No acórdão que ditou a pronúncia de José Sócrates (e de outros 21 arguidos por 118 crimes, aos quais foi subtraído recentemente um arguido e um crime pela extinção de uma sociedade arguida), em janeiro de 2024, as juízas desembargadoras Raquel Lima, Madalena Caldeira e Micaela Rodrigues, da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, recuperaram a essência da acusação do Ministério Público sob um adágio simples que já tinha orientado a investigação do caso Watergate, nos Estados Unidos: “Follow the money” [Siga o dinheiro].
E a quem é que o dinheiro conduziu ao longo de sinuosos circuitos financeiros desmontados pela investigação da equipa liderada pelo procurador Rosário Teixeira e pelo inspetor tributário Paulo Silva? Ao ex-presidente do Banco Espírito Santo (BES), Ricardo Salgado, ao vice-presidente do Grupo Lena, Joaquim Barroca, e a Rui Horta e Costa, um dos líderes do projeto de Vale do Lobo.
https://observador.pt/programas/sim-sr-procurador/sim-sr-procurador-socrates-e-as-massas-da-mae/
Através de alegados ‘testas-de-ferro’, como o amigo e empresário Carlos Santos Silva e o primo José Paulo Pinto de Sousa, o ex-primeiro-ministro terá visto serem-lhe colocados à disposição cerca de 34 milhões de euros, com as desembargadoras a assinalarem os “indícios fortíssimos” de que esses fundos “pertencem ao arguido José Sócrates”.
Como Sócrates recebia fundos de Santos Silva: a língua codificada do “envelopezinho” e das “fotocópias”
A forma como Carlos Santos Silva entregava avultadas quantias em ‘dinheiro vivo’ a José Sócrates através de diversos meios é uma das provas mais fortes que o Ministério Público (MP) apresenta nos autos da Operação Marquês. Pelo menos, os sucessivos magistrados judiciais de diversos tribunais superiores assim o afirmaram ao longo dos anos.
As juízas desembargadoras Raquel Lima e as adjuntas Micaela Rodrigues e Madalena Parreiral Caldeira, que pronunciaram José Sócrates o os restantes arguidos para julgamento, concordaram que está fortemente indiciado que, após Sócrates sair do cargo de primeiro-ministro, o ex-líder do PS recebeu ‘dinheiro vivo’ em envelopes no valor de cerca de 1,2 milhões de euros entre 2011 e 2014.
Enquanto esteve em São Bento, Carlos Santos Silva “apenas” utilizou por “três vezes” o “estratagema de realizar levantamentos e entregas de numerário” ao então primeiro-ministro José Sócrates.
Tudo terá começado em julho de 2011, a uma cadência de 5.000 euros, e foi aumentando de forma progressiva com o passar do tempo.
As desembargadoras valorizam as famosas conversas em código entre José Sócrates e Carlos Santos Silva ou João Perna (o motorista) em que o ex-primeiro-ministro usava expressões como “fotocópias”, “um papelito”, “um envelopezinho”, “estou à rasca”, “aquela coisa”, “preciso de alguma coisa”, “guita”, “massa” ou “testes do explicador do Duda” (filho de Sócrates).
A famosa casa de Paris é, por outro lado, mais um “indício fortíssimo” que comprova, no entender das desembargadoras, que os fundos depositados na Suíça pertenciam ao ex-primeiro-ministro.
Em primeiro lugar, porque a compra da casa de Paris foi financiada com fundos das contas de Santos Silva no banco UBS, na Suíça — a tal conta que pertencerá a Sócrates.
Por outro lado, a casa foi escolhida e mobilada por e de acordo com as instruções de José Sócrates. Enquanto o imóvel se manteve desconhecida de todos, era Sócrates quem mandava em tudo o que tivesse a ver com o apartamento.
Quando o jornal Correio da Manhã começou a noticiar que Sócrates morava num imóvel de luxo no centro de Paris, verificou-se uma modificação da “estratégia destes arguidos” e o ex-líder do PS começou a ter conversas simuladas com o seu amigo Santos Silva em que o tratava como se este fosse o proprietário, tendo mesmo sido assinado um contrato de arrendamento — que nunca levou à transferência de valores entre os dois.
“Assim, é por mais evidente, que o imóvel em causa é pertença de José Sócrates e não de Carlos Silva, que terá servido de testa-de-ferro para tal aquisição”, lê-se no acórdão.
Outro “fortíssimo indício” prende-se com o pagamento de despesas da deslocação do filho de Pedro Silva Pereira (ex-braço direito de Sócrates e atual eurodeputado do PS) para Paris. “O arguido compromete-se a pagar um alojamento de um terceiro em Paris, com o dinheiro de outrem? Não, obviamente, com o seu próprio dinheiro”, escrevem as desembargadoras.
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Entre “entregas em numerário, pagamento de despesas e aquisição de imóveis chegaram ao arguido José Sócrates cerca de 8 milhões de euros” entre 2011 e 2014, lê-se no acórdão.
A ausência de credibilidade de Sócrates e “os gastos excessivos” que facilitaram a investigação
Os “gastos excessivos”, na visão da Relação de Lisboa, do ex-líder do PS, “contrariando todas as manobras de ocultação da origem do dinheiro e que acabaram por facilitar a investigação”, fizeram com que a sua conta na Caixa Geral de Depósitos suportasse “despesas que ultrapassaram €1.000.000,00 [1 milhão de euros]” entre 21 de junho de 2011 e 24 de setembro de 2014.
As três desembargadoras concordam com o MP que a prova indiciária, assente em prova bancária, indica que José Sócrates “não fazia qualquer controlo dos seus gastos” e ficava “muito surpreendido” quando acabava com a conta a descoberto e sem saldo “porque não tinha ideia de ter gasto tais montantes”.
“Como é possível ao arguido Sócrates proceder ao pagamento destas despesas supra referidas de milhões de euros? Usando o dinheiro que, embora formalmente estivesse em contas tituladas pelo arguido Santos Silva, lhe pertencia. Esta conclusão retira-se com facilidade dos factos que relatámos supra, sendo certo que, de acordo com as regras da experiência, não nos é possível chegar a outra conclusão. Ninguém gasta MILHÕES [sic] que não lhe pertençam”, lê-se no acórdão.
Além de recorrer às declarações que João Perna prestou em sede de interrogatório judicial para reforçar os seus indícios, visto que o motorista confirmou a circulação em numerário entre Sócrates e Santos Silva, as desembargadoras da 9.ª Secção da Relação de Lisboa entendem igualmente que as declarações do próprio ex-primeiro-ministro são uma prova indiciária relevante.
Porquê? Em primeiro lugar, porque Sócrates nega “todas estas, evidentes, conclusões”. “O arguido tem uma postura em tribunal coincidente com a de alguém que conforma a sua vida segundo a sua própria vontade e visão”, sendo certo que tal “relato da sua vida” é “desajustado da realidade”.
Mais: “Faz afirmações sem o mínimo de credibilidade, razoabilidade.. mas de um modo tal que parece colocar em causa a inteligência de quem o inquire”, lê-se no acórdão.
Um exemplo disso mesmo é facto de José Sócrates “afirmar ser amigo de infância de Carlos Santos Silva”, acrescentando de seguida que tem um “conhecimento vago sobre a sua experiência profissional e financeira” do empresário. Outro é uma afirmação de Sócrates que, no interrogatório, disse que era um “pobre provinciano que andou na política durante uns anos” e que naquele momento “foi a primeira vez que ouviu falar em offshores”.
“Ora, se não tínhamos dúvidas quanto à titularidade do dinheiro, com as declarações do arguido José Sócrates (…) confirmamos essa convicção”, afirmam as desembargadoras.
As justificações de Carlos Santos Silva…
O alegado testa-de-ferro, a quem José Sócrates prefere chamar de “melhor amigo”, apresentou várias justificações ao procurador Rosário Teixeira durante a fase de inquérito e ao juiz Ivo Rosa durante a fase de instrução criminal.
À pergunta que todos fazem (“porque razão não transferiu os seus empréstimos através de conta bancária?”), Carlos Santos Silva explicou ao juiz Ivo Rosa que lhe dava mais jeito andar com numerário, sendo que Sócrates às vezes não estava no país, logo dava-lhe mais jeito levantar antecipadamente para emprestar ao ex-primeiro-ministro. Além do mais, a ideia de entregar ‘dinheiro vivo’ partiu dos dois — não foi de ninguém em concreto, alegou Santos Silva.
https://observador.pt/especiais/santos-silva-diz-que-contrato-de-arrendamento-da-casa-de-paris-a-socrates-nao-servia-para-nada/
Santos Silva explicou que entre 2010 e 2012, providenciou transferências ou entregas de dinheiro a José Sócrates. Eram pontuais e eram sempre realizadas de forma faseada. A ajuda regular só começou após o verão de 2013, quando José Sócrates terá confessado a Carlos Santos Silva que estava a começar a ter dificuldades financeiras e a pensar em vender a sua casa no Herron Castilho, em Lisboa.
Entre 2010 e 2014, Carlos Santos Silva diz que terá levantado cerca de 890 mil euros em numerário, sendo que 490 mil euros entregou a José Sócrates e o remanescente ficou guardado no seu cofre.
Tendo em conta que aos 490 mil euros que passou a Sócrates deve acrescentar-se os 107 mil euros que lhe emprestou em 2010, o total da dívida seria de 597 mil euros. Sócrates já teria pago 250 mil euros.
E as entregas através de códigos usados por José Sócrates para classificar pedidos de dinheiro como “fotocópias” ou “livros”?, perguntou Ivo Rosa. “São coisas sobre as quais não quero falar”, afirmou Carlos Santos Silva.
Carlos Santos Silva explicou ainda que o seu gosto em andar com dinheiro numerário começou com os seus negócios no mercado de construção. Quando foi interrogado pelo juiz Ivo Rosa durante a fase de instrução, Santos Silva começou por referir genericamente que começou a fazer fortuna nos anos 80 e 90 no mercado da construção civil e das obras públicas devido ao mercado de economia paralela que existia na altura.
Mais tarde, e após ter sido questionado pelo procurador Rosário Teixeira no que o juiz Ivo Rosa permitiu, Carlos Santos Silva especificou que entre 1986 e 1996 existiu a nível sistémico uma economia paralela perfeitamente estabelecida entre as empresas de obras públicas e construção civil. Isto é, aproximadamente 50% da faturação eram pagos por “debaixo da mesa”.
Aliás, Carlos Santos Silva fez questão de dizer que ainda hoje gosta de “andar com dinheiro vivo.” E porquê? Porque “o mundo da construção civil” é assim mesmo. É o seu lifestyle.
…. e as de José Sócrates durante os seus interrogatórios na fase de inquérito
José Sócrates sempre classificou todo o dinheiro que lhe foi passado por Santos Silva como “empréstimos” e, ainda durante a fase de inquérito disse ao procurador Rosário Teixeira nos primeiros interrogatórios algo que surpreendeu todos os que sempre ouviram que Sócrates era rico devido a uma herança da mãe: “Sempre tive dificuldades financeiras”.
Mais: “Nunca tive contas a prazo, não tenho dinheiro de fortuna, tenho uma casa e um carro”.
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O ex-primeiro-ministro fez uma segunda confissão ao procurador Rosário Teixeira em 2014: “Sempre vivi com a generosidade da minha mãe, que lá ia dando umas ‘massas’ quando eu precisava”.
Procurador Rosário Teixeira: Não houve da sua parte nenhuma solicitação à sua mãe que, dado ter algumas despesas em Paris, precisasse deste dinheiro, de que tivesse pedido à sua mãe se lhe podia, digamos assim, isto ser um empréstimo?
Sobre as entregas em ‘dinheiro vivo’ do seu amigo Carlos Santos Silva, José Sócrates nunca conseguiu explicar porque razão o seu amigo não realizava transferências bancárias e porque não pedia tais alegados empréstimos, segundo a sua versão, por transferência bancária ou até por cheque bancário. E sempre negou que tivesse utilizado linguagem de código para solicitar fundos a Santos Silva.
Em entrevistas à TVI, após ser libertado, José Sócrates repetiu a tese dos empréstimos de Carlos Santos Silva e enfatizou de forma veemente: “Eu não aceitei ser ajudado por um empresário. Aceitei ser ajudado por um empresário com quem tenho uma relação fraternal. Não por um empresário!”
Em 2015, Sócrates dizia que não sabia quanto devia a Carlos Santos Silva mas garantia já ter pago cerca de 250 mil euros. E rejeitou que o dinheiro de Carlos Santos Silva depositado na Suíça fosse seu, a imputação que o MP lhe faz. “Conheço o engenheiro Carlos Santos Silva desde a minha juventude. Há mais de 40 anos. Ele é o meu melhor amigo fora da política. Sou amigo da mulher e da filha dele. Ele é amigo do meu pai e dos meus filhos. Há mais de 20 anos que passo as férias com Carlos Santos Silva. É absolutamente extraordinário que digam que o dinheiro é meu! Eu não sabia que o eng. Carlos Santos Silva tinha dinheiro na Suíça! Esse dinheiro não é meu. É do meu amigo Carlos Santos Silva. Ponto final!” “Esta é uma investigação que não tem moral e que quer perseguir-me”, afirmou.
Como Sócrates terá sido corrompido desde o 1.º dia em São Bento
É um dado surpreendente que reforça a importância histórica da acusação da Operação Marquês: José Sócrates terá sido corrompido desde o primeiro momento em que entrou em São Bento como chefe do Governo. Vencedor das eleições legislativas de 2005, Sócrates tomou posse como o primeiro líder do Partido Socialista (PS) a conseguir uma maioria absoluta. De acordo com o Ministério Público, terá tido a intenção desde o primeiro momento de alegadamente se deixar corromper, com a ajuda do seu amigo Carlos Santos Silva, por diversos grupos económicos — o que terá ocorrido entre 2005 e 2011.
O número de crimes está diretamente ligado aos três grupos empresariais que, segundo a acusação conhecida a 11 de outubro de 2017, terão alegadamente pago subornos a Sócrates:
- Grupo Espírito Santo
- Grupo Lena
- Grupo Vale do Lobo
Terão sido estes três grupos económicos que terão transferido um total de cerca de 24.875.00 de euros para as diversas contas bancárias que Carlos Santos Silva tinha aberto na Union des Banques Suisses (UBS) em nome de diversas sociedades offshore.
Se acrescentarmos a esse valor os cerca de 7.154.925 euros que Santos Silva terá recebido do Grupo Lena (tendo alegadamente colocado tais fundos à disposição de Sócrates) e um mínimo de 2,3 milhões de euros em numerário que o primo do ex-primeiro-ministro (José Paulo Pinto de Sousa) terá feito chegar ao ex-líder do PS, estamos a falar de um total de cerca de 34,3 milhões de euros que o Ministério Público entende que “foi disponibilizado ao arguido José Sócrates com origem na prática de crime”.
E como é que tais fundos disponibilizados ao ex-primeiro-ministro, segundo a acusação do MP que foi parcialmente validada pelo Tribunal da Relação de Lisboa a 25 de janeiro de 2024?
Como Salgado começou a enviar fundos para Santos Silva — através de Hélder Bataglia
Vamos começar pelo Grupo Espírito Santo (GES). Com o contexto de que Ricardo Salgado pretendia obter alegados favores do então primeiro-ministro José Sócrates em obstaculizar a OPA da Sonae sobre a PT em 2006, o pagamento das alegadas contrapartidas terão começado precisamente nesse ano.
Segundo a equipa de procuradores liderada por Rosário Teixeira, a primeira transferência terá tido origem no Banco Espírito Santo de Angola (BESA). Por determinação de Salgado, a conta da Escom, empresa liderada pelo também arguido Hélder Bataglia, terá transferido cerca 7,5 milhões de euros para a conta da Markwell — sociedade offshore do mesmo Bataglia —, sem deixar de incluir algumas tentativas de manobras de diversão para ocultar o circuito financeiro.
Em maio de 2006, Bataglia transferiu seis milhões de euros para a conta da Gunter Finance, uma sociedade offshore ligada ao primo de Sócrates, José Paulo Pinto de Sousa, supostamente por conta da aquisição das salinas de Benguela, mas a justificação foi desmentida nos autos por Pedro Ferreira Neto, CFO da Escom.
Para o MP, esta foi a primeira transferência. “Salgado propôs então ao arguido José Sócrates que, em troca da entrega de quantia em dinheiro, enquanto primeiro-ministro do Governo de Portugal, se opusesse na Assembleia-Geral da PT” à desblindagem dos estatutos e que era uma condição fulcral para um eventual sucesso da OPA.
E Sócrates, na tese dos procuradores, terá dado instruções à CGD (outro dos acionistas) para se opor à OPA e ao ministro Mário Lino (que representava o Governo neste dossier) para encetar conversações com a Sonae, com vista a, de acordo com o que Paulo Azevedo transmitiu no inquérito, simular uma aparente neutralidade do Governo na operação. Não chegou a ser necessário, pois a desblindagem dos estatutos não passou na Assembleia-Geral da PT.
Entra em cena o saco azul e Bataglia trama Salgado. “Não se dizia não ao dr. Salgado”
Na sequência do fracasso da OPA, Ricardo Salgado procurou, alegadamente, precipitar o fim da parceria entre a PT e a Telefónica, pelo facto de a operadora espanhola ter apoiado a Sonae. As consequências dessa orientação seriam o fim da parceria que originou a Vivo, a venda da participação da PT na Vivo e a saída dos espanhóis da estrutura acionista da PT.
O MP alega que terão sido feitos novos pagamentos para que José Sócrates utilizasse a golden share na PT de forma a condicionar a venda da participação da PT na Vivo ao reinvestimento de parte dos 7,5 mil milhões de euros pagos pelos espanhóis da Telefónica na aquisição de uma nova participação numa operadora brasileira: a Oi/Telemar.
Terá então entrado em cena a sociedade offshore Espírito Santo (ES) Enterprises, o famoso saco azul do que não fazia parte do organograma do GES, e no dia 9 de julho de 2007 transferiu sete milhões de euros para a Markwell, de Helder Bataglia.
Ainda nesse mês, a Gunter Finance — do primo de Sócrates — recebeu uma transferência da Markwell de três milhões de euros na sua conta na UBS, que o MP disse que teria como destinatário final o ex-governante.
Segundo a tese do MP, Ricardo Salgado terá acordado com Sócrates que o montante total da contrapartida a pagar, ao longo de diversos anos, poderia atingir os 15 milhões de euros.
É quando Joaquim Barroca (vice-presidente do Grupo Lena) entra nos circuitos financeiros, devido ao acordo que tinha com Carlos Santos Silva (o amigo de José Sócrates) para que este utilizasse as suas contas na UBS como ponto de passagem.
Dos 15 milhões de euros que entraram em sociedades offshore de Bataglia entre 8 de abril de 2008 e 7 de maio de 2009, cerca de 12 milhões terão chegado a duas contas de Joaquim Barroca na UBS igualmente entre abril de 2008 e maio de 2009, alegadamente por um pedido expresso de Salgado a Bataglia.
Em interrogatório na fase de inquérito — e que pode ser utilizado durante o julgamento para produzir prova —, Hélder Bataglia confirmou ao procurador Rosário Teixeira o seguinte:
“Estas operações… foram muito simples! O dr. Ricardo Salgado pediu-me para eu passar lá no Banco [na sede do BES, na Avenida da Liberdade, em Lisboa] (…) e pediu-me se eu podia fazer… tinha uns compromissos…. e tinha a pagar cerca de 12 milhões de dólares. (…) se eu podia fazer o favor… se eu conhecia o Carlos Santos Silva. Eu disse que ‘sim’. Se tinha conta na UBS… eu disse que ‘sim’. E seu podia… se eu podia fazer esses pagamentos, não é? E eu disse: “Sim, Ricardo. Se precisas, eu faço, não tenho problema nenhum. Desde que transfiras o dinheiro, eu faço esses pagamentos”, afirmou Hélder Bataglia. Que termina: “Não se dizia não ao dr. Salgado”.
O líder da ESCOM contou ainda pormenores detalhados sobre como se encontrava com Carlos Santos Silva, e este lhe dava “um papelinho” com os números das contas para onde deveria transferir os montantes pedidos por Ricardo Salgado. O testemunho de Hélder Bataglia é encarado pelo MP como um testemunho incriminatório de Ricardo Salgado e da dupla José Sócrates/Carlos Santos Silva.
https://observador.pt/programas/sim-sr-procurador/sim-sr-procurador-ricardo-se-precisas-eu-faco-desde-que-me-transfiras-o-dinheiro-eu-faco-esses-pagamentos/
Questionado sobre as transferências de Bataglia para Santos Silva, Ricardo Salgado disse ao MP: “Isso são tudo iniciativas do sr. Bataglia”.
O último grupo de transferências para José Sócrates prende-se com o negócio da venda da Vivo à Telefónica e a consequente compra de uma participação no capital social da Oi/Telemar, contando com a viabilização do Governo e um acordo para que o pagamento fosse feito por via do Grupo Lena.
O MP considerou que, para fundamentar as transferências efetuadas, Bataglia e Santos Silva recorreram a um negócio imobiliário de compra de um terreno na rua Major Kanhangulo, em Luanda, com um sinal de oito milhões de euros.
Desses oito milhões de euros, três milhões terão sido enviados pelo Grupo Lena para uma das contas de Carlos Santos Silva na UBS em janeiro de 2011, com base num suposto contrato de intermediação entre a sociedade XLM, de Santos Silva, e a Angola Investimento Imobiliário, do Grupo Lena. Já em 2013, a mesma sociedade assinou um contrato de prestação de serviços com o Grupo Lena e terá recebido 2,7 milhões de euros entre abril desse ano e setembro de 2015. Para o MP, foi outro veículo para fazer chegar pagamentos a Sócrates.
Num interrogatório perante o procurador Rosário Teixeira, que o Observador avançou em dezembro de 2017, Ricardo Salgado foi taxativo: “Nunca falei com José Sócrates sobre a história da PT sequer. E muito menos procurar entregar valores a um primeiro-ministro, portanto, subornos, direta ou indiretamente por qualquer outra forma”.
As ordens de transferência assinadas em branco por Barroca para Santos Silva
No caso da alegada corrupção ativa imputada a Joaquim Barroca, ex-vice-presidente do Grupo Lena, sobressaem os concursos de obras públicas, nomeadamente o do TGV.
Os pagamentos por parte de Barroca àquela que é encarada pelo MP como a dupla José Sócrates/Carlos Santos Silva terão sido os seguintes:
- 2 milhões e 375 mil euros transferidos entre fevereiro e junho de 2007 de uma das contas da UBS de Joaquim Barroca para as contas das sociedades offshore Giffard Finance e Pinehill Finance — ambas de Carlos Santos Silva;
- 500 mil euros transferidos em setembro de 2008 de uma conta pessoal de Joaquim Barroca para a conta da Pinehill Finance;
- 2 milhões e 954 mil euros transferidos entre novembro de 2009 e abril de 2014 a coberto de um contrato alegadamente falso estabelecido entre a XLM — Sociedade de Estudos e Projetos (de Carlos Santos Silva) e o Grupo Lena.
- Total das alegadas contrapartidas: 5.829.925 euros.
Outra das contrapartidas, de acordo com a acusação, terá sido a autorização de Joaquim Barroca para que Carlos Santos Silva utilizasse as suas contas na UBS para fazer passar dinheiro.
O próprio Barroca confessou ao procurador Rosário Teixeira nos três interrogatórios a que foi sujeito nos autos da Operação Marquês, entre 23 de abril e 22 de julho de 2015, que entregou a Carlos Santos Silva ordens de transferência em branco das três contas que possuía na UBS, acrescentando ainda que sempre que emitiu ordens de transferência dessas contas estava acompanhado do alegado testa-de-ferro de Sócrates.
https://observador.pt/programas/sim-sr-procurador/sim-sr-procurador-joaquim-barroca-grupo-lena-e-um-dinheirito-de-bataglia-na-sua-conta/
Estas contas bancárias de Joaquim Barroca foram essenciais para Carlos Santos Silva receber cerca de 22 milhões de euros com origem no Grupo Espírito Santo a propósito de alegados benefícios concedidos por José Sócrates à família liderada por Ricardo Salgado nos negócios da Portugal Telecom e ao grupo de investidores que compraram o empreendimento de Vale do Lobo com créditos da Caixa Geral de Depósitos.
As contrapartidas são ligadas pelo MP ao contrato da 1.ª fase da Parceria Público-Privada para a construção de uma ligação de alta velocidade entre o Poceirão e Caia, na fronteira com Espanha, adjudicado ao consórcio Elos, do qual fez parte o Grupo Lena.
De acordo com a acusação, José Sócrates “atuou de modo a conformar o procedimento do concurso e o clausulado do contrato de concessão de forma que veio a permitir ao referido consórcio Elos ver reconhecido o direito a uma reparação por parte do Estado, em violação da lei e com preterição dos interesses públicos”.
Neste último caso do concurso de Alta Velocidade, o MP diz que José Sócrates terá “instrumentalizado” membros do seu Governo. Assim, no primeiro trimestre de 2008, o primeiro-ministro terá mantido uma reunião com Ana Paula Vitorino, então secretária de Estado dos Transportes (que tutelava a RAVE) e atual ministra do Mar, e Carlos Fernandes, administrador da RAVE. Sócrates queria antecipar o lançamento do concurso Poceirão/Caia de julho para março, “sem adiantar qualquer explicação para tal propósito”.
O MP diz que o então líder do PS pretendia, com essa antecipação, “favorecer o Grupo Lena e o grupo de empresas a esta associadas no consórcio Elos”.
Entre as diversas alterações propostas pelo consórcio do Grupo Lena, destaca-se uma relativa às consequências que o Estado teria de assumir caso o Tribunal de Contas recusasse o visto ao contrato que a RAVE desejasse assinar. Na prática, a Elos conseguiu que o Estado assumisse o ónus de pagar cerca de 14,6 milhões de euros no caso de recusa de visto — direito que o MP considera ilegal.
Esta e outras alterações vieram a ter uma análise de um assessor jurídico do júri do concurso que atribuiu a classificação de “medíocre” à proposta da Elos.
Foi no seguimento desse parecer que, segundo o MP, José Sócrates se reuniu com o presidente do júri do concurso, Raúl Vilaça Moura, na residência oficial do primeiro-ministro. Mário Lino estava de saída do Governo como ministro das Obras Públicas, mas acompanhou igualmente a reunião.
De acordo com a acusação, e após essa reunião, “José Sócrates tomou então a decisão e fez transmitir aos responsáveis do Ministério das Obras Públicas de que, alegando a necessidade imperiosa da concretização do projeto da Rede de Alta Velocidade e do aproveitamento das linhas de financiamento comunitárias, o relatório final do júri deveria ser produzido em moldes que permitissem acomodar uma decisão política de adjudicação”.
Apesar de o relatório do júri não recomendar a aceitação das propostas de alteração do consórcio Elos, o Governo socialista veio a adjudicar o concurso com uma mera promessa do consórcio de retirar as propostas que tinham merecido críticas do júri por representarem um risco elevado para o Estado.
Diz o MP que as empresas de Carlos Santos Silva vieram a receber, por serviços que não terão sido prestados, cerca de 735 mil euros. Valor que é interpretado pelo MP como sendo uma contrapartida pela atuação de José Sócrates de alegado benefício do consórcio Elos.
Mais tarde, o Tribunal de Contas recusaria o visto ao concurso adjudicado ao consórcio Elos e este viria a pedir uma indemnização de cerca de 169 milhões de euros em sede de Tribunal Arbitral. A 5 de junho, o tribunal condenou o Estado a pagar cerca de 149 milhões de euros ao consórcio Elos.
A alegada cumplicidade entre José Sócrates e Armando Vara
O último tema que levou à imputação de um crime de corrupção a José Sócrates prende-se com um conjunto de empréstimos realizado pela Caixa Geral de Depósitos a um grupo de investidores liderados por Diogo Gaspar Ferreira e por Rui Horta e Costa para financiamento da aquisição do resort de luxo de Vale do Lobo.
Está em causa um financiamento (cerca de 256 milhões de euros) e entrada de capitais da própria Caixa Geral de Depósitos (CGD) na sociedade veículo Wolfpart (cerca de 28 milhões de euros) que ficou responsável por toda a operação. Então liderada por Carlos Santos Ferreira, que tinha Armando Vara como braço-direito, a CGD colocou cerca de 284 milhões de euros no projeto de expansão de Vale do Lobo.
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Isto quando os investidores (Helder Bataglia, Luís e Rui Horta e Costa, Pedro Ferreira Neto e Diogo Gaspar Ferreira reunidos na sociedade Turpart) entraram apenas com cerca de 6 milhões de euros de capitais próprios. As condições deste negócio, que indicavam claramente que o risco estava nas mãos do banco público, acabaram por revelar-se catastróficas para a Caixa, visto que a empresa que ficou com o resort com mais de 450 hectares numa zona do litoral algarvio deixou de pagar os diversos empréstimos contraídos junto do seu acionista desde 2009, a CGD.
Resultado: com os juros de mora, a dívida da empresa de Vale do Lobo à Caixa atingiu no final de 2016 cerca de 320,5 milhões de euros por conta de 11 operações de crédito – valor a que temos de acrescentar 37,3 milhões de euros de suprimentos realizados à Wolfpart. São 357,8 milhões de euros que a CGD tinha a receber à data de 31 de dezembro de 2016.
Qual foi a contrapartida? De acordo com o MP, José Sócrates e Armando Vara terão alegadamente dividido uma contrapartida de 2 milhões de euros.
Entre janeiro e abril de 2008, um empresário holandês chamado Jerome Van Dooren transferiu cerca de 2 milhões de euros, alegadamente a pedido de Diogo Gaspar Ferreira (igualmente acusado na Operação Marquês), para uma conta na UBS indicada por aquele gestor de Vale do Lobo, de forma a poder escolher o seu empreiteiro para a obra de construção de sua casa. A conta da UBS, sem que Van Dooren soubesse, pertencia a Joaquim Barroca.
Mais tarde, entre fevereiro e junho de 2008, os 2 milhões de euros foram repartidos entre Carlos Santos Silva (a conta da Giffard Finance recebeu um milhão de euros da conta de Barroca) e Armando Vara, ex-administrador da Caixa Geral de Depósitos (CGD).
Por todos estes indícios, o ex-primeiro-ministro José Sócrates foi acusado de um total de 31 crimes e será julgado por 22 crimes: três crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, 13 crimes de branqueamento de capitais e seis crimes de fraude fiscal qualificada.