Há manhãs onde o mundo em que acordamos não faz sentido. Manhãs em que percebemos, de repente, que a vida não se cumpre no tempo certo. Como um jogador que corre isolado para a baliza e, já a festejar o golo, é abalroado por trás. Sem hipótese. Sem aviso.
Ontem de manhã, Portugal preparava-se para voltar ao tribunal. Para enfrentar mais um capítulo do julgamento da Operação Marquês. Um país a tentar fazer contas com o seu passado e com o seu cansaço. Mas a primeira página não foi essa. Foi a de um acidente. De um despiste em Espanha. De dois irmãos. Um deles, Diogo Jota. Tinha 28 anos. Três filhos. Acabara de casar. Voltava a Liverpool. E o país parou.
Alguém dirá que é só comoção. Que “vende”. Que há outras mortes todos os dias. Que em tantos lugares morrem dezenas, centenas, e não há lágrimas nem indignação. Mas a ideia de que o mundo se atrasa quando alguém morre, vale mais do que as hesitações. É um salva-vidas da dignidade humana, uma cura da cegueira feroz da máquina do mundo.
Choramos onde somos feridos. Diogo Jota e o irmão não eram apenas dois rapazes. Eram todos os filhos. Eram o filho que fecha a porta do carro e vai para a escola com a bola numa mão e a mochila a escorregar das costas. A imagem desse quotidiano em que cabem todos os sonhos do mundo. O marido, o pai, o irmão, o filho que viaja de noite enquanto temos que ir dormir, porque o dia, amanhã, começa cedo. Ou esse instante banal onde a vida ainda é promessa. Ou esse momento onde uma mãe e um pai dizem um para o outro: “A nossa missão está cumprida”.
É verdade, há lutos que são orações sem palavras. Há lutos que são uma forma de escuta. Como há uma forma de santidade que talvez só seja visível na capacidade de parar.
É comum dizer-se que se aprende a morrer. Que a morte é o grande momento da nossa vida. Que nos devemos preparar. Mas há mortes que não se dão a esse luxo.
Lembro-me do diário de Michael Paul Gallagher, o teólogo irlandês que, pouco antes de morrer, confessava um arrependimento. No meio da fadiga, da náusea e da má disposição causada pelo cancro, as lições que havia dado sobre os momentos terminais da vida pareciam-lhe absurdas.
A morte do Diogo e do irmão não se explica. Não se aceita. Não se racionaliza. Como o Cristianismo ensina: carrega-se. Com raiva. Com incredulidade. E, se tivermos sorte, partilha-se.
Não há lugar melhor, nem “lugar depois da curva da vida”. Dizê-lo ou prometê-lo é mascarar o absurdo, é revestir de ilusão o que não é, senão, ferida e sem sentido. Afinal de contas a Ressurreição e o Paraíso não são nada isso. Não são um golpe de magia, autoajuda ou saída limpa. Não são acaso. Não são destino. São algo que nos é sempre arrancado. Como Jurgen Klopp escreveu: “Deve haver um propósito maior, mas não o consigo ver”.
Ontem, sem o saber, voltámos a Troia. Fomos Príamo a caminhar pela noite, de joelhos na tenda de Aquiles, só a pedir: “Deixa-me levar o corpo do meu filho comigo”.
Ontem, porque há mortes que são de todos, algo em nós ficou naquele lugar, na berma da estrada.