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(A) :: Mais gastos com defesa e fronteiras, mexidas nos impostos e corte no Medicaid. Com que linhas se cose o mega pacote orçamental de Trump?

Mais gastos com defesa e fronteiras, mexidas nos impostos e corte no Medicaid. Com que linhas se cose o mega pacote orçamental de Trump?

Foi uma votação renhida, mas a “big beautiful bill” da administração Trump passou no Senado e está a caminho de se tornar lei. O que contém o pacote fiscal de 3,3 biliões de dólares?

Cátia Rocha
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A “one big beautiful bill” de Donald Trump ultrapassou mais uma das etapas necessárias no processo para se tornar lei, após o Senado aprovar, ainda que com margem mínima, o amplo pacote orçamental. São 940 páginas de medidas e alterações que poderão mexer nas carteiras de 342 milhões de norte-americanos.

A OBBB, a sigla usada no site da Casa Branca, contempla alterações nos impostos para famílias e empresas e o aumento da despesa. É a concentração num único ato legislativo de muitas das medidas-bandeira que Donald Trump usou na campanha eleitoral. Por exemplo, a redução de impostos, incluindo nas gorjetas, ou o aumento do financiamento em áreas como a defesa e o controlo de fronteiras.

Se se gasta de um lado, é preciso compensar do outro. É aí que entram os cortes em campos como a saúde, através das alterações nos critérios para aceder ao Medicaid, o programa que beneficia quem tem menos rendimentos — as previsões apontam que, caso a lei veja a luz do dia, até 12 milhões de norte-americanos poderão ficar sem seguro de saúde na próxima década. Ou o acelerar do fim dos apoios fiscais às energias renováveis.

Mesmo com a reduzida margem no Senado, Trump regozijou-se com a conclusão de mais uma etapa. “O nosso país vai explodir com um enorme crescimento, mais ainda do que tem acontecido desde que fui reeleito”, escreveu Donald Trump na Truth Social após ser conhecido o resultado da renhida votação.

O que é a “big beautiful bill” apresentada pela administração Trump?

É um pacote orçamental concebido pela administração de Donald Trump, que o Presidente norte-americano descreveu como “one big beautiful bill”, em tradução livre, uma grande e linda proposta de lei.

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Stephen Miran, que lidera o conselho de consultores económicos de Trump, veio a público projetar que este pacote fiscal poderá impulsionar o produto interno bruto (PIB) dos EUA entre 4,6 e 4,9% ao longo dos próximos quatro anos. Previsões que já foram contestadas por alguns think tanks e economistas. “De uma perspetiva macroeconómica, provavelmente tem pouco efeito”, disse Reuven Avi-Yonah, professor de direito fiscal da Universidade do Michigan, ao site The Hill. “Sou sempre um pouco cético em relação ao potencial de crescimento que resulta de benefícios fiscais.”

Quanto poderá custar?

O número é redondo: 3,3 biliões de dólares, segundo as estimativas do Gabinete de Orçamento do Congresso (CBO, na sigla em inglês). Estas previsões indicam que este valor poderá ser acrescentado à dívida de 36,2 biliões dos EUA ao longo dos próximos dez anos.

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As previsões também apontam para uma redução das receitas na ordem de 4,5 biliões de dólares para um corte de de gastos na ordem de 1,2 biliões de dólares, segundo números do CBO.

Porque está a gerar polémica?

A proposta de lei está a ser alvo de críticas por parte de vários membros do partido Democrata, que acusam de favorecer quem tem rendimentos mais altos e deixar desprotegidas as famílias com orçamentos mais reduzidos. Os republicanos querem, por exemplo, aumentar os requisitos que permitem o acesso a programas de assistência alimentar, usados pelas famílias de rendimentos mais baixos. É estimado que esta alteração possa representar poupanças de 285 mil milhões de dólares. Nancy Pelosi, que liderou a Câmara dos Representantes, descreveu a proposta como “uma visão muito desfocada do que é a América”, questionando “se é lindo eliminar o acesso a comida a idosos e crianças”, cita a Associated Press. 

Já outras críticas, fora do espetro partidário, questionam o aumento dos gastos. Erica York, vice-presidente de política federal de impostos do Tax Foundation Center for Federal Tax Policy, chamou à proposta “irresponsável do ponto de vista orçamental, ao aumentar o défice e a dívida, mesmo tendo em conta o crescimento [da economia]”, citou a CNBC. 

Também Elon Musk, que até há alguns meses era o first buddy de Donald Trump, está contra a lei. O empresário e homem mais rico do mundo declarou, ainda antes da votação no Senado, que o esboço da lei poderia “destruir milhões de empregos nos EUA e causar imensos danos estratégicos ao país”. Usou adjetivos como “insano e destrutivo”. “Dá dinheiro às indústrias do passado enquanto prejudica gravemente as indústrias do futuro”, criticou o patrão da fabricante de automóveis Tesla.

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A proposta de lei também foi criticada por sindicatos. O International Brotherhood of Electrical Workers (IBEW), que representa cerca de 860 mil trabalhadores da construção, utilities, indústria, telecomunicações, governo e caminhos de ferro, considerou o pacote de medidas orçamentais como “um ataque direto às famílias trabalhadoras, concedendo isenções fiscais aos ricos enquanto vira as costas às pessoas que fazem mexer este país”.

O IBEW alertou ainda para o facto de o pacote poder “custar centenas de milhares de trabalhos bem pagos na construção, milhares de milhões de horas de trabalho e centenas de milhares de milhões perdidos em salários e benefícios económicos para a classe média americana”.

O voto decisivo de JD Vance numa maratona de votações

O pacote foi aprovado esta terça-feira no Senado, após uma renhida votação. Coube ao vice-presidente dos EUA, JD Vance, desempatar a votação, que terminou com um total de 51 votos a favor e 50 contra. Embora não tenha direito a voto no Senado, o vice-presidente dos Estados Unidos tem, no entanto, o designado voto de minerva, que funciona como um joker numa votação empatada. JD Vance desempatou a votação no Senado.

Foi o culminar de longas horas de trabalho e de muitas propostas de alteração e emendas — tanto a Reuters como o Politico falam numa recorde de “vote-a-rama” nesta maratona de votações.

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Três republicanos no Senado votaram contra este pacote orçamental — Rand Paul, do Kentucky, Thom Tillis, da Carolina do Norte, e Susan Collins, do Maine. Segundo o Wall Street Journal, cada um dos senadores apresentou motivos diferentes para juntar o seu voto ao dos democratas. Rand Paul rejeitou o aumento do limite da dívida do país, enquanto Tillis e Collins levantaram objeções às alterações que vão ser feitas ao financiamento do programa Medicaid.

Alterações ao programa Medicaid podem deixar milhões sem seguro de saúde

Um dos pontos do pacote orçamental que gera controvérsia está ligado ao programa Medicaid, que garante que quem tem menos rendimentos não fica excluído do acesso à saúde, num mercado dominado pelos seguros. Atualmente, 72 milhões de pessoas dependem deste programa.

A proposta de lei da administração Trump determina um corte de financiamento ao Medicaid de 930 mil milhões de dólares na próxima década. Ao mesmo tempo, os republicanos querem alterar os critérios que permitem aceder ao programa, através da inscrição de um mínimo de 80 horas de trabalho por mês para os adultos saudáveis até aos 65 anos. Só quem tiver filhos até aos 14 anos, alguma condição de saúde ou mais de 65 anos é que tem exceção.

As estimativas feitas pelo Gabinete de Orçamento do Congresso (CBO) apontam para que 11,8 milhões de norte-americanos possam vir a perder esta proteção até 2034 devido às mudanças. Os estados onde mais pessoas poderão perder o seguro de saúde serão a Flórida, o Texas e a Califórnia.

As alterações propostas para a Medicaid também preveem um corte no financiamento dos apoios a entidades, como a Planned Parenthood. Ou seja, poderão ser afetadas entidades que disponibilizam intervenções como a interrupção voluntária da gravidez.

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O que poderá mudar nos impostos para as famílias?

A proposta de lei inclui várias alterações nos impostos para as pessoas. Por exemplo, deverá tornar permanente a maioria da fatura fiscal aprovada pela administração Trump em 2017 e que expira a 31 de dezembro. Esta medida tem um custo associado de 2,2 biliões de dólares. E permite manter os impostos mais baixos, tornando, ainda, permanente a dedução por cada contribuinte.

Além disso, é feita a proposta de que as gorjetas passem a estar isentas de impostos, até um teto máximo de 25 mil dólares por pessoa até 2029. É uma medida que ganhou popularidade entre o eleitorado de Trump durante a campanha, num país em que uma boa parte dos rendimentos de quem trabalha na restauração e hotelaria está dependente de gorjetas. No total, esta alteração poderá custar 32 mil milhões de dólares.

Também há alterações para a forma como são taxados os rendimentos gerados por horas extra de trabalho. Caso a proposta de lei seja aprovada, os trabalhadores vão ter acesso a uma isenção de até 12.500 dólares por pessoa ou 25 mil dólares por casal, até 2028.

Para quem tiver filhos, a “big beautiful bill” pretende aumentar em 200 dólares os benefícios que as famílias têm por cada filho. Assim, o limite passaria para 2.200 dólares, de forma permanente, por dependente até aos 17 anos. Também há vontade de indexar este medida à inflação. Porém, ainda não está totalmente fechado o valor final, já que alguns republicanos na Câmara dos Representantes mostraram interesse em aumentar o valor para 2.500 dólares nos próximos anos e regressar aos 2 mil dólares a partir de 2028, indica a NBC News.

Está ainda prevista a possibilidade da dedução dos juros dos empréstimos de automóveis até um valor de 10 mil dólares. Mas é preciso obedecer a um requisito: que o carro tenha sido fabricado nos EUA.

O pacote fiscal poderá conter também uma novidade para quem tem 65 anos ou mais, através da criação de uma dedução de até 6 mil dólares até 2029.

Do lado das empresas, a possibilidade de dedução de gastos com equipamento e investigação

Uma medida que até aqui é temporária, como as deduções para os gastos com compras de equipamentos ou investigação, deverá passar a ser permanente.

Ficam também previstos incentivos fiscais “made in America”, com o intuito de promover a indústria dos EUA.

Fim do apoio à isenção fiscal para as renováveis e à compra de carros elétricos

Este pacote fiscal contempla várias medidas para os setores da energia e ambiente. Durante a tomada de posse, Trump reforçou o apoio à indústria petrolífera, entoando “drill, baby, drill”. Assim, há medidas como a criação de incentivos fiscais para gasodutos ou exploração de gás natural.

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A versão aprovada pelo Senado tem impacto também na área das energias renováveis, através do fim dos subsídios para estes projetos. A proposta contempla, ainda, um corte nos subsídios, a menos que os projetos estejam a funcionar até ao fim de 2027.

Em março, Miguel Stilwell d’Andrade, CEO da EDP, admitiu algum “nível de incerteza” com o fim do incentivo dos EUA às renováveis. Através da EDP Renováveis, a empresa portuguesa tem vários projetos de exploração solar e eólica nos EUA. Já em maio, em entrevista à Bloomberg, disse que “obviamente há mais resistência agora em relação às renováveis”, mas que a empresa continua “confiante em relação aos benefícios fiscais” nos EUA.

Do lado das famílias, o apoio à instalação de painéis solares, com um benefício fiscal de 30%, também vai ser eliminado. Já em março, as empresas que instalam este tipo de soluções alertaram para o facto de a proposta de lei poder ameaçar os empregos de mais de 100 mil pessoas, notou a Reuters.

A proposta que foi aprovada pelo Senado também acelera o fim do programa de apoio à compra de carros elétricos novos e usados. Os consumidores têm um apoio de 7.500 dólares por compra, que deverá chegar ao fim a 30 de setembro deste ano — mais cedo do que versões anteriores, que apontavam para o fim deste ano. Um golpe duro para a Tesla.

Reforço do orçamento do controlo de fronteiras e da defesa

O pacote de Donald Trump dá um reforço de financiamento à área da defesa, com um custo total de 157 mil milhões de dólares. Nessa área, incluem-se medidas como o aumento dos gastos com a construção naval, que poderá vir a contar com mais 29 mil milhões de dólares, ou mais fundos para sistemas de defesa aérea e mísseis.

A “Cúpula Dourada” anunciada por Trump, o sistema anti-míssil que os EUA querem ter até 2029, poderá ter um financiamento de 25 mil milhões de dólares. Isto apesar de Trump ter deixado claro que não vai aumentar a sua dotação na defesa no âmbito da NATO, ao contrário dos outros estados-membros que se comprometeram a aumentar os gastos até 5% em 2035. Em 2024 os Estados Unidos gastaram 3,38%, segundo a NATO, do PIB em defesa.

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A proposta orçamental também contempla um reforço de 150 mil milhões de dólares na área de controlo de fronteiras, numa administração que fez do combate à imigração ilegal a sua bandeira. A ICE, a entidade que controla esta área, também poderá vir a ganhar um reforço de orçamento na ordem de 29,85 mil milhões de dólares.

Alterações aos empréstimos para estudantes

Nesta área as medidas estão principalmente ligadas aos empréstimos estudantis, uma fatura que pesa na carteira de muitos norte-americanos. Em média, o pagamento mensal ronda os 536 dólares e são precisos mais de 20 anos para pagar a totalidade do empréstimo (dados Education Data Initiative).  É estimado que as mudanças nesta área da educação permitam ao governo norte-americano poupar até 287 mil milhões de dólares.

A versão aprovada pelo Senado poderá ditar o fim de alguns formatos de pagamento de empréstimos que vigoraram durante a administração Biden. Ou seja, alguns norte-americanos poderão, entre julho de 2026 e julho de 2028, ter de escolher apenas entre dois tipos de planos para pagar esta dívida: um plano standard, com um horizonte de pagamento entre 10 e 25 anos, ou um novo plano de assistência de pagamento, que só permite que a dívida fique perdoada após 30 anos de pagamentos.

Algumas associações dedicadas à defesa de quem tem estes empréstimos já alertaram que esta alteração poderá traduzir-se num aumento das prestações mensais.

Quais são os próximos passos para esta lei?

Depois do Senado, este pacote de medidas orçamentais ainda terá de passar novamente pelo crivo da Câmara de Representantes até se tornar lei. Atualmente, o equilíbrio de forças na Câmara de Representantes é de 220 lugares para os republicanos e 212 para os democratas. As discussões estão a decorrer esta quarta-feira, mas deverá ser uma corrida contra o tempo, já que há um prazo imposto por Donald Trump para ter os trabalhos concluídos.

“Temos um prazo — vamos continuar [a trabalhar] e terminar isto antes de irem de férias do 4 de julho com as vossas famílias”, escreveu na Truth Social. O feriado da independência dos EUA assinala-se neste dia e é um período de fim de semana prolongado para muitos norte-americanos.

A data de 4 de julho já tinha sido referida pelos republicanos, ainda antes da chegada da proposta ao Senado. Já na semana passada, Karoline Leavitt, secretária de imprensa da Casa Branca, mencionou a expectativa de a lei “estar na secretária do Presidente para ser assinada até ao 4 de Julho”.