Qualquer coisa no começo do Verão atira o cronista da urgência dos assuntos do dia para a sombra dos temas de sempre. Talvez não seja do calor; algo semelhante acontece ali por volta do Natal – terá a ver, supõe, com a repetição dos rituais anuais que nos devolvem, momentaneamente, a imagem do todo, o sentimento da vida enquanto corrida de fundo. O regresso à roupa da estação, à praia do ano anterior, aos truques para tentar fugir às noites de sufoco mal dormido, os planos que elaboramos, durante dois épicos meses de antecedência, para duas fugazes semanas de férias, avistadas já no horizonte como estranho ómega da existência. E nisto, neste processo de desfocar o olhar do que se passa para o pôr no que fica, volta a demorar-se numa campanha publicitária com poucos meses: “Quem dera que o amor durasse tanto como um móvel Ikea”.
É uma campanha brilhante. Encomendada à agência criativa Uzina para assinalar os 20 anos da Ikea em Portugal, põe a marca a olhar para as suas potenciais fragilidades com frontalidade e humor, enquanto a coloca maravilhosamente num lugar sentimental no centro da vida do consumidor. Como quem diz: ok, nós sabemos que não fazemos os móveis mais resistentes do mundo – não é isso que vendem; vendem design a preço baixo – mas, mesmo assim, olhem à volta e vejam lá, mais lasca, menos amolgadela, quantos móveis Ikea continuam a servir na vossa vida, enquanto tudo o mais, que prometia durar, acabou? E lá juntam uns testemunhos de clientes para caucionar isso mesmo: a “Alena”, que ainda dorme na mesma calma Malm que resistiu “às noites de amor e aos saltos de alegria” do filho e até ao fim do relacionamento. A “Rute” e o móvel Forsby. A “Anne-Marie” e as cómodas que já andam com ela “há oito mudanças de casa”.
Há algo de agridoce na campanha, mas é difícil lembrarmo-nos de outra mais empática; que entendesse melhor o tempo que vivemos. Instantaneamente, põe-nos também a nós a olhar para a casa, a ver o que ficou e de que forma aceitámos que a vida seja, afinal.
Numa história paralela, tempos atrás, um bombeiro que conduzia uma formação em situações de emergência para empresas, explicava que correr para debaixo de uma mesa já não é a solução recomendada em situação de sismo; “Isso era no tempo da Moviflor”, explicitou – os móveis agora já não aguentam com uma trave do tecto que acaso lhes caia no lombo. E um indivíduo, debaixo do calor de Julho, medita nisto: apesar de tudo, pesados os prós e os contras, preferiríamos nós, hoje, amores Moviflor? A Ikea tem, ao que consta, uma filosofia de trabalho simples: contacta um designer de que goste, diz que móvel quer (uma mesa, uma cadeira, uma estante futuramente baptizada com nome de defesa esquerdo, o que quer que seja), custo máximo e regra de ouro: tem de ser empilhável.
No tempo dos nossos pais e avós, os móveis compravam-se para sempre. Para casamentos inteiros, para ficarem para os filhos e os netos, para envelhecerem sólidos como árvores, tão perenes na paisagem humana que, ainda hoje, qualquer funcionário mais antigo de uma empresa é, universalmente, apelidado de “mobília”.
É irónico. Talvez a língua ainda não tenha dado por isso. Toda a ideia do conceito de “móvel” era que fosse isso mesmo: móvel, “movimentável”, por contraste com o bem imóvel em contexto: a casa, o chão. E no entanto, móveis, passageiros, efémeros, foi mesmo aquilo em que nos tornámos. Tudo muda de tal forma e tão depressa que os “móveis” se tornaram das referências mais estáveis das nossas vidas. A nossa relação com o mobiliário passou a privilegiar outras qualidades e, nisso, a pôr em evidência outras necessidades: queremos móveis mais leves, mais pequenos, mais baratos, que caibam em casas pequenas porque não temos dinheiro para maiores, porque vivemos mais sozinhos e menos em família, porque têm de caber nesta, mas também na próxima, porque já estamos a pensar no que vamos sofrer a carregar pesos na mudança. Porque nos podemos fartar deste e querer outro – afinal, quem sabe o que vai estar na moda daqui a três anos ou cinco? Antes a madeira escura, agora a branca; antes o que todos tinham, agora o que ninguém tem.
No tempo dos nossos pais e avós, vivia-se aceitando que tudo era para sempre; hoje, vivemos aceitando que nada é para sempre. Nenhuma das aceitações parece especialmente feliz, apenas formas adultas, estranhamente contraditórias, de viver a vida como achamos que ela é. Mas será a vida alguma coisa além do que fazemos dela?
No século XXI, pelo sim, pelo não, aprendemos a não nos iludirmos demais. Aceitamos que tudo morre, acaba, esmorece, apodrece, vai, se esfuma, desbota, se perde. Mas aprendemos a cair com design. Em graça. A fazer estilo com o usado, o coçado e o vintage. A madeira não é muito boa; todo o interior um mero prensado de madeiras não nobres. Já não há boas matérias-primas ou são demasiado caras. Já só pedimos que sirvam a função enquanto também nós passamos por aqui.
É uma canção em tom menor. Mas funciona. Embala. Não estamos inteiramente errados.