza passos, minutos de atividade e intensidade do esforço. Através de acelerómetros, mede o movimento e transforma-o em dados que ajudam a cumprir metas de exercício, muitas vezes definidas por médicos ou fisioterapeutas no contexto de reabilitação cardíaca.
O sensor de temperatura da pele é outro elemento discreto, mas relevante. Ao registar variações térmicas ao longo do dia, pode detetar alterações fisiológicas que, se persistentes ou acentuadas, justificam atenção clínica.
Por fim, há a medição de oxigénio no sangue (SpO₂), feita com luz vermelha e infravermelha. Valores mais baixos do que o normal podem indicar problemas respiratórios ou circulatórios e servir de alerta para procurar cuidados médicos.
Em setembro de 2017, começou um dos maiores estudos alguma vez realizado para avaliar o potencial de um smartwatch na saúde cardiovascular. Chama-se Apple Heart Study e envolveu 419.297 participantes [ver imagem “Um pulso de alerta”]. O objetivo era simples de descrever, mas ambicioso de concretizar: perceber se o Apple Watch conseguia detetar irregularidades na frequência cardíaca que pudessem ser o primeiro sinal de uma arritmia como a fibrilhação auricular [caracterizada por batimentos cardíacos acelerados e irregulares].
Ao longo de meses de monitorização, o relógio esteve atento a variações que fugiam ao padrão habitual. Quando isso acontecia, o utilizador recebia uma notificação de pulso irregular. No final, 0,52% dos participantes receberam esse alerta. Parece pouco, mas num universo de mais de quatrocentas mil pessoas, representa milhares de potenciais casos que, de outra forma, poderiam ter passado despercebidos.
Receber a notificação era apenas o início. Noventa dias depois do alerta, os investigadores voltaram a contactar os participantes para saber o que tinham feito com a informação. Dos que responderam a este inquérito — 1.376 pessoas —, 76% disseram ter procurado um médico.

Houve ainda um segundo momento de avaliação, no final do estudo. Nesta fase, foram analisadas as respostas de 929 participantes que tinham recebido o alerta. Quase metade — 44% — indicou que um profissional de saúde tinha confirmado o diagnóstico de fibrilhação auricular.
O Apple Heart Study não prova que o relógio substitua o diagnóstico médico, algo que, de resto, os próprios investigadores sublinham. Mas mostra que a simples existência de uma notificação, entregue no pulso, pode mudar comportamentos. Para mais de três quartos dos notificados, o aviso transformou-se numa visita ao médico. E, para quase metade destes, esse passo resultou na identificação de uma arritmia.
Quem usa smartwatches?
No Apple Heart Study, a população participante foi muito numerosa e heterogénea, abrangendo vários estados norte-americanos e uma larga faixa etária, dos 22 anos em diante. Embora o estudo não tenha publicado a distribuição detalhada por género e idade, mostrou que a tecnologia atrai utilizadores de diferentes perfis, refletindo a diversidade da população interessada em monitorizar a sua saúde através de um wearable [dispositivo tecnológico que pode ser usado no corpo para monitorizar e registar parâmetros de saúde].
Para perceber melhor quem está, de facto, a usar estes dispositivos, recorremos a dados globais compilados pela GlobalWebIndex (GWI), divulgados pelo DataReportal. Estes números [ver imagem seguinte] mostram a proporção de utilizadores de smartwatch por faixa etária e género, entre os 16 e os 64 anos.
Segundo esta análise, o grupo mais representado é o dos 25-34 anos, com 27,2% das mulheres e 26,9% dos homens que usam smartwatch. A seguir surgem os utilizadores dos 35-44 anos (24,5% mulheres, 25,5% homens) e dos 16-24 anos (19,6% mulheres, 21,0% homens). As percentagens mais baixas estão nas faixas etárias mais velhas incluídas no estudo — 55-64 anos — onde apenas 12,7% das mulheres e 16,1% dos homens usam estes dispositivos.
Entre gráficos e números, há uma realidade que Francisco Araújo, médico internista e presidente da Sociedade Portuguesa de Arterosclerose, não deixa esquecer: “Os dados relativos à saúde em geral e à saúde cardiovascular em particular são escassos, de muito fraca qualidade e com base em metadados [informação sobre como, quando e em que condições os dados foram recolhidos] diferentes”. Explica que, por trás de estatísticas aparentemente simples, há metodologias de recolha que variam de país para país, de idade mínima para a amostra à forma como os casos são registados. “Nada mais falacioso do que comparar dois países sem perceber que um recolhe dados a partir dos 18 anos e outro a partir dos 40. Ambos podem estar tecnicamente bem-feitos, mas os metadados são estruturalmente distintos.”
Para Francisco Araújo, esta falta de comparabilidade científica não invalida os avanços tecnológicos, mas obriga a contextualizar. O médico recorda que a digitalização da saúde cardiovascular não é nova [já está presente há anos na instrumentação e nos exames de imagem], mas o que muda agora é a capacidade de “agarrar nesses números e transformá-los em políticas” ou decisões clínicas, ainda que “com taxas de erro extremamente altas”.
É no contacto direto com o doente que Francisco Araújo vê mudanças estruturais. Fala de tecnologias já em uso, como pacemakers e desfibrilhadores que transmitem dados continuamente ao médico assistente, permitindo ajustar a programação “enquanto o doente dorme”. Ou de situações em que um telemóvel substitui um equipamento hospitalar para enviar um ECG a partir de um local remoto. “A autonomia do doente é maior, é mais rica e mais empoderada”, sublinha.

E se o presente já é desafiante, o futuro levanta questões éticas profundas. O internista prevê que, nos próximos cinco a sete anos, a inteligência artificial evolua de “parceira de apoio” para um papel “tutelar, com autonomia na capacidade de decisão”. Imagina dispositivos que não só alertam como também reprogramam o seu funcionamento sem intervenção médica, ou que tomam a iniciativa de contactar um hospital e orientar o doente. “Não conseguimos antecipar o alcance que isso pode ter. É possível pensar em equipas de saúde coordenadas por um algoritmo. Eu receio muito esse tipo de soluções”, admite. Por isso, defende começar já a investigação para responder a estes dilemas, “antes de sermos confrontados com situações de facto consumado, o que será muito pior”.
Fora do contexto científico, o mercado de smartwatches não parou de crescer. De acordo com dados da Statista, o número global de utilizadores destes dispositivos passou de 97,6 milhões em 2020 para 454,7 milhões em 2024, e projeta-se que ultrapasse 740 milhões em 2029. A Apple mantém-se líder, com cerca de 21% de quota de mercado em 2025, como se vê na última imagem.
Os últimos anos trouxeram um avanço sem precedentes também na forma como a inteligência artificial (IA) entra no dia a dia da cardiologia. O artigo Artificial intelligence and the cardiologist: what you need to know for 2020 (Heart, 2020) mostra que já há aplicações concretas a funcionar fora do laboratório. E em várias frentes.
Na imagem cardíaca, algoritmos de deep learning — um tipo de inteligência artificial que aprende a reconhecer padrões a partir de grandes quantidades de dados — já conseguem igualar a precisão de especialistas na análise automática de exames, no cálculo de volumes do coração e na avaliação do movimento do músculo cardíaco. Na área das arritmias, a IA começa a prever padrões de atividade elétrica no coração e já foi testada em relógios com sensor de ECG para vigiar, durante semanas, a fibrilhação auricular, com resultados semelhantes aos de um monitor cardíaco implantável.
Na cardiologia de intervenção, uma subárea da cardiologia que usa procedimentos minimamente invasivos, feitos através de cateteres introduzidos por artérias ou veias, para diagnosticar e tratar doenças do coração e vasos sanguíneos, existem sistemas que analisam automaticamente imagens das artérias coronárias ou interpretam exames de ultrassom intracardíaco. Tudo em tempo real. Um exemplo é o uso de redes neuronais para reconhecer sinais como o damping, ou a perda de amplitude, durante a introdução profunda do cateter numa artéria coronária, ajudando o médico a corrigir de imediato e a atuar com mais segurança.
O potencial é vasto, mas os autores alertam: generalizar modelos treinados em ambientes controlados para populações reais exige uma validação rigorosa e transparência. Viés nos dados, modelos demasiado ajustados aos exemplos usados no treino — que depois falham com dados novos — e a chamada ‘caixa negra’ de certos algoritmos, em que não é possível perceber claramente como chegaram às suas conclusões, continuam a ser obstáculos a ultrapassar antes de uma adoção massiva e segura.
A IA no dia a dia da cardiologia
Miguel Nobre Menezes, cardiologista no Hospital de Santa Maria e doutorando na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, está habituado a estudar e ouvir falar de IA em medicina – mas também a usá-la. “Na prática assistencial, aquilo que mais utilizamos é a IA aplicada à análise de imagem”, começa por explicar. O ecocardiograma é um exemplo simples: hoje, os softwares conseguem fazer medições automáticas sem que o médico tenha de posicionar manualmente o cursor. “Eu só valido o posicionamento. É rápido, poupa tempo e evita erros repetitivos.”
A tecnologia já vai mais longe nalguns centros, sobretudo nos Estados Unidos, onde existem modelos capazes de fazer automaticamente todas as volumetrias da ecocardiografia. “A única coisa que o médico faz é adquirir a imagem.”
Na cardiologia, há também espaço para a IA aplicada a exames aparentemente simples como o ECG. Miguel Nobre Menezes participa no Queen of Hearts, um estudo internacional que testa uma aplicação para interpretar automaticamente ECG em determinados contextos clínicos. “Está disponível para uso, mas com o aviso de que não é um dispositivo médico. É investigação.”

Do lado da prática clínica recente, há outra novidade: os “escribas médicos”, entendidos como sistemas que, através de microfone, registam e estruturam automaticamente as notas clínicas durante a consulta. “A empresa portuguesa Magic já tem isto implementado. Ajuda muito em consultas longas ou complexas”. Ainda assim, deixa o alerta: “Há sempre a validação humana. A nota pode estar perfeita, mas também pode conter erros ou interpretações que não correspondem à realidade. Nunca se faz copy-paste [copiar e colar] sem rever”.
Se na prática diária o número de ferramentas validadas é ainda limitado, na investigação as possibilidades multiplicam-se. A IA é usada para cruzar fatores de risco tradicionais, encontrar padrões e melhorar previsões. Mas, como sublinha o cardiologista, “qualquer sistema que entre em saúde tem de passar pelo mesmo crivo regulamentar de um dispositivo médico. A validação é obrigatória”.
Os riscos estão à vista: a tentação de usar ferramentas não validadas, tanto por médicos como por doentes. “Antes, era o Dr. Google. Agora… é o Dr. ChatGPT. A resposta é mais completa, mas pode estar certa… ou não. Pode criar alarme sem necessidade ou, pelo contrário, não reconhecer um problema.”
No futuro, mais do que uma IA, Miguel Nobre Menezes, imagina uma “inteligência aumentada” ao lado do médico, libertando-o da burocracia e ajudando-o a pensar mais depressa e a errar menos. “Quero chegar ao ponto de estar na consulta só focado no doente. Que tudo o resto flua automaticamente, desde pedidos de exames a propostas terapêuticas que eu apenas valido ou ajusto”. Num plano mais alargado, vê a IA como ferramenta para monitorizar percursos clínicos e detetar falhas em intervenções preventivas ou terapêuticas a nível populacional. “Isso vai acontecer. Vai demorar, mas vai acontecer.” O coração, agora mais conectado, agradece.