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(A) :: 17 pontos que explicam por que razão a acusação da Operação Marquês demorou quase 8 anos a ser julgada?

17 pontos que explicam por que razão a acusação da Operação Marquês demorou quase 8 anos a ser julgada?

Um juiz de instrução polémico, um arguido com uma hiper-litigância nunca vista e uma administração da Justiça demasiado passiva. Eis a explicação para a demora da Operação Marquês.

Luís Rosa
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Rodrigo Mendes
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A uma investigação relativamente célere de quatro anos e três meses — tendo em conta a complexidade da investigação —, seguiu-se um pesadelo processual que começou com a fase de instrução criminal liderada pelo juiz Ivo Rosa, desenvolveu-se com várias decisões polémicas do próprio juiz depois da decisão instrutória — que fez com que os recursos apenas subissem para a Relação de Lisboa em 2023 — e atingiu o epílogo com as muitas dezenas de sucessivos recursos e incidentes processuais apresentados por José Sócrates. No final, os tribunais superiores só deram um ‘murro na mesa’ processual em novembro de 2024 com a aplicação do art. 670 do Código do Processo Civil que visa combater as manobras dilatórias e o abuso de direito por parte dos arguidos. E assim o início do julgamento da Operação Marquês só pôde arrancar esta quinta-feira, 3 de julho de 2025.

https://observador.pt/especiais/pt-bes-e-vale-do-lobo-como-socrates-tera-sido-corrompido-desde-o-1-o-dia/

A tramitação da Operação Marquês é a prova do que não deve acontecer — e logo num processo em que se joga o prestígio do Ministério Público e da administração da Justiça.

Afinal, quem são os responsáveis? E o que explica em concreto o intervalo de quase oito anos entre o despacho de acusação e o início do julgamento? O Observador responde em 17 perguntas e respostas.

Em que data começou o inquérito — e há quantos anos dura o processo?

A capa do primeiro volume dos autos da Operação Marquês é clara sobre o início da investigação a José Sócrates: 19 de julho de 2013. Isto é, há quase 12 anos. A fase de inquérito demorou quatro anos e três meses, tendo a acusação sido deduzida no início de outubro de 2017. A fase de instrução criminal liderada pelo juiz Ivo Rosa demorou dois anos e sete meses. E as decisões do Tribunal da Relação de Lisboa que anularam definitivamente a decisão instrutória do juiz Ivo Rosa — da qual não restou quase nada, a não ser duas condenações de Ricardo Salgado e Armando Vara em processo autónomos  — só foram dadas, respetivamente, a 25 de janeiro e a 21 de março de 2024.

https://observador.pt/especiais/relacao-de-lisboa-diz-que-ivo-rosa-nao-seguiu-o-caminho-do-dinheiro-que-leva-a-socrates/

Se a primeira decisão, que pronunciou para julgamento José Sócrates e mais 21 arguidos pela alegada prática de 119 ilícitos criminais graves, só foi executada no final de 2024, já a segunda decisão levou a uma nova fase de instrução criminal com uma nova decisão de pronúncia para julgamento a 11 de junho deste ano.

Quais são as razões que explicam a demora de um ano e meio para executar a pronúncia para julgamento?

Um ponto prévio antes de respondermos. A polémica decisão instrutória de Ivo Rosa de abril de 2021 teve como consequência que os autos da Operação Marquês se tivessem dividido em dois blocos:

  • Bloco A — O despacho de pronúncia para julgamento em quatro processos autónomos de José Sócrates e Carlos Santos Silva, do ex-banqueiro Ricardo Salgado, do ex-ministro Armando Vara e do motorista João Perna;
  • Bloco B — E o despacho de não pronúncia que levou ao arquivamento de 172 dos 189 crimes que o Ministério Público (MP) imputava a José Sócrates e mais 27 arguidos. O que está em causa na decisão de 25 de janeiro de 2024 é precisamente este Bloco B — do Bloco A já falaremos mais à frente porque está na origem de uma questão jurídica que poderia levar em teoria ao adiamento da primeira sessão de julgamento marcado para esta quinta-feira.

Isto é, a decisão da Relação de Lisboa de janeiro de 2024 decidiu pronunciar para julgamento José Sócrates e mais 21 arguidos (18 cidadãos e quatro empresas) pela prática de 118 crimes. As desembargadoras Raquel Lima, Madalena Caldeira e Micaela Rodrigues (da 9.ª Secção da Relação de Lisboa) deram assim razão parcial ao recurso interposto pelo Ministério Público e repuseram os factos essenciais da acusação original deduzida em outubro de 2017.

A decisão da Relação de Lisboa de janeiro de 2024 decidiu pronunciar para julgamento José Sócrates e mais 21 arguidos (18 cidadãos e quatro empresas) pela prática de 118 crimes. As desembargadoras Raquel Lima, Madalena Caldeira e Micaela Rodrigues (da 9.ª Secção da Relação de Lisboa) deram assim razão parcial ao recurso interposto pelo Ministério Público e repuseram os factos essenciais da acusação original deduzida em outubro de 2017.

Passando à resposta que explica o que aconteceu entre 25 de janeiro de 2024 e o dia 3 de julho de 2025 — dia em que o julgamento vai começar. Em primeiro lugar, podemos constatar um facto: não é normal que uma decisão de pronúncia para julgamento tenha demorado um ano e meio a ser executada. Porquê? Pela simples razão que uma decisão de pronúncia tomada por um tribunal de segunda instância não tem recurso possível.

A explicação para a demora começa, desde logo, num conjunto muito alargado de nulidades e inconstitucionalidades que José Sócrates e outros arguidos, como Carlos Santos Silva (o alegado testa-de-ferro do ex-primeiro-ministro), José Paulo Pinto de Sousa (primo de Sócrates), Joaquim Barroca (ex-vice-presidente do Grupo Lena) e a Lena Construções, SA, invocaram. O objetivo era, claro, travar o julgamento.

Tais nulidades e inconstitucionalidades foram todas rejeitadas pelas desembargadoras Raquel Lima, Madalena Caldeira e Micaela Rodrigues em maio de 2024.

Que argumentos foram utilizados pelos arguidos?

Vamos concentrar apenas em José Sócrates — que, de longe, é o arguido com mais litigância processual. O ex-primeiro-ministro contestou que a decisão da Relação de Lisboa fosse, de facto, uma decisão de pronúncia, argumentando que o acórdão teria de baixar ao Tribunal Central de Instrução Criminal para aí, sim, ser dada a pronúncia para julgamento.

Não só a jurisprudência é clara no que diz respeito à legalidade de um tribunal de segunda instância revogar uma decisão instrutória que arquivou parte dos autos — como fez o juiz Ivo Rosa em abril de 2021 —, como a pág. 660 do acórdão é clara sobre o que foi decidido: “Revogar a decisão recorrida [a decisão de não pronúncia do juiz Ivo Rosa] e pronunciar os arguidos infra identificados” para julgamento.

No caso de José Sócrates, o ex-primeiro-ministro foi pronunciado para julgamento por 22 crimes: três de corrupção passiva (no exercício do cargo de primeiro-ministro), 13 de branqueamento de capitais e seis de fraude fiscal.

O facto de estar escrito de forma clara na pág. 600 que se trata de uma decisão de pronúncia para julgamento não impediu José Sócrates e o seu advogado Pedro Delille de repetir inúmeras vezes o contrário em público.

Outro argumento — que voltou a ser repetido esta terça-feira na conferência de imprensa que o ex-primeiro-ministro promoveu em Bruxelas — é o famoso “erro de escrita”. O que está em causa? A forma com o crime concreto de corrupção foi imputado formalmente a Sócrates no despacho de acusação.

No texto da acusação é claro que o MP imputa, entre outros crimes, o crime de corrupção para ato ilícito a José Sócrates, mas na parte final do despacho, quando fazem a imputação formal, os procuradores escreveram corrupção para ato lícito — crime que tem uma pena significativamente mais baixa.

Ora, as desembargadoras Raquel Lima, Madalena Caldeira e Micaela Rodrigues entendem que “o MP queria imputar o cometimento do crime com a redação do atual artigo 17.º da Lei 34/87, que correspondia ao artigo 16.º da mesma Lei, mas com a redaç̧ão em vigor à data dos factos”, lê-se no acórdão de 25 de janeiro de 2024. Ou seja, o crime de corrupção para ato ilícito por corresponder a um ato contrário aos deveres do cargo.

As juízas deram mesmo o exemplo do que aconteceu com a imputação dirigida a José Sócrates e a Joaquim Barroca. “Estaríamos perante um crime de corrupção activo para acto ilícito (...) imputado (....) ao arguido Joaquim Barroca” e, por outro lado, “um crime de corrupção passiva para acto lícito” imputado a Sócrates. Depois de terem constatado que se verificou esse “lapso que decorria da simples leitura da acusação”, as desembargadoras efetuaram essa rectificação. É o famoso "erro de escrita" alegado por Sócrates.

As juízas desembargadoras deram mesmo o exemplo do que aconteceu com a imputação dirigida a José Sócrates (e a Carlos Santos Silva, por ser o seu alegado testa-de-ferro) e a Joaquim Barroca. “Estaríamos perante um crime de corrupção activo para acto ilícito (…) imputado (….) ao arguido Joaquim Barroca” e, por outro lado, “um crime de corrupção passiva para acto lícito” imputado a Sócrates e a Santos Silva.

Depois de terem constatado que se verificou esse “lapso que decorria da simples leitura da acusação”, as desembargadoras efetuaram essa rectificação. Com que base legal? As magistradas invocaram jurisprudência do próprio Tribunal da Relação de Lisboa para situações semelhantes e nas quais foram corrigidos “erros de escrita” semelhantes ao que o ocorreu no despacho de acusação.

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Houve mais nulidades invocadas por Sócrates?

Sim. Tal como repetido na conferência de imprensa em Bruxelas, Sócrates contestou a legitimidade das três magistradas da 9.ª Secção da Relação de Lisboa para tomarem a decisão que tomaram. Porquê? Porque já duas delas já tinham sido colocadas noutros tribunais superiores e nem sequer deveriam estar na Relação de Lisboa para tomar a decisão. Esta argumentação de José Sócrates levou a vários recursos e, inclusive, a um pedido de recusa de todo o coletivo — o que foi rejeitado pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Tais recursos foram sempre rejeitados por uma razão simples: uma coisa é uma magistrada se candidatar ao movimento para outro tribunal, outra coisa é a sua tomada de posse como magistrada desse mesmo tribunal.

https://observador.pt/especiais/socrates-vai-ser-mesmo-ser-julgado-duas-vezes-julgamento-de-3-de-julho-sera-adiado-8-perguntas-e-respostas-sobre-o-caso-marques/

Duas das três magistradas participaram no concurso e foram colocadas no Tribunal da Relação do Porto e outra na Relação de Guimarães — mas nunca tomaram posse. Só o fizeram depois de terem terminado o seu trabalho nos autos da Operação Marquês.

Esta situação — de um juiz se candidatar a uma transferência para outro tribunal e a mesma se tornar efetiva — é algo comum, sendo igualmente normal que os magistrados nessa situação fiquem exclusividade num determinado processo relevante e só tomem posse no seu novo tribunal após terminarem esse trabalho.

Quantos recursos Sócrates já apresentou? E quantos juízes já recusou?

Ninguém sabe ao certo porque o Conselho Superior da Magistratura não confirma oficialmente. Mas, desde que foi detido no dia 21 de novembro de 2014 no Aeroporto da Portela, em Lisboa, o ex-primeiro-ministro já apresentou mais de 50 recursos. Uma previsão que carece por defeito.

Em termos de juízes alvo de recusa — um incidente processual que leva a uma decisão de um tribunal superior, tal como pode levar a pedidos de nulidades e reclamações —, Sócrates tinha recusado 23 juízes até março de 2023. No final de 2024, tal número já tinha, no mínimo, ultrapassado os 30. Mas terão sido mais. Se, por absurdo, cada um dos cerca de 1800 juízes no ativo tiverem contacto com os seus autos, o ex-primeiro-ministro poderia apresentar 1800 incidentes de recusa. A lei permite.

Em termos de juízes alvo de recusa — que é um incidente processual e leva a uma decisão de um tribunal superior, tal como pode levar a pedidos de nulidades e reclamações —, sabemos que Sócrates tinha recusado 23 juízes até março de 2023. No final de 2024, tal número já tinha, no mínimo, ultrapassado os 30. E terá continuado a subir. Se, por absurdo, cada um dos cerca de 1800 juízes no ativo tiverem contacto com os seus autos, o ex-primeiro-ministro poderia apresentar 1800 incidentes de recusa. A lei permite.

Estes dados dão uma ideia da hiper-litigância de José Sócrates e do seu advogado Pedro Delille.

E quanto já pagou em custas judiciais?

Aqui temos de apresentar dados divididos pelas instâncias judiciais (tribunal de primeira instância, Tribunal da Relação de Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça) e pelo Tribunal Constitucional. Enquanto que nos primeiros, os arguidos só pagam taxas de justiça (ou porque apresentam requerimentos ou porque perdem recursos e são condenados a pagar taxas de justiça agravadas) no final do processo, já no TC são obrigados a pagar no momento em que as decisões transitam em julgado.

Por exemplo, fonte oficial do Tribunal Constitucional confirmou ao Observador que José Sócrates tinha pago 16.746,60 euros até dezembro de 2024 por 11 recursos e reclamações — todos rejeitados.

Fonte oficial do Tribunal Constitucional confirmou ao Observador que José Sócrates tinha pago 16.746,60 euros até dezembro de 2024 por 11 recursos e reclamações — todos rejeitados. Só três recursos tinham custado individualmente mais de 2 mil euros — praticamente o valor da sua subvenção vitalícia mensal enquanto ex-político que é de cerca de 2.400 euros brutos.

Só três recursos tinham custado individualmente mais de 2 mil euros — praticamente o valor da sua subvenção vitalícia mensal enquanto ex-político: cerca de 2.400 euros brutos. Como este é o seu único rendimento declarado, perguntamos a José Sócrates como financiou o pagamento deste montante de custas judiciais — que têm de ser pagos no momento — mas o ex-primeiro-ministro recusou-se a divulgar. “Não pretendo partilhar a minha vida privada”, foi a resposta.

Em relação ao grosso dos recursos e incidentes processuais — que são apresentados entre a primeira instância e o Supremo Tribunal de Justiça —, o valor não é conhecido oficialmente. Calcula-se que o montante total já ultrapasse os 30 mil euros.

Os juízes têm responsabilidade no atraso do processo Marquês?

Sim. É verdade que o processo penal português é profundamente burocrático — porque permite a discussão de todos os pormenores em diversas instâncias de recurso, além do excesso de formalismo e redundâncias — mas há muitos exemplos de morosidade que podem ser imputados aos magistrados judiciais na tramitação da Operação Marquês.

Vamos descrever apenas três exemplos (haveria mais para dar):

  • Os autos da Operação Marquês tinham natureza urgente mas deixaram de a ter (numa data que ninguém consegue determinar), apesar do risco de prescrição que existem nestes autos em relação aos crimes de falsificação de documento desde há vários anos — e tal como é reconhecido em vários despachos e acórdãos judiciais;
  • Durante o ano de 2022, José Sócrates começou a construir uma teia de recursos e incidentes processuais a propósito da distribuição eletrónica dos seus próprios recursos que criou um imbróglio jurídico que só terminou mais de um ano e meio depois, como o Observador contou neste trabalho em pormenor. A estratégia foi simples. O advogado Pedro Delille começava por alegar a “nulidade absoluta e insanável” da atribuição do recurso por falta de sorteio, porque entendia que a lei que obrigava à distribuição eletrónica já estava em vigor — dezenas de juízes desembargadores e conselheiros discordavam em absoluto porque a lei não tinha sido regulamentada. No mesmo requerimento, Delille avisava logo que o juiz tinha de deferir o seu requerimento, se não o fizesse apresentaria um incidente de recusa (que incluía os adjuntos que compunham o coletivo da secção onde estava o recurso). E, assim, criou uma teia de recursos que envolveu mais de 20 juízes desembargadores e conselheiros. Os magistrados deixaram-se embrulhar passivamente nesta teia e só começaram a reagir mais de um ano depois.
  • Em junho de 2025, os autos da Operação Marquês passaram a ter um novo relator na Relação de Lisboa: o desembargador Francisco Henriques. É verdade que este juiz veio a ter um papel decisivo vários meses depois — já lá vamos — mas antes poderia ter sido mais célere a decidir matérias simples. Exemplo: depois de ter rejeitado a admissão de um recurso de José Sócrates e do seu primo José Paulo Pinto de Sousa em meados de junho, o desembargador demorou três meses a admitir as reclamações apresentadas para serem decididas pelo Supremo Tribunal de Justiça. É certo que os advogados Pedro Delille e João Costa Andrade esticaram ao máximo o seu prazo e só apresentaram as suas reclamações a 11 de julho — a quatro dias do início das férias judiciais; é igualmente verdade que as férias judiciais duraram de 16 de julho a 31 de agosto, mas o desembargador só veio a admitir os recursos a 1 de outubro. Ou seja, quase três meses após as mesmas terem sido apresentadas. Se os autos fossem urgentes, poderiam ter sido decididos em férias.

O juiz Ivo Rosa tem alguma responsabilidade na morosidade da Operação Marquês?

Sim. As decisões do juiz de instrução Ivo Rosa prejudicaram a tramitação dos autos da Operação Marquês de diversas formas.

Em primeiro lugar, tomou duas decisões polémicas que têm muito a ver com a visão muito própria que este magistrado tem da lei — tão original que costuma estar nos antípodas de muitos dos seus colegas.

A primeira decisão polémica de Ivo Rosa é mesmo uma questão básica que não oferece dúvidas em termos de jurisprudência: o juiz que é recorrido (ou seja, aquele cuja decisão é alvo de recurso) tem de admitir o recurso. Mas Ivo Rosa entendeu que a regra não se aplicava a si.

A primeira decisão polémica de Ivo Rosa não oferece dúvidas em termos de jurisprudência: o juiz que é recorrido (ou seja, aquele cuja decisão é alvo de recurso) tem de admitir o recurso. Mas Ivo Rosa entendeu que a regra não se aplicava a si.

A 4 de junho de 2021, quase dois meses após ter tomado a decisão instrutória no caso Marquês, Ivo Rosa decidiu dar por encerrada a sua participação nos autos e enviou a sua pronúncia para os tribunais de julgamento sob a forma de quatro processos autónomos. O juiz de instrução entendeu, portanto, que não tinha de esperar pelo recurso do Ministério Público sobre a decisão de não pronúncia, quando lhe tinha dado 120 dias para recorrer.

A juíza Margarida Alves, que foi sorteada no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa para julgar a pronúncia de José Sócrates e de Carlos Santos Silva, fez o óbvio: declarou-se incompetente para a parte dos autos da não pronúncia.

Resultado: os autos foram devolvidos a Ivo Rosa e andaram para trás e para a frente, tendo sido suscitado um incidente de conflito de competências entre os dois juízes. Foi decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa a 23 de outubro de 2021, tendo o desembargador Trigo Mesquita, presidente da 9.ª secção criminal, dito que a juíza Margarida Alves tinha razão.

Com um recurso de José Sócrates para o Tribunal Constitucional sobre a decisão de Trigo Mesquita (rejeitado liminarmente por “falta de pressupostos processuais” para Sócrates agir), com dois processos disciplinares contra Ivo Rosa e até uma baixa do juiz por doença cardíaca grave, o recurso do Ministério Público (MP) sobre a decisão de não pronúncia só veio a ser admitido por Ivo Rosa a 1 de julho de 2022.

Contudo, o recurso do MP só veio a entrar no Tribunal da Relação de Lisboa em fevereiro de 2023. Isto é, quase dois anos depois da polémica decisão instrutória de Ivo Rosa.

E por que razão o recurso do MP demorou ainda mais sete meses a subir à Relação de Lisboa?

Porque o juiz Ivo Rosa tinha dado 120 dias ao MP para apresentar o seu recurso. E como se atrasou a admitir o recurso — por culpa própria, como descrevemos acima —, então o magistrado teve de dar mais 120 dias às defesas para se pronunciarem sobre o recurso do MP.

Por comparação, a juíza Susana Seca (que presidirá ao coletivo que julgará José Sócrates) deu 65 dias aos arguidos para apresentarem a respetiva contestação ao despacho de pronúncia da Relação de Lisboa e  a lista de testemunhas.

Mas ainda houve uma segunda decisão polémica do juiz Ivo Rosa

Tem exatamente o mesmo ponto de partida (o seu despacho de 4 de junho a declarar finda a sua participação na Operação Marquês) mas o tema é outro: os recursos do Ministério Público e das defesas de José Sócrates e de Carlos Santos Silva sobre a alteração substancial dos factos — um conceito jurídico que impede o juiz de instrução criminal de alterar a acusação do MP —, nomeadamente um prazo de 90 dias que as defesas reclamavam para poder arguir a nulidade da decisão instrutória.

Ivo Rosa não deu esse prazo e Pedro Delille avançou com um recurso que, segundo a revista Visão, ficou parado na secretaria do Tribunal Central de Instrução Criminal e não foi despachado pelo juiz de instrução.

Apesar de Ivo Rosa ter voltado a pegar nos autos da Operação Marquês para recusar tramitar os autos, esse recurso só subiu para a Relação de Lisboa a 14 de dezembro de 2022 por ordens do juiz Pedro Correia — que herdou aqueles autos de Ivo Rosa em setembro de 2022.

Com tantos recursos e incidentes processuais, qual foi o volte-face que levou à marcação do julgamento?

Aconteceu a 20 de novembro de 2024, foi protagonizado pelo desembargador Francisco Henriques e está relacionado com o art. 670 do Código de Processo Civil, que visa combater as manobras dilatórias e que também pode ser aplicado no processo penal. Para percebermos como chegamos aqui, temos de regressar ao início deste texto. No fundo, o que vamos descrever de seguida é uma espécie de metáfora sobre as manobras dilatórias apresentadas por José Sócrates nos autos da Operação Marquês.

A Relação de Lisboa pronunciou José Sócrates para julgamento pela prática de 22 crimes. Isso ocorreu a 25 de janeiro de 2024. Sócrates e outros arguidos invocaram nulidades e inconstitucionalidades, que foram rejeitadas a 2 de maio de 2024. O que fez com que o ex-primeiro-ministro tivesse contra-atacado com um novo pedido de nulidade, o qual também foi rejeitado a 24 de junho pelo desembargador Francisco Henriques. A seguir, o ex-líder do PS avançou com uma reclamação sobre essa decisão para a conferência da 3.ª Secção — a qual foi rejeitada a 9 de outubro. Mas o advogado Pedro Delille não se ficou e apresentou uma segunda reclamação para os mesmos juízes. O que fez os juízes perderem a ‘paciência processual’.

Estamos a falar de uma reclamação sobre uma decisão que rejeitou uma primeira reclamação que, por sua vez, visava uma rejeição de nulidade de um acórdão que já tinha rejeitado um primeiro pedido de nulidade do acórdão que tinha pronunciado José Sócrates para julgamento.

O advogado Pedro Delille apresentou uma segunda reclamação para os mesmos juízes. O que fez os juízes perderem a ‘paciência processual’. Estamos a falar de uma reclamação sobre uma decisão que rejeitou uma primeira reclamação que, por sua vez, visava uma rejeição de nulidade de um acórdão que já tinha rejeitado uma alegada nulidade do acórdão que pronunciou Sócrates para julgamento.

Por tudo isto, os desembargadores Francisco Henriques (relator), Margarida Ramos de Almeida e Adelina Barradas Oliveira não hesitaram em acusar José Sócrates de se encontrar a “protelar de forma manifestamente abusiva e ostensiva o trânsito do despacho de pronúncia e, consequentemente, a sua submissão a julgamento”.

Outras acusações graves, como “comportamento doloso”, “atos manifestamente dilatórios” e “uso manifestamente reprovável” e “abusivo” dos direitos e garantias de defesa inscritas na lei”, ficaram devidamente inscritos no acórdão em que se aplicou o art. 670 do Código de Processo Civil.

“Os tribunais não podem aceitar a adoção de tal comportamento processual” que visa apenas “retardar artificialmente o trânsito em julgado da decisão” de 25 de janeiro que o pronunciou para julgamento e que “há muito transitou em julgado”, lê-se no acórdão subscrito pelos desembargadores.

Quais as consequências da aplicação do 670.º do Processo Civil?

Em primeiro lugar, todos os requerimentos e recursos são tratadas num processo à parte (o chamado traslado) e têm automaticamente efeito devolutivo, não parando a marcha do processo principal — que, no caso, implica a execução da pronúncia para julgamento de José Sócrates e os outros arguidos por 118 crimes.

Para não deixar dúvidas, a 3.ª Secção da Relação de Lisboa decidiu logo em novembro que o processo seria remetido ao Juízo Central Criminal de Lisboa para início do julgamento.

O primo de José Sócrates ainda veio a ganhar uma reclamação no STJ mas a consequência foi nula para o andamento do processo. E o STJ veio a aplicar novamente o art. 670 num outro incidente de recusa de juiz — precisamente do desembargador Francisco Henriques.

O que aconteceu a seguir?

Depois de arrumadas as reclamações pendentes no Supremo, os autos baixaram à primeira instância para distribuição no Juízo Central Criminal de Lisboa. Foram sorteadas três juízas: Susana Seca (juíza presidente) Rita Seabra e Alexandra Pereira.

Susana Seca estudou o processo, marcou uma reunião com as defesas para março deste ano (na qual José Sócrates e o seu advogado não estiveram presentes, em protesto), determinou que as defesas teriam 65 dias para apresentar as suas contestações, determinou que o julgamento começaria a 3 de julho e decretou os autos como urgentes.

A juíza Susana Seca estudou o processo, marcou uma reunião com as defesas para março deste ano (na qual José Sócrates e o seu advogado não estiveram presentes, em protesto), determinou que as defesas teriam 65 dias para apresentar as suas contestações, determinou que o julgamento começaria a 3 de julho e decretou os autos como urgentes.

Ou seja, podem ser marcadas diligências de julgamento para o período de férias judiciais, para o fim-de-semana e até em horas fora do expediente dos serviços do tribunal.

Pelo meio, a juíza presidente ainda rejeitou um requerimento do Ministério Público para julgar Armando Vara e os outros arguidos do segmento de Vale do Lobo à parte (com a exceção de Sócrates) e teve de enfrentar um momento caricato.

O momento caricato foi protagonizado por Sócrates?

Desta vez, não. Foi protagonizado pelo primo José Paulo Pinto de Sousa. Com o argumento de que o termo de identidade e residência teria expirado com a decisão de não pronúncia do juiz Ivo Rosa em abril de 2021, o advogado João Costa Andrade tentou mudar a morada do seu cliente de Portugal para Angola, em Benguela. Tudo para ser notificado naquele país africano.

Pormenor relevante: o despacho de pronúncia para julgamento tem de ser notificado aos arguidos por via postal. O objetivo da defesa era óbvio: com o mais que provável atraso da notificação em Angola, o julgamento poderia ser adiado.

Mas a juíza Susana Seca determinou que o termo de identidade e residência mantinha-se válido em Portugal

Sócrates já parou de apresentar recursos?

Não. Em contagem decrescente para o arranque do julgamento, continuam a ser interpostos recursos de arguidos, nomeadamente de José Sócrates e do seu primo, José Paulo Pinto de Sousa. O antigo primeiro-ministro continua a alegar que o julgamento não pode começar.

Para Sócrates, não existe uma pronúncia para julgamento no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de janeiro de 2024 que revogou a decisão instrutória de abril de 2021 do juiz Ivo Rosa, embora a decisão das desembargadoras Raquel Lima, Micaela Rodrigues e Madalena Caldeira refira explicitamente que pronuncia os arguidos.

Quanto tempo vai demorar o julgamento?

Tendo em conta que estarão 22 arguidos em julgamento por 118 crimes, e que estão arroladas várias centenas de testemunhas, não é possível ter uma previsão exata e rigorosa.

Comparando com outros megaprocessos, o julgamento do caso BPN durou mais de seis anos — e prescreveu recentemente. Já o julgamento do caso Universo Espírito Santo — mais complexo do que a Operação Marquês — deverá demorar entre dois a três anos, tendo começado em outubro de 2024.

Para já, estão marcadas 53 sessões de julgamento, a um ritmo elevado de três sessões por semana, com início às 9h e fecho às 17h, com hora de almoço pelo meio.

Para já, estão marcadas 53 sessões de julgamento, a um ritmo elevado de três sessões por semana, com início às 9h e fecho às 17h, com hora de almoço pelo meio. A sessões que estão marcadas vão decorrer entre julho e dezembro deste ano, sendo certo que o julgamento faz um intervalo entre 15 de julho e o dia 1 de setembro devido às férias judiciais.

Assim, o julgamento do ex-primeiro-ministro José Sócrates e de outros 21 arguidos por um total de 118 crimes económico-financeiros vai realizar-se nas seguintes datas:

Julho — 3, 8, 9, 10 e 15;
Setembro — 2, 3, 4, 9, 10, 11, 16, 17, 18, 23, 24, 25, 30;
Outubro — 1, 2, 7, 8, 9, 14, 15, 16, 21, 22, 23, 28, 29, 30;
Novembro — 4, 5, 6, 11, 12, 13, 18, 19, 20, 25, 26, 27;
Dezembro — 2, 3, 4, 9, 10, 11, 16, 17, 18;

Apesar do processo ter natureza urgente, a juíza Susana Secca optou por não marcar sessões durante as férias judiciais. Mas pode fazê-lo nas próximas férias judiciais durante o Natal ou a Páscoa, por exemplo.

O que poderá acontecer, se Sócrates não estiver presente no primeiro dia do julgamento?

Essa era uma possibilidade que se colocou a partir do momento em que José Sócrates declarou publicamente que não reconhecia legitimidade ao tribunal de julgamento.

Contudo, Sócrates afirmou em conferência de imprensa esta terça-feira em Bruxelas que estará presente na primeira sessão marcada para esta quinta-feira.

E se não estiver? A mera discordância sobre a realização do julgamento não deverá servir como explicação para o coletivo de juízas, que aí tem várias opções:

  • ou adia a sessão de julgamento e procura forçar a presença do ex-governante em tribunal;
    ou prossegue a sessão, identificando os restantes arguidos;
  • em ambos os casos, a juíza presidente Susana Seca tem sempre a opção de determinar a detenção de Sócrates por parte da polícia, de forma a que o arguido possa estar presente no tribunal para ser identificado.