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(A) :: Porque sentimos culpa mesmo quando não fizemos nada errado?

Porque sentimos culpa mesmo quando não fizemos nada errado?

A culpa nem sempre nasce da nossa responsabilidade real. Muitas vezes vem de normas sociais, expectativas internas ou da nossa própria história emocional.

Sofia Teixeira
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Rodrigo Mendes
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Sentimo-nos culpados por uma grande variedade de razões. Num estudo recente, os investigadores reuniram 1515 motivos pelos quais os participantes se sentiam culpados. Entre as tipologias de causas mais frequentes estavam “contar mentiras/ocultar a verdade”, seguido de “Não passar tempo suficiente com a família”, mas surgiam também sentimentos de culpa motivados por crenças religiosas, por pensar mal de alguém, por procrastinar, pelos problemas do mundo, por erros cometidos ou pelas dificuldades no casamento.

Ao contrário do medo, da tristeza ou da raiva, a culpa não nasce connosco. É uma emoção aprendida e começa a surgir pelos três anos de idade. Nesta fase, quando começamos a desenvolver a noção de que as outras pessoas têm pensamentos, emoções, desejos e necessidades diferentes dos nossos, começamos também a entender que aquilo que fazemos tem um impacto nos outros e pode causar-lhes dano. É isso que a culpa é, na sua essência: um sinal de que podemos ter tido um comportamento que causou danos — sejam eles físicos, materiais ou emocionais — a outra pessoa.

No entanto, essa é uma avaliação muito subjetiva, sobretudo porque mais importante do que aquilo que, de facto, aconteceu, importa como interpretamos o que aconteceu. “As nossas emoções não refletem necessariamente a realidade daquilo que acontece à nossa volta, mas sobretudo o significado que lhe atribuímos”, diz João Moreira, professor da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. O investigador na área da personalidade, relações interpessoais e psicologia evolutiva refere que mesmo que há um conjunto de teorias — as teorias do appraisal — que enfatizam que é a perceção das situações que está na base das emoções. E a culpa não é exceção. “Se sentimos culpa quando não somos de nenhuma forma objetivamente responsáveis por aquilo que de mal aconteceu, isso acontece porque, de facto, nos sentimos responsáveis ou nos associamos, de alguma forma, àquilo que aconteceu.”

Exemplos de situações em que isto pode acontecer são, entre outros, “os casos de culpa coletiva, em que nos sentimos de certa forma associados a atos reprováveis cometidos não diretamente por nós, mas por elementos de um grupo social com o qual nos identificamos” e “sentimo-nos culpados se a transgressão foi cometida por uma pessoa de quem somos muito próximos, como um familiar”.

João Moreira refere que é também muito comum que nos consideremos mais responsáveis por aquilo que acontece à nossa volta do que somos realmente. Exemplifica que, se levados pela raiva, pensamos que seria bom que uma pessoa que nos prejudicou tivesse um grande infortúnio e, passado pouco tempo, algo realmente mau acontecer com essa pessoa, nos podemos sentir culpados. “Será muito difícil para o nosso sistema mental, construído para compreender o mundo, resistir à tentação de acreditar que de alguma forma fomos os causadores daquilo que aconteceu. Mesmo que racionalmente digamos a nós próprios que isso era impossível.” Este tipo de mecanismo de responsabilização é particularmente importante — e frequente — no caso de pessoas que foram vítimas de abusos, que leva a pessoa a sentir-se culpada por julgar ter contribuído para aquilo que lhe aconteceu.

Quando alguém perto de nós sofre, podemos também sentir culpa simplesmente por estarmos bem. O exemplo mais típico é a chamada culpa do sobrevivente, comum em contextos de catástrofe, trauma ou desigualdade. Apesar de a pessoa saber que não tem uma responsabilidade direta, sente-se mal ao ser testemunha do sofrimento alheio enquanto está num lugar de privilégio, bem-estar ou sorte. Isso pode acontecer por um conjunto de razões, nomeadamente “a pessoa questionar se não poderia ter agido de modo diferente, ajudando ou protegendo a outra pessoa daquilo que aconteceu” ou simplesmente reconhecer que a situação do outro é injusta.

Por fim, frisa, a pessoa pode sentir-se culpada sem razão quando essa culpa “é induzida por outros, no intuito de a manipular. (…) Pensemos no caso de uma relação doentia, em que alguém tenta colocar limitações às manifestações de autonomia da outra pessoa, com queixas como “Deixas-me aqui sozinha” ou “nunca queres passar tempo comigo.””

A culpa tem um lado indiscutivelmente bom. Leva-nos a tentar ser corretos com os outros, torna-nos mais sensíveis ao sofrimento alheio e impele-nos a reparar ou emendar os erros que cometemos. “Em geral, aquilo que a investigação tem demonstrado é que a culpa tem um efeito na vida das pessoas e da sociedade que é largamente positivo. Pessoas mais atreitas à culpa têm um comportamento mais ético e mais cooperativo: são melhores cidadãos, melhores colegas, melhores amigos. Pelo contrário, as pessoas aparentemente destituídas de sentimentos de culpa, como os psicopatas, são uma fonte de sofrimento para os outros e de perturbação para a sociedade.”

Geralmente, os sentimentos de culpa muito frequentes ou exacerbados estão relacionados com algumas características de personalidade como o perfeccionismo, a auto-exigência e a necessidade de controlo. “Pessoas com padrões morais extremamente exigentes e rígidos podem achar que mesmo as pequenas e inevitáveis falhas do dia a dia constituem transgressões imperdoáveis”, frisa João Moreira. Estes traços de personalidade são geralmente aprendidos na infância.

Muitas vezes confundimos culpa (fiz algo de errado) com vergonha (sou ‘alguém’ errado). O professor e investigador revela que a maneira mais eficaz as distinguir é a perguntar às pessoas, não a emoção que sentiram, mas aquilo que tiveram vontade de fazer. “Aí a culpa e vergonha são bastante diferentes: perante a culpa, sentimos vontade de confessar, pedir desculpa e reparar o mal que fizemos, enquanto a vergonha nos leva a negar ou esconder esse mal, apresentar justificações para o que fizemos e contra-atacar os outros.”