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(A) :: Humilde, resiliente, fiel, adorável: como Jota deu o exemplo a todos os Diogos e chegou ao topo por caminhos alternativos

Humilde, resiliente, fiel, adorável: como Jota deu o exemplo a todos os Diogos e chegou ao topo por caminhos alternativos

Começou no Gondomar, só passou por um "grande" na condição de emprestado, tornou-se património de um dos clubes com mais história mundial: como a forma de ser de Diogo Jota explica o seu percurso.

Bruno Roseiro
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Preservava a simplicidade, nunca despiu o fato da humildade, pensava sempre mais além do que um normal jogador de futebol. Adepto dos videojogos, Diogo Jota há muito que juntava os principais prazeres à vontade de ir mais longe. Era assim dentro de campo, era assim fora dele. Ainda em 2021, o avançado criou a Diogo Jota eSports, marca que depois da fusão com a Galaxy Racer acabou por originar a Luna Galaxy. Nunca quis deixar o EA Sports FC, foi ganhando títulos nacionais e internacionais noutras competições, teve direito a uma homenagem especial há menos de um ano na Cidade do Futebol ao ser distinguido por todo o trabalho feito em prol do futebol virtual. “É um esforço de todos aqui no país para tentar demonstrar às pessoas que os eSports são, de facto, uma profissão como outra qualquer”, destacou. Uma pele, várias vidas.

https://observador.pt/2025/07/03/acidente-de-viacao-vitima-diogo-jota-internacional-portugues-do-liverpool-tinha-28-anos/

Desde miúdo que Diogo Jota quis desafiar aquilo que outros viam como impossível. Quantos miúdos que não passaram pela formação de grandes clubes chegaram depois à Seleção A com quase 50 internacionalizações? Poucos, muito poucos. O avançado foi um deles. Nisso e em muito mais, foi um exemplo, extensível não só ao percurso que fez dentro de campo mas também à forma como foi desbravando terreno fora dele à luz do que eram os gostos pessoais. Em grande parte, era isso que fazia de Diogo Jota uma figura consensual. Justa. Equilibrada. Companheira. Que dava dois passos em frente para fazer uma festa, que não se importava de dar um atrás se sentisse que tinha alguém que merecia mais do que ele a seu lado. A humildade foi sempre um tecido que lhe permitiu vestir algumas das melhores camisolas do mundo. Aos 28 anos, fica o exemplo.

A notícia da morte de Diogo Jota e do irmão, André Silva, vítimas de um acidente de viação em Espanha às 00h40 na zona de Zamora (menos uma hora em Portugal), colheu o mundo do futebol, do desporto e mesmo a sociedade em geral de uma forma devastadora. Em cada linha escrita, a tragédia ficava adensada. Depois de informações preliminares que apontavam nesse sentido, o despiste no quilómetro 65 da A-52 na província de Zamora foi causado pelo rebentamento de um pneu do Lamborghini onde seguia quando estava a fazer uma ultrapassagem, ficando em chamas e totalmente destruído de seguida com a identificação inicial a ser feita através da matrícula da viatura e dos respetivos documentos. Diogo José Teixeira da Silva vivia um dos melhores momentos da vida, em termos pessoais e profissionais. Num ápice, tudo se perdeu.

Depois de ter conquistado a Liga das Nações, naquele que foi o segundo troféu pela Seleção A após ganhar a mesma competição em 2019, Diogo Jota aproveitou as férias para casar com a sua companheira de sempre, Rute Cardoso, num amor de adolescência que foi acompanhado pelo nascimento dos três filhos (Dinis, Duarte e uma menina ainda bebé, cujo nome não foi revelado). Conheceram-se na escola em Gondomar, estiveram na mesma turma, começaram a namorar, nunca mais se largaram. Como a própria dizia, era a namorada (agora mulher), a melhor amiga e a fã número 1. Em condições normais, todos regressariam a Inglaterra de avião mas, após ter feito uma pequena cirurgia, o jogador acabou por ser desaconselhado pelos médicos a voar, o que fez com que fosse de carro para Espanha. A partir daí, faria a viagem de barco.

https://twitter.com/DiogoJota18/status/1938754083881464039

Diogo Jota tinha apenas 28 anos mas já era uma referência no Liverpool, onde chegou em 2020, e um nome incontornável na Seleção tendo mais ou menos espaço nas opções iniciais mediante o momento e o contexto de cada compromisso. Mais do que isso, sobra o exemplo de alguém único. Nas características como jogador, no trajeto que fez no futebol, no compromisso profissional, na vida pessoal. Mais do que os 150 golos que marcou ao longo do percurso, mais do que os 447 encontros realizados desde que fez a estreia nos seniores do P. Ferreira em 2014/15, mais do que as 49 internacionalizações A, isso será o que mais fica.

“Não é importante de onde vimos mas sim para onde vamos” (e os clubes para onde não foi)

Natural de Gondomar, Diogo Jota começou a jogar na equipa da terra. Era avançado sem ser especialmente grande para a função, fintava a questão física com uma técnica acima da média que deixava muitas vezes os companheiros divididos entre quererem que passasse mais a bola mas ao mesmo tempo esperarem que não desse a bola a ninguém e resolvesse como só ele conseguia. Nunca descurou os estudos, sendo um aluno de boas notas mas que se empenhava mais a sério dois ou três dias antes dos testes, colocou sempre o futebol como um sonho que podia ser mais do que isso com o apoio incondicional dos pais, Joaquim e Isabel, e já com Rute a seu lado quando passou para os juvenis. Única “estranheza”? Não dar o salto.

O avançado chegou a ser observado por olheiros do Benfica, foi convidado para fazer testes no Sp. Braga mas, no primeiro ano de júnior, acabou por optar pelo P. Ferreira entre as propostas que foi recebendo. O acordo foi feito ao intervalo de um encontro entre o Gondomar e os pacenses, a surpresa tocou a todos. O que levara à escolha? A possibilidade de encontrar um clube com condições melhores e onde pudesse somar minutos de competição para continuar a ser melhor. Como está inscrito na placa que inaugurou a Academia Diogo Jota em Gondomar, “não é importante de onde vimos mas sim para onde vamos” – e foi assim que o jogador quis fazer o seu trajeto, passando ao lado dessas hipóteses goradas de chegar a um dos “grandes”.

Se fora de campo mantinha a personalidade calma, humilde e trabalhadora, quando pisava os relvados tinha o poder de transformar-se. Era agressivo, irradiava intensidade, passava a competitividade para os restantes companheiros de equipa, desafiava um novo obstáculo sempre que atingia uma das metas a que se propunha. A par disso, nunca esqueceu o Gondomar. Tanto que, dentro da paixão pelos videojogos, um dos feitos dos quais mais se orgulhava era a forma como tinha agarrado na sua primeira equipa e conduzido ao topo da Europa no conhecido jogo Football Manager – conseguindo numa parte final contratar um tal de… Diogo Jota. “Ganhei cinco Supertaças, três Ligas portuguesas, três Taças de Portugal, quatro títulos europeus e um Mundial. Pelo meio tornei-me selecionador francês, ganhei o Mundial e ainda a Taça das Confederações. A gravação durou 13 épocas e meia, até janeiro de 2032, quando ganhei o Mundial de Clubes”, contou.

Chegado a Paços de Ferreira em 2013 como uma grande promessa que tinha como cartão de visita um fim de semana em que marcara um hat-trick pelos juniores e outro pelos juvenis em dias consecutivos pelas equipas do Gondomar, Diogo Jota não teve propriamente pressa em dar o salto para os seniores, algo que aconteceu de forma natural em 2014/15, onde já realizou dez encontros pelo conjunto pacense com uma estreia para mais tarde recordar na Taça de Portugal onde foi titular e marcou ao Atl. Reguengos. Na temporada seguinte, com Jorge Simão no lugar do técnico que o lançara, Paulo Fonseca, teve o ano de afirmação. Não chegou a marcar nenhum golo a fintar todos os adversários ao longo de 70 metros como fizera antes mas chegou ao final da época com 14 golos e cinco assistências em 35 jogos que começaram… com uma expulsão.

Os sinais deixados por Diogo Jota eram demasiado evidentes dentro de um P. Ferreira que continuava a ser uma das equipas da moda, terminando a temporada de 2015/16 na sétima posição da Primeira Liga. Por altura do mercado de inverno, o avançado chegou a estar encaminhado para assinar pelo Benfica, que era então orientado por Rui Vitória, mas o interesse foi arrefecendo e foi aí que surgiu o Atl. Madrid disposto a pagar sete milhões de euros pelo jovem jogador que passara a ser representado pelo agente Jorge Mendes. Mais uma vez, na altura de tomar a decisão, ouviu os pais, falou com Rute (que entretanto passara a viver consigo) e arriscou algo que seria sempre incerto. Confirmou-se. Por linhas tortas, escreveu-se “direito”.

Se antes as janelas de um “grande” pareciam sempre entreabertas, a porta abriu-se através de uma cedência a título de empréstimo ao FC Porto depois de uma reunião entre todas as partes onde se percebeu que teria um espaço reduzido caso ficasse na capital espanhola. Com Nuno Espírito Santo no comando técnico de uma formação azul e branca que atravessava o maior jejum de títulos da era Pinto da Costa, Jota marcou nove golos e fez quatro assistências em 38 partidas em mais uma época sem troféus no Dragão. Teve a capacidade de fintar a instabilidade para mostrar serviço, não teve a oportunidade de dar seguimento a esse trabalho com o FC Porto a recusar avançar com os 20 milhões de euros previstos na cláusula de opção numa altura de mudanças no clube com mais uma troca técnica que levou à chegada de Sérgio Conceição à Invicta.

Na última partida de azul e branco, na 33.ª jornada do Campeonato de 2016/17, Jota entrou ao intervalo e demorou apenas um minuto para marcar ao P. Ferreira. Não festejou por respeito à anterior equipa, num gesto que foi muito mais do que isso nos anos que se seguiram. Um exemplo prático: quando os pacenses conseguiram subir novamente ao primeiro escalão, enviou uma mensagem ao presidente apenas com a frase “Conseguimos! Estamos de novo onde merecemos”. Estava longe, nunca deixou de andar por perto.

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O passo atrás que lhe permitiu dar muitos à frente até Liverpool (e à Seleção)

Diogo Jota não ficou no FC Porto e também voltou a não ter espaço no Atl. Madrid. Próximo passo? Um que poderia ser atrás, um que se tornou muitos à frente. Apesar de ter recebido propostas de empréstimo não só de Portugal mas também de Espanha, o avançado acreditou em Nuno Espírito Santo e arriscou inverter a marcha do percurso com uma guinada para o segundo escalão inglês. O Wolverhampton, clube que tinha relações próximas do Atl. Madrid via Jorge Mendes, quis montar um plantel para lutar pela subida depois de um percurso mais baixo que envolveu também uma passagem pela League One (o equivalente ao terceiro escalão) e apostou em mais seis jogadores portugueses para se juntarem a Hélder Costa. Jota era um deles.

Apesar das renitências sobre um possível sucesso desportivo do projeto, até pela forma como as coisas não correram bem ao técnico no FC Porto, o Wolves, que nos anos 50 chegou a ser campeão inglês, fez uma época de sonho que culminou não só com a subida à Premier League como com o título do Championship. Entre um contingente que tinha também Rúben Neves (um dos amigos mais próximos no futebol do avançado), Pedro Gonçalves, Roderick Miranda, Ivan Cavaleiro, Rúben Vinagre e Hélder Costa, Diogo Jota foi o grande destaque com 18 golos e cinco assistências em 46 jogos que o colocaram nos radares de alguns dos principais clubes europeus. Decisão seguinte? Aceitar a abordagem feita pelo Wolverhampton, esperar que houvesse acordo com o Atl. Madrid e ver o seu passe ser vendido por 14 milhões de euros aos ingleses.

As características do avançado casavam na perfeição com a ideia de jogo de Nuno Espírito Santo, que foi o técnico que melhor potenciou aquilo que Diogo Jota podia dar a uma equipa como o Wolves: ataques mais rápidos em transição, zonas de pressão que não deixassem construir a partir de trás, eficácia de finalização nas oportunidades criadas. Foi assim que o conjunto do Molineux terminou por duas vezes na sétima posição do principal escalão inglês e chegou mesmo aos quartos da Liga Europa em 2019/20, foi assim que o avançado continuou a assinar temporadas com golos nos dois dígitos (dez com cinco assistências em 2018/19, 16 com três assistências em 2019/20), foi assim que chegaram as primeiras chamadas à Seleção A que permitiram conquistar a Liga das Nações apesar de ter feito apenas a estreia em novembro de 2019.

Wolverhampton começava a ser pequeno para aquilo que Diogo Jota mostrava. Era um daqueles avançados que poderia ser mais ou menos apreciado entre clubes de top mas que mostrava argumentos que o colocavam à parte de todos os outros. Jürgen Klopp não teve dúvidas: depois da vitória na Liga dos Campeões em 2019 e do triunfo na Premier League em 2020, o português era o reforço perfeito para dar algo mais ao ataque que começava a ver crescer de novo a ameaça do rival Manchester City e nem mesmo os quase 50 milhões de euros que o clube pagou entre verba fixa e objetivos variáveis demoveu o alemão da aposta.

Seis anos depois, tornou-se património de um dos clubes com mais história mundial como é o Liverpool. Ganhou uma Premier League na última temporada, já tinha ganho antes uma Taça de Inglaterra e uma Taça da Liga, falhara apenas a Liga dos Campeões tendo uma final perdida em Paris frente ao Real Madrid – e era com esse objetivo que iria partir para a época de 2025/26, começando a pré-temporada após alguns companheiros por estar no lote de internacionais com autorização para chegarem mais tarde pelos compromissos que tiveram nas respetivas seleções. A música que ganhou nas bancadas do mítico Anfield foi apenas uma das muitas manifestações de veneração por alguém que, no Liverpool ou na Seleção, respeitou o seu espaço, defendeu o grupo, deu o exemplo e conseguiu chegar ao topo mantendo sempre os pés na terra.

Oh, he wears the number 20,
He will take us to victory,
And when he’s running down the left wing,
He’ll cut inside and score for LFC.
He’s a lad from Portugal,
Better than Figo don’t you know,
Oh, his name is Diogo!

“O Jota é um bom jogador, trouxe-nos muito e é uma pessoa adorável. Isso torna tudo mais fácil. É forte, bom no jogo aéreo, pelo chão. Tem exatamente a qualidade que precisávamos e isso ajuda. Se me surpreendeu? Não sei… Muitas das coisas que ele faz é o que queremos que ele faça. Tem um futuro que vai ser brilhante pela frente”, destacou Klopp após os primeiros meses de trabalho com o avançado. “Todos os jogadores têm 80% do mesmo programa, 20% é individual. É um jogador que trabalha muito, que tenta ser melhor todos os dias. É uma ameaça no ataque mas também trabalha muito no momento defensivo. Porque lhe dei a braçadeira? É o jogador que está há mais tempo ao serviço do clube entre os que estavam em campo, é experiente e tem importância na equipa”, salientou Arne Slot, último técnico que o avançado teve nos reds.

Entre algumas lesões que foram impedindo uma afirmação ainda maior nas opções iniciais do Liverpool, e que fizeram também com que falhasse o Campeonato do Mundo de 2022 no Qatar, Diogo Jota fazia agora uma aposta forte em 2025/26 a todos os níveis. Por um lado, entre uma formação dos reds reforçada pelo médio ofensivo alemão Florian Wirtz e pelos laterais Frimpong e Milos Kerkez, o desafio no clube passava por reconquistar a Premier League e “vingar” a última edição da Champions em que a equipa foi eliminada nos oitavos após perder com o futuro campeão europeu PSG. Por outro, numa prova que deverá marcar o adeus de Ronaldo à Seleção, queria marcar presença no primeiro Mundial da carreira com ambição de chegar ao único título em falta para Portugal. Um acidente de viação aos 28 anos colheu esses sonhos.