Pela sua dimensão, qualidade das cópias e quantidade de sessões a apresentar em várias cidades do país, a Retrospectiva Jacques Rozier, organizada pela Leopardo Filmes (arranca esta quinta-feira, 3 de julho), é a mais consistente proposta de divulgação da obra do cineasta francês alguma vez feita em solo luso. E que daqui obviamente se saúda, com apontamentos e divergências, a começar pelo chamariz que foi enviado em comunicado à imprensa e que nos fala de um “cineasta esquecido”.
Jacques Rozier (1926-2023) é um cineasta único, autor de uma obra imperfeita e magnífica pelas suas imperfeições. Mas não é um cineasta esquecido. Está mal adjetivado. Bem haveria de rir-se igualmente dos que o consideram um “génio”: a genialidade era algo que o aborrecia de morte. Pelo contrário: os happy few que lhe foram descobrindo a obra, de uma década a outra, amaram-na intensamente, nunca mais a esqueceram, marcados para a vida – com Jean-Luc Godard, compincha de geração, sentado desde o primeiro instante nessa primeira fila. Assim continuará a ser, acredita-se. Rozier é seguramente um cineasta insólito, isso sim. E desconhecido, em grande parte por vontade própria! Ou melhor: fez o suficiente para que não o conhecessem. O que é uma coisa muito diferente do esquecimento.
Pilar da Nouvelle Vague que ficou na sombra, compagnon de route do grupo dos cinco — Rohmer, Rivette, Godard, Chabrol e Truffaut – que lançou aquele movimento a partir da redacção dos Cahiers du Cinéma (à qual ele nunca pertenceu), Rozier foi o mais desinteressado, o mais caótico e azarado de todos eles, um electrão livre, o mais juvenil de espírito, aquele que divagou sem noção do que significa dar seguimento a uma carreira. Faltou-lhe tino. A sua obra, de resto, é um reflexo admirável desta personalidade. E contudo, foi um pioneiro.
A curta que ele considerava ser a da sua estreia após dois outros exercícios menores (não incluída neste ciclo), Rentrée des Classes, rodada em 1955 (no mesmo ano do primeiro filme de Agnès Varda, La Pointe Courte), é uma acendalha da Nouvelle Vague, um primeiro desejo de evasão; no caso, a história de um miúdo que se balda às aulas da primária na sua aldeia da Provença e em seguida prega partidas ao professor e colegas. Poucos filmes de “jeunesse” lhe são comparáveis. Seria preciso recuar aos anos 30 e ao cinema de Renoir e Vigo, que este texto menciona mais à frente.

No final dos anos 50, Rozier assina outra curta-metragem, esta sim extraordinária (explicou-me a Leopardo que não a incluiu no programa por uma questão de direitos), chamada Blue Jeans (1958), história de dois fulanos que deambulam de Vespa pelas ruas de Cannes, à procura de miúdas, nem sempre com êxito. É o grande filme de engate de todos os tempos. Os intérpretes são amadores. Godard estava no festival de curtas de Tours no dia em que Blue Jeans se estreou e admirou-o. Tornar-se-ía amigo de Rozier para o resto da vida.
Nesta altura, a Nouvelle Vague estava a aquecer os motores. No verão de 1958, Chabrol mostrava em Locarno e Veneza o seu filme de estreia, Le beau Serge/Um Vinho Difícil. Truffaut ultimava a primeira longa-metragem, Les quatre cents coups, que levaria a Cannes em 1959 (“faire les quatre cents coups”, em francês, significa fazer trinta por uma linha; em Portugal traduziram-no pelo absurdo Os 400 Golpes, que não quer dizer coisa alguma). Enquanto isto, Godard tentava convencer “Beau Beau” (o produtor Georges de Beauregard) a abrir os cordões à bolsa para financiar O Acossado. A esta história se voltará mais tarde ou mais cedo, quando se estrear em Portugal o novo filme de Richard Linklater.
“Adeus Philippine”
Mas antes desse estrondo, Godard já convencera Rozier, que entretanto arranjara trabalho alimentar na televisão, a esboçar uma ideia que lhe permitisse dar o salto para a longa-metragem. Godard não tardou muito a apresentá-lo a Beauregard, que continuava à caça de novos talentos. O Acossado estreara-se entretanto. Não se falava de outra coisa. O produtor chegou-se então à frente com as notas, sem saber no que estava a meter-se. Assim nasceu Adeus Philippine, primeira-longa-metragem do realizador.
Rozier começou desde logo a cultivar uma reputação nada simpática e que em parte explica o seu posterior sumiço dos palcos que lhe pareciam destinados. Não se adapta ao ritmo nem aos prazos de produção de cinema. Filma de mais, sem argumento, desbarata película e excede em muito o orçamento. As cenas são praticamente todas improvisadas no decurso da rodagem. Não menos grave: é indeciso e lento na sala de montagem. Cineasta livre, mas a precisar de tempo que Beauregard não tinha para dar-lhe. E a história acabou mal, com o produtor a chamar-lhe incompetente e a bater com a porta. Esta empreitada tão atribulada, feita com o coração nas mãos, só foi concluída graças ao apoio de Carlo Ponti, célebre produtor italiano; Godard, protegendo o filme e o amigo, ficou uns quantos anos com a salvaguarda dos negativos.
Os filmes que compõem o ciclo
“Adeus Philippine” (1962)
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“Paparazzi” (curta-metragem, 1963)
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“O Partido das Coisas: Bardot / Godard” (curta-metragem, 1963)
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As Praias de Orouët” (1973)
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“Os Náufragos da Ilha Tortuga” (1976)
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“Maine Océan” (1986)
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“Fifi Martingale” (2001)
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Daqui para a frente, o percurso de Rozier é cada vez mais acidentado. Os seus filmes, quase sempre atravessados ora por problemas técnicos complicados ora por desnorteada gestão financeira, tornam-se aventuras épicas — como se em Rozier houvesse uma inexplicável dificuldade de levar as coisas até ao fim. Em Adeus Philippine, perdeu-se o som síncrono. Mas não havia guião e os diálogos eram improvisados. Foi preciso recorrer à leitura labial para refazer o som do filme em estúdio. Paulo Branco terá também muito a contar pela parte que lhe tocou quando apresentar as sessões de Maine Océan (1986), que ele produziu (a quarta longa-metragem de Rozier).
Adeus Philippine acompanha uma semana da vida de Michel (Jean Claude Aimini, que jamais voltaria a ser visto em filme algum), rapaz que deixa o seu trabalho de operador de câmara na TV (um meio que Rozier conhecia por dentro) e parte de férias para a Córsega com duas amigas, Liliane (Yveline Céry) e Juliette (Stefania Sabatini), no verão de 1960. Que é um verão agridoce: Michel sabe que, uma semana mais tarde, terá de partir de barco para a Guerra da Argélia. Adeus Philippine foi um dos raríssimos filmes da época a ousar tocar nesse tabu da história de França. Um veneno que Godard também provou e em doses muito mais elevadas quando realizou o censurado Le petit soldat/O Soldado das Sombras.
Adeus Philippine é uma obra-prima, com um triângulo amoroso a espelhar o espírito do seu tempo e uma verdade dos sentimentos que chega aos espectadores com uma extraordinária doçura, sem gravidade, sem tragédia. Mas também aqui se sente uma crueldade latente, indefinida, a consciência de que tudo tem um fim e que vai ser preciso dizer adeus. Um rapaz, duas raparigas, ele anda com uma, depois com outra, no fim elas ficam sozinhas e ele vai embora. Rozier provou que bastava isto para fazer um filme.



Ladeado pelo historiador e crítico George Sadoul e por Godard, Rozier apresenta Adeus Philippine na Semana da Crítica de Cannes em 1962, perante uma plateia favorável. Truffaut ajuda na promoção, entrevista a equipa artística na praia em frente. Auspiciosa estreia, entusiasmo geral. Rozier está no lado bom da história. Só que a estreia comercial é um desastre. O cineasta ganha inimigos no sector da distribuição quando lhe pedem para cortar um pouco do que ele havia montado. E Rozier recusa. O filme só chega às salas francesas, após longas peripécias, em setembro de 1963 — já a Guerra da Argélia tinha acabado. Ninguém queria ouvir sequer falar do tema.
O mais paradoxal de tudo isto é que Rozier tem em potência todos os ingredientes para ser popular: gosta da comédia, do musical, do cinema americano, celebra o prazer de viver como um Sacha Guitry. Aprecia os meses de Verão, o calor, a água salgada, os ritmos de jazz e a música latina. No filme, Yveline Céry até dança o cha cha cha. Mas poucos a viram dançar. E o preço a pagar seria muito alto. Rozier voltou à televisão (“…um parque de estacionamento mais confortável…”, diria ele em entrevista aos Cahiers) e por lá ficou a trabalhar. Só na década seguinte conseguiu voltar a realizar uma longa-metragem.
Mas realizou curtas e duas delas fazem parte deste programa: Paparazzi (1963) e O Partido das Coisas: Bardot/Godard (1963), rodadas em jeito de “making of” de O Desprezo (1963), de Godard, cuja rodagem Rozier acompanhou. Bardot era então uma vedeta internacional, perseguida incansavelmente por fotógrafos que tentavam de longe enquadrá-la da melhor maneira, em biquini de preferência. Com um humor thrillesco, a câmara de Rozier capta essa azáfama dos paparazzi em torno da casa Malaparte na ilha de Capri, onde parte do filme foi rodado. Munidos de teleobjectivas de 300mm, escalavam penhascos para conseguir o melhor ponto de vista. Alguns perseguiam Bardot desde Roma e das cenas filmadas na Cinecittà.
Os filmes são de uma ironia muito fina. O Partido das Coisas: Bardot/Godard revela pelo menos uma cena que Godard rodou mas não incluiu na montagem e sublinha uma relação intérprete/personagem em sintonia com o que Rozier também procurava, isto é: em O Desprezo, Brigitte Bardot, Michel Piccoli, Fritz Lang ou Jack Palance interpretam personagens, evidentemente, mas não deixam de ser eles próprios, do mesmo modo que o filme é um retrato da sua própria fabricação.
“As Praias de Orouët”
Em Du côté d’Orouët, “opus 2” agora batizado entre nós de As Praias de Orouët, o desencontro com os espectadores foi ainda mais acentuado. A rodagem decorreu em 1969, a Quinzena de Cannes exibiu-o em 1971, antes disso, segundo Bernard Menez (que aqui debutou como actor), houve uma projecção memorável do filme na Cinemateca Francesa, com direito a emocionado discurso do seu mítico director, Henri Langlois, em rasgados elogios a Rozier. Mas o filme só chegou às salas em 1973. Mais uma débâcle.
No papel, é outra história de evasão: cansada da sua vida de escritório em Paris, Joëlle, vinte anos, junta-se à amiga Kareen e partem ambas ao encontro da prima de uma delas, Caroline, para umas férias de setembro numa villa da costa atlântica (há sempre viagens nos filmes de Rozier, invariavelmente em direção ao mar). Gilbert, chefe de Joëlle no escritório, tem um fraco por ela e segue-as em segredo. Não tarda a ser gozado a torto e a direito pelas três raparigas que, sem pensarem em nada, só querem pintar a manta.


E o que é que se faz nas férias aos vinte anos? Enfim, nada, ou o diabo a quatro. Faz-se o tempo passar, aproveita-se o que dele resta. Dramaticamente, é uma proposta tão válida como qualquer outra. Rozier vai trabalhá-la em As Praias de Orouët com uma liberdade rara. Na villa na região da Vendée em que o filme decorre, naquele setembro ventoso e atlântico, algo estranho se abate sobre as personagens de Rozier. É como se estivessem sempre “a prazo”, disponíveis para todas as coisas efémeras do mundo.
As Praias de Orouët tem uma leveza misteriosa capaz de sugerir que qualquer gesto banal é uma aventura. E isto torna-o fascinante, nos jogos e trocadilhos, nos diálogos improvisados, nas brincadeiras das raparigas, no desfrutar de um tempo suspenso, cristalizado pelo cinema, em que parece que nada acontece. A modernidade absoluta do cinema de Rozier depende destes momentos insondáveis, dos pequenos movimentos do quotidiano, daquelas atrizes inexperientes, mas extraordinárias, à medida que a ficção é em simultâneo um documentário da experiência dos próprios intérpretes na rodagem.
“Os Náufragos da Ilha Tortuga”
Em Os Náufragos da Ilha Tortuga (1976), longa-metragem seguinte, uma nova noção de férias é desenhada por Rozier: neste caso, dois agentes de viagens lembram-se de vender a turistas da média burguesia parisiense um “pacote” original: viagem a uma ilha deserta nas Caraíbas (como se elas ainda existissem…) onde cada cliente terá que desenvencilhar-se como Robinson Crusoe se quiser sobreviver. A ilha do título vem desta ideia peregrina.
É curioso notar como este filme dos anos 70 antecipa (e satiriza) manobras comerciais e mecanismos de uma sociedade de consumo cada vez mais delirantes, delírio esse que, hoje em dia, foi normalizado pelos novos canais usados pela publicidade, em especial as redes sociais. Rozier daria continuidade a este trabalho de escárnio social no “lado B” do seu trabalho, espécie de “parte oculta” desta “obra oculta”, nos múltiplos filmes de curta-metragem que realizou para a televisão. As longas-metragens de ficção são apenas cinco em mais de quatro décadas mas há nesta obra para cima de 30 títulos, filmes mais curtos que ele foi fazendo no cinema e na TV. Os Náufragos da Ilha Tortuga sugere também uma ideia de reality show muito antes dos ditos terem sido inventados para fisgar e entorpecer audiências televisivas.

Mas nos anos 70 não havia nada disso. O engodo das vendas paradisíacas, servido em tom ligeiro, ainda precisa de um rosto humano, no caso o do fantasista e mentiroso compulsivo Jean-Arthur Bonaventure, a personagem que engendra a história para se evadir do sufoco do escritório e das suas responsabilidades profissionais e conjugais.
Pierre Richard, que por esta altura era uma vedeta do show biz no hexágono, tem o papel principal. Acabou por ser “raptado” pelo produtor do projecto seguinte e abandonar antes do termo uma rodagem que parecia não ter fim à vista. Jacques Villeret, então desconhecido, tornar-se-ía logo a seguir num comediante de primeira água. Nenhum deles voltou a ter tanta liberdade de movimentos no cinema, admiravelmente captada por Rozier. Homenagem ao romance de aventuras, sonho do cineasta com os seus heróis de cabeceira Dumas, Stevenson e Defoe, Os Náufragos da Ilha Tortuga tem uma autenticidade incomparável a qualquer outro filme do seu tempo. Mas nem isso o impediu — pegando no seu título — de “naufragar” nas bilheteiras. Tanto assim foi que, em 1976, ninguém o quis exibir comercialmente. Só em 2004 encontrou este ovni uma reposição de jeito nas salas francesas com empolgada resposta crítica à altura da empreitada, manobra repetida em 2024 com a cópia restaurada que agora se exibe entre nós.
“Maine Océan”
Maine Océan é outro filme sublime, feito de encontros e desencontros e de uma profusão de idiomas, com perdas de tradução e faltas de entendimento entre as personagens que servem em simultâneo a comédia e o absurdo. E é outro tandem, outro filme colectivo – agora que se pensa nisso, não há em Rozier nenhum protagonista isolado, todas as personagens são principais, o grupo vale pelo seu conjunto. Aqui temos uma linha de caminhos de ferro que parte da Gare de Montparnasse, Paris, até à costa oeste que leva a Nantes, Saint-Nazaire, dali vamos para a ilha de Yeu. Uma nova fuga da cidade no cinema de Rozier.
Somos levados pela brasileira Djanira (Rosa Maria Gomes), que quer ver o mar e não fala francês. No comboio, ela não se entende com os dois revisores interpretados por Luis Rego e Bernard Menez, está a viajar em primeira classe e esqueceu-se de obliterar o bilhete que comprou, que é de segunda. No mesmo comboio, toma-se Djanira de amizades por uma advogada (Lydia Feld) que a protege dos revisores e está a caminho de defender em tribunal Petitgas (Yves Afonso), um marinheiro irado que se envolveu numa rixa por causa de um acidente de automóvel. De imprevisto em imprevisto andamos, que a humanidade depende deles, da variação de cada passo de dança.


Do português brasileiro de Djanira, que a advogada traduz ao seu jeito para os revisores, com um pouco de inglês à mistura (toda a sequência é uma delícia), do “poitevin” dialectal de Yves Afonso (fabuloso actor), ao palavroso e labiríntico discurso que a personagem de Lydia Feld leva à barra do tribunal para defender o seu cliente, Maine Océan é uma nova aventura para Rozier, desta vez, também a nível linguístico, e por este, a nível cinematográfico.
Escreveu João Bénard da Costa a propósito: “Tal como todas as personagens se entendem na ‘torre de Babel’ que o filme é, todas as experiências e todas as convenções podem ser construídas e desconstruídas na visão de uma viagem que salvaguarde também, parafraseando o discurso da advogada, a essência do cinema, no seu modelo mais insólito e mais irrealista.”
Regado a samba, Maine Océan é um exemplo maior de um cinema errante, entregue ao acaso, como só Rozier o sabia fazer. E é um filme luso-francês em certa medida, uma das mais arriscadas e valiosas aventuras de produção de Paulo Branco nos anos 80, com fotografia de Acácio de Almeida. Um dos intérpretes da trupe, Luis Rego, é também português, fez toda a carreira em França, não só no cinema mas também na televisão e sobretudo no teatro, desde que fugiu a salto, aos 17 anos, para escapar à Guerra Colonial. Rego filmaria mais tarde, entre muitos outros, com Jorge Silva Melo, em Coitado do Jorge e com Philippe Garrel, num papel muito notado, em Le Cœur fantôme, outro filme produzido por Branco.
“Fifi Martingale”
Em 2001, o Festival de Veneza exibiu aquela que seria a última longa-metragem de Rozier, Fifi Martingale. É uma fantasia sobre o teatro de boulevard, os seus bastidores, a sua precariedade, centrada num encenador avesso a prémios que já rejeitou um Molière. Ele decide então mexer na peça que tem em cena e se tornou um êxito após 150 representações. O êxito faz-lhe comichões. É sinal de que a peça, se calhar, não está assim tão bem. E então chama os atores para novos ensaios, há que mudar as coisas a meio e ajustar falas, mudar palavras, reformular papéis para os espectáculos seguintes e até substituir intérpretes, quando um deles magoa um pé, nisto acontecem mais acidentes e peripécias, em delírio destravado. Nesta atracção pelo acidente e pelo incerto, em que o futuro pode ser um jogo de roleta (à luz da teoria das probabilidades, o termo “martingale” refere-se a uma sequência matemática historicamente ligada a jogos de apostas), a continuação da peça acaba por ficar em risco – ou então salva-se in extremis, pelo flamenco e pela comédia.


O encenador da peça que existe em Fifi Martingale não é sequer personagem de relevo no elenco liderado por Jean Lefebvre (seria o seu último filme), Yves Afonso e Lydia Feld (mulher do cineasta, atriz e co-guionista dos seus últimos filmes). Mas é um alter-ego distante de Rozier transposto para o teatro, pois claro. Em 2001, o cineasta estava muito longe de adivinhar que esta longa-metragem seria a derradeira. Tinha ainda mil e um projectos na cabeça. Mas o filme não chegaria a ter estreia comercial digna desse nome — nem sequer em França, imagine-se! Em Portugal muito menos (até esta quinta-feira…), à semelhança de todos os filmes anteriores. Por todo o lado, mesmo no seu país, foi mal visto e pouco amado — mas é um trabalho tão desajeitado quanto fascinante. Aliás, a vida comercial de Fifi Martingale já nasceu coxa: Veneza programou-o a trouxe-mouxe, como se estivesse a picar o ponto, na secção secundária dos repescados, longe do foco que o cineasta merecia (em contrapartida, recorde-se, 2001 foi uma edição de abundante presença do cinema português no Lido, a mesma que haveria de coroar a ouro Mira Nair e o seu Casamento Debaixo de Chuva, com Nanni Moretti a presidir ao júri).
Em 2018, o IndieLisboa e a Cinemateca Portuguesa lembraram-se de preparar uma retrospectiva da obra de Rozier. Foi uma óptima ideia e outro caso de frustração: a retrospectiva aconteceu mas Rozier, contra o seu desejo, nunca chegou a pôr os pés em Lisboa. Vozes indignadas de quem lhe era mais próximo começaram então a ouvir-se sobre o estado do cineasta, que já passara da casa dos noventa anos. Rozier enfrentou uma situação conjugal delicada e uma chocante ameaça de despejo que viria a concretizar-se pouco depois, e que o deixou, já em idade tão avançada, numa situação de grande vulnerabilidade. Restavam-lhe escassos amigos. Godard mostrou publicamente solidariedade, procurou intervir, não se sabe a que ponto. Uma petição de ajuda foi também lançada online. Mas não bastou para resgatar Rozier de uma situação lastimável.
Rozier continua em tournée
Enquanto isto, continuaram a programar-se ciclos, homenagens e retrospectivas desta obra, digitalizações e edições (é excelente o coffret Blu-Ray de 7 discos editado há pouco em França pela Potemkine Films), assim como novas versões restauradas e reposições em sala dos filmes principais, como as que serão agora dadas a ver no Cinema Nimas (Lisboa), no Teatro do Campo Alegre (Porto) e noutras salas do país geridas e programadas por Paulo Branco. A retrospectiva da Cinemateca Francesa em Novembro de 2021, à semelhança do que acontecera em Lisboa em 2018, já se desenrolou sem a presença do realizador. Rozier só parcialmente acompanhou este desfilar de louvores tardios e suspeita-se que, lá no fundo, nunca lhes tenha passado cartão. Quem vir estes filmes com atenção perceberá que a força do presente, a viva vivida com obstinação a cada segundo, reinam sobre qualquer outro aspecto. Não há em Rozier acessos de vaidade nem espelhos retrovisores. Não há remorsos nem recalcamentos, saudades, sentimentos de culpa, impulsos de melancolia. Em 2024, um ano depois da sua morte, o trabalho do artista foi mostrado em Nova Iorque, no Lincoln Center. Ou seja: Rozier continua em tournée.

Quem de Rozier foi mais próximo – e seria injusto não mencionar Michèle Berson, fiel assistente do cineasta nos seus últimos 15 anos de vida – conta que a última obsessão dele foi o fecho de uma sexta longa-metragem iniciada em 2006/2007, em parte rodada e montada “a dois terços”, mas nunca concluída, Le perroquet parisien, supostamente uma abordagem ao meio do cinema em Paris, travada por má gestão de produtores e desnorte geral. Foi projecto que morreu na praia. Um desfecho em sintonia com esta obra. Faltou-lhe um curto mas indispensável financiamento final que ninguém quis avançar. E Rozier, a verdade é esta, findou-se na penúria. Até ao fim dos seus dias, no início de junho de 2023, num hospital da Côte d’Azur (foi o último fundador da Nouvelle Vague a morrer, quase nove meses depois do suicídio assistido de Godard), procurou, no limite do que lhe era possível, rever e montar o material filmado, fixar ideias, tomar notas – mas o que existe de Le perroquet parisien permanece até hoje inédito. Algures foi dito que se julga possível concluir o filme com recurso a cartazes, baseados no que ficou escrito e apontado. Até neste ponto a obra de Rozier continua em aberto, à espera de novos olhos, com a promessa de novos capítulos.
Jacques Rozier foi o Jean Vigo da Nouvelle Vague. Ao cinema de Vigo dos anos 30 foi ele sacar a insolência e a poesia (e não é por acaso que, em 1964, é Rozier quem realiza o filme da série “Cinéastes de Notre Temps” dedicado ao autor de L’Atalante). A sua outra trave-mestra foi Jean Renoir (sobretudo o Renoir de Partie de Campagne), de quem chegou a ser assistente, em French Can-Can. A Renoir foi buscar o prazer de viver, os amores contrariados, todas as coisas efémeras a que não damos importância e que por vezes se tornam as mais profundas.
Foi um artista verdadeiramente livre, em busca constante de novas expressões cinematográficas. Antecipou em décadas soluções e atrevimentos narrativos que se apresentaram muito depois ao mundo com outras roupagens, como se fossem novos – não eram. Detestava um cinema vergado a hierarquias de produção e o autoritário dedo em riste do realizador. Em 1996, contava em entrevista ao Libération estas sábias palavras: “Tenho um desprezo profundo pelos realizadores que filmam com os olhos colados ao visor da câmara. Execro o visor, é a marca do chefe, não serve para nada. Se encararmos o cinema como a herança dos irmãos Lumière, então mais vale ser receptivo a tudo o que pode acontecer na rodagem, sem prever tudo nem enquadrar com antecedência.”
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia