O que está na mente de um incendiário? 9 perguntas sobre fogo, compulsão, problemas psicológicos, impactos na população e as imagens na TV
Sofrimento emocional, exclusão social, sentimento de rejeição ou necessidade de afirmação. Há vários contextos e motivações para alguém atear um incêndio. E, claro, há casos de perturbações mentais.

1 Quem são as pessoas que põem fogo? São todos incendiários?
Há dois grupos distintos de pessoas que intencionalmente provocam incêndios, segundo Márcio Pereira, psicólogo e psicoterapeuta, especialista em intervenção psicológica em situações de crise e emergência.
O pirómano que é uma “pessoa com uma perturbação psiquiátrica rara, com obsessão pelo fogo desde cedo (tipicamente desde a infância) e que possui um impulso incontrolável de provocar incêndios sem motivo externo claro, age por compulsão sentindo prazer e fascínio com o fogo e aliviando a tensão”.
E o incendiário, “que intencionalmente provoca um incêndio motivado pela vingança, vandalismo, fraude, protesto ou outros motivos, mas que tem sempre um objetivo externo e consciente”.
2 É possível "entrar na cabeça" de um incendiário?
É complicado e complexo entender o que se passa na mente de um incendiário. “É sempre difícil antecipar as motivações e sentimentos de quem provoca o fogo”, diz o psicólogo, também formador e médico interno de medicina geral e familiar. O que tem sido apresentado como perfil do incendiário no nosso país aponta para indivíduos do sexo masculino, entre 33 e 46 anos, baixa escolaridade e frequentemente desempregados.
O consumo de álcool ou substâncias está fortemente associado ao comportamento incendiário, sobretudo devido à redução do controlo inibitório e aumento da impulsividade. Márcio Pereira adianta que os estudos apontam que entre 30% a 50% dos incendiários atua sob o efeito de álcool ou drogas.
3 Os incendiários têm perturbações mentais?
Muitos incendiários, realça Márcio Pereira, “agem num contexto de sofrimento emocional, exclusão social, sentimentos de rejeição ou necessidade de afirmação”. Nestes casos, incendiar pode funcionar como descarga emocional ou tentativa de controlo.
Na maioria dos casos, os problemas psicológicos são fatores causais e não apenas consequências. “A história pessoal, traumas, impulsividade e perturbações mentais podem estar na origem do comportamento incendiário”. Nas situações que estão ligadas a perturbações psicológicas ou psiquiátricas, estas são as mais comuns:
- Perturbações de personalidade, especialmente a antissocial;
- Perturbações do controlo dos impulsos, como a piromania, embora rara;
- Perturbações do neurodesenvolvimento, em particular nos mais jovens;
- Psicoses ou estados dissociativos, mais raros.
4 E têm consciência do mal que causam?
“Pode haver consequências emocionais após o ato, como culpa, ansiedade ou medo de punição”, mas estima-se que a maioria, embora tenha noção das consequências, não sinta empatia ou culpa, realça o psicólogo. “Em alguns casos (como nas psicoses), pode haver dissociação da realidade, mas são menos frequentes”.
Neste momento, de acordo com dados da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) revelados há dias pela Agência Lusa, 86 pessoas estão presas em Portugal pelo crime de incêndio florestal, 40 dos quais condenados a pena de prisão efetiva, 25 considerados inimputáveis e a cumprir medida de internamento, 16 em prisão preventiva a aguardar julgamento e cinco esperam que a condenação transite em julgado. Além dos detidos, 13 estão com vigilância eletrónica.
5 Existe apoio psicológico para estas pessoas?
Há tratamento psicológico e psiquiátrico, contudo o acesso a estes recursos ainda é limitado no Sistema Nacional de Saúde. Muitas vezes, este apoio mais direcionado só é encontrado dentro do sistema prisional, constata o psicólogo. No entanto, o Programa de Reabilitação para Incendiários, anunciado em 2018, foi reformulado, mas ainda não foi implementado nas prisões. E ainda não há data para que seja.
A DGRSP informou que nos testes feitos ao programa se concluiu “a sua desadequação às características socio-criminais e psicológicas/psiquiátricas dos sujeitos condenados a pena privativa de liberdade pelo crime de incêndio florestal”.
6 E nas populações afetadas, quais as reações emocionais mais comuns?
Os incêndios são situações emocionalmente exigentes. Dias consecutivos a vivê-los leva a um esgotamento dos recursos pessoais, pela incapacidade de pensar, dormir, comer ou agir mesmo em tarefas simples. O organismo não fica indiferente e responde com uma reação aguda de stress, que se manifesta de várias formas:
- Reações cognitivas: a atenção dispersa, há dificuldade de concentração, alterações da memória, imagens intrusivas, confusão ou a negação;
- Reações físicas: episódios de hipertensão arterial, aceleração dos batimentos cardíacos, insónias, náuseas, sede, aumento do ciclo de respirações por minuto;
- Reações comportamentais: ficar imobilizado, lutar contra o fogo ou fugir;
- Reações emocionais: ansiedade ou pânico, medo, irritabilidade, o luto ou pesar intenso, ou algum entorpecimento emocional muitas vezes descrito como choque emocional.
O choque e a negação são respostas esperadas diante de uma catástrofe como os incêndios. No entanto, estão mais presentes em situações de grande magnitude ou de perdas significativas, sublinha Márcio Pereira, coordenador e autor do livro Intervenção Psicológica em Crise e Catástrofe (ed. Ordem dos Psicólogos Portugueses).
“A maioria das pessoas mantém-se ativa e a defender os seus bens ou da comunidade perante a ameaça do fogo, mas se existe uma perda significativa é comum observar algum entorpecimento, ausência de reação emocional e o agir automaticamente característicos do choque, bem como a recusa em acreditar no que aconteceu ou a esperança irracional de que ‘não é verdade’, característicos do mecanismo de defesa que compõe a negação.”
O medo também é normal como forma de adaptação e proteção, num primeiro momento. Mas se se mantiver com a mesma intensidade e frequência por mais do que três dias já pode configurar Perturbação Aguda de Stress. Se estes sintomas que mantiverem por mais de quatro semanas então já estamos na presença da Perturbação de Stress Pós-Traumático.
Há ainda outros impactos psicológicos importantes como o sofrimento emocional causado pela mudança na paisagem natural, levando a sentimentos de desolação e perda que aumenta a ansiedade ecológica.
E é uma situação que pode reavivar traumas. “O cérebro armazena memórias traumáticas e em novas situações de ameaça, o sistema nervoso pode reconhecer estímulos semelhantes com o do trauma anterior e reagir como se o evento traumático estivesse a acontecer novamente.” Estímulos olfativos como fumo ou cheiro a queimado. Estímulos sonoros como gritos, explosões, sirenes. Estímulos visuais como fogo, destruição ou viaturas de emergência podem reativar traumas anteriores. “Se o incêndio atual envolve perda, realojamento ou sensação de falta de controlo pode reativar ainda memórias de luto, violência, acidentes ou abandono.”
7 Quando é que se deve procurar ajuda para lidar com todo este impacto emocional?
Deve procurar-se ajuda se as reações agudas de stress iniciais, como a atenção dispersa, a confusão, a negação, a insónia, a ansiedade ou pânico, o choro constante, o medo, a irritabilidade ou o choque emocional não diminuírem de intensidade ao longo da primeira semana após o incêndio.
Podem encontrar ajuda psicológica no SNS, através da linha SNS 24, ou junto do médico de família. Para reações que possam colocar em risco o próprio ou outros podem ligar para a linha de emergência médica 112. Organizações Não Governamentais, universidades e centros comunitários oferecem frequentemente apoio gratuito após catástrofes.
8 Quais as intervenções psicológicas mais adequadas?
A grande maioria das pessoas, cerca de 90%, segundo Márcio Pereira, consegue recuperar sem intervenções formais. No entanto, uma percentagem de 5 a 10% poderão necessitar de apoio psicológico a curto e médio prazo por não conseguirem recuperar das reações de stress e desenvolverem perturbação aguda de stress ou perturbação de stress pós-traumático.
Entre as intervenções recomendadas está a terapia cognitivo-comportamental focada no trauma. “As pessoas que recuperam ficam com mais estratégias para lidarem com um novo evento e ficam mais resilientes.”
O modelo de Primeiros Socorros Psicológicos é recomendado pela Organização Mundial de Saúde para a intervenção em catástrofes. “É um modelo modular, baseado na evidência para ajudar crianças, adolescentes, adultos e as famílias após uma catástrofe ou atentado terrorista.” O modelo foi construído para reduzir as reações iniciais de stress causadas por eventos potencialmente traumáticos e para promover o funcionamento adaptativo.
“O modelo assume que os sobreviventes e outros afetados pelo incidente irão experienciar inicialmente reações ao stress (físicas, psicológicas, comportamentais, espirituais) e que algumas destas reações poderão causar disfunção que interferirá com a capacidade adaptativa e com a recuperação, pelo que é importante o suporte no imediato”, explica o psicólogo e psicoterapeuta.
9 E a exposição às notícias, de que tanto se fala? Pode ser um fator adicional de stress e ansiedade?
Sim. Márcio Pereira, que foi psicólogo no Centro de Apoio Psicológico e de Intervenção em Crise do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), explica porquê: “A repetição de conteúdos potencialmente traumáticos (como imagens de mortes, destruição ou apenas de chamas) pode gerar a sensação de ameaça constante e levar a um estado de alerta crónico com aumento da ansiedade, diminuição da concentração, diminuição do sono e revivência emocional do cenário potencialmente traumático”.
É aconselhado a vítimas de cenários de catástrofe o limitar o tempo de exposição a notícias e escolher fontes de informação menos “sensacionalistas”.