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Reconstituição. Exames normais e um parto difícil: o percurso do caso da grávida que perdeu o bebé após ir a cinco hospitais

E.C, de 37 anos, passou por 5 hospitais. Exames nunca revelaram problemas. Tudo se complicou no parto, devido à baixa oxigenação do bebé. Direção Executiva SNS não detetou qualquer falha nos cuidados.

Tiago Caeiro
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Ana Moreira
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O caso da mulher de 37 anos que perdeu o bebé depois de ter dado entrada nas urgências de cinco hospitais, com queixas relacionadas com a gravidez, tem feito aumentar a pressão sobre a ministra da Saúde devido às dificuldades recorrentes de resposta do SNS na área obstétrica. O caso está já a ser acompanhado pela Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) e a ser avaliado pelos cinco hospitais pelos quais a grávida passou ao longo de quase duas semanas. Numa avaliação preliminar, a Direção Executiva do SNS concluiu que não houve falhas no percurso da grávida pelo SNS.

E.C. começou por ser encaminhada pela Linha SNS Grávida para o Hospital de Setúbal. A seguir, foi observada no Hospital do Barreiro. Ainda acabou por seguir para o Garcia de Orta e, depois, para o Hospital de Cascais. Tinham passado 12 dias desde as primeiras queixas e, nesse momento, ainda com dores, recusava-se a voltar para casa. Acabou transferida para o Hospital de Santa Maria: e nesse percurso, de hospital em hospital, percorreu mais de 200 quilómetros. As unidades hospitalares em causa (da zona de Lisboa e da Península de Setúbal) garantem que os exames feitos pela grávida — as CTG — não revelaram alterações e que a mulher não tinha critérios para internamento.

O desfecho fatal terá tido apenas origem no parto, uma vez que o bebé começou a revelar sinais de fraca oxigenação depois da indução do parto, um problema ao qual se juntou um outro: um hematoma no útero da grávida, que atrasou a extração do feto via cesariana, levando à sua morte. Ao Observador, o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal diz que esta condição é “anómala, incomum e de muito mau prognóstico” tanto para as mães como para os bebés e que pode levar à morte do feto.

Já esta terça-feira, a Direção Executiva do SNS fez saber que, na avaliação preliminar do percurso da grávida, não foi detetada qualquer desconformidade quer na referenciação, acesso aos cuidados, prontidão da assistência ou cuidados clínicos prestados.

https://observador.pt/2025/06/30/igas-acompanha-avaliacao-dos-hospitais-que-atenderam-gravida-que-perdeu-bebe/

Direção Executiva do SNS diz que foram garantidos cuidados adequados “em todos os momentos”

“Da análise efetuada, e sem prejuízo das auditorias internas em curso nas Unidades, apurou-se que, em todos os momentos, terá sido garantido o acesso aos cuidados de saúde dentro dos parâmetros assistenciais definidos para o atendimento, e que a utente terá sido devidamente referenciada para os serviços de urgência”, referiu a Direção Executiva do SNS numa primeira reação ao caso.

“Apurou-se igualmente que, em todas as Unidades onde foi observada, a utente terá sido avaliada de forma atempada por profissionais de saúde qualificados, submetida aos exames e avaliações considerados necessários, tendo recebido as orientações consideradas adequadas”, garantiu a entidade liderada por Álvaro Almeida, acrescentando que “a resposta prestada revelou-se, assim, congruente com os protocolos de referenciação e de acesso em vigor, tendo sido assegurada a continuidade assistencial ao longo de todo o percurso da utente no SNS”.

É precisamente esse percurso, que abarca cinco hospitais ao longo de 13 dias, que o Observador reconstitui.

  • Dia 10 de junho — Hospital de Setúbal

Perto das 40 semanas de gestação, a grávida — identificada pelo Correio da Manhã (que revelou o caso) apenas pelas siglas E.C. — queixava-se de dores e de peso abdominal. Depois de um contacto para a linha SNS Grávida, foi encaminhada para a urgência de Obstetrícia do Hospital de São Bernardo, em Setúbal. Este não era contudo o seu hospital de referência. E.C, que reside na zona da Amora, deveria ter sido encaminhada para o Hospital Garcia de Orta, em Almada. No entanto, a urgência de Obstetrícia estava fechada no feriado do Dia de Portugal, um problema que se tem vindo a agudizar por causa da falta de especialistas para preencher as escalas.

Com a urgência do Hospital do Barreiro indisponível, E.C. acabou por ser encaminhada para o Hospital de São Bernardo, em Setúbal. Aí, realizou uma cardiotocografia (CTG), um exame muito comum e que serve para medir a frequência cardíaca do feto e a as contrações do útero, contou a própria. Ao Observador, a ULS da Arrábida (que integra o Hospital de Setúbal) esclarece que a grávida “foi devidamente avaliada e realizou os exames habituais, que se revelaram dentro dos parâmetros normais para o tempo de gestação”.

https://observador.pt/especiais/hospital-garcia-de-orta-perde-nove-obstetras-em-poucos-meses-cuidados-as-gravidas-e-servico-de-urgencia-estao-em-risco/

“Teve alta às 02h40, após ter sido esclarecida sobre os sinais de alerta associados ao pré-parto”, adianta a ULS.

  • Dia 16 de junho – Hospital do Barreiro

Quase uma semana depois, E.C. entrou de novo em contacto para a linha SNS Grávida, que a encaminhou para o Hospital de Nossa Senhora do Rosário, no Barreiro. A grávida, de 37 anos, foi avaliada na urgência de Obstetrícia, e terá realizado novo CTG, que voltou a não demonstrar quaisquer alterações, segundo o relato da própria ao Correio da Manhã.

  • Dia 19 de junho – Hospital Garcia de Orta

Três dias depois, mantinham-se as mesmas queixas. Pela primeira vez, a linha SNS Grávida encaminhou E.C. para o Hospital Garcia de Orta, em Almada. Por esta altura, já a gravidez tinha “40 semanas e 3 dias”, confirmou ao Observador a ULS Almada/Seixal, que integra esta unidade hospitalar. O procedimento foi o mesmo: E.C. foi submetida a novo CTG, “sem registo de alterações patológicas”.

É aqui que surge a primeira contradição entre a versão da grávida e a dos hospitais por onde passou. Ao Correio da Manhã, E.C. garante que só não ficou internada porque não havia vaga de internamento. No entanto, a ULS sublinha que não “apresentava critérios clínicos para internamento”.

  • Dia 21 de junho – Hospital de Cascais

Dois dias depois, num sábado, e com os hospitais da Península de Setúbal sem capacidade de receberem a grávida (entre urgências encerradas e condicionadas), a solução encontrada pela linha SNS24 foi encaminhar E.C. para o Hospital de Cascais, a 42 quilómetros da Amora, onde reside. Segundo a grávida, foi-lhe transmitido que não havia vaga disponível para ficar internada no serviço de Obstetrícia daquela unidade hospital. Contactado pelo Observador, o Hospital de Cascais recusou pronunciar-se sobre o caso.

No entanto, fonte hospitalar garante que E.C. foi submetida a uma CTG (a quarta no espaço de 11 dias), que voltou a não revelar qualquer sinal de alarme com os sinais vitais do feto. “Dessa forma, não reunia critérios para internamento porque não estava numa situação emergente”, garante a mesma fonte, acrescentando que a grávida insistiu em ser reavaliada e recusou-se a voltar para casa, na margem sul do Tejo. O Hospital de Cascais acabou por reencaminhar E.C. para uma unidade de fim de linha. Neste caso, o Hospital de Santa Maria.

  • Dias 21/22 de junho – Hospital de Santa Maria

Já em Lisboa, e estando a gestação já a chegar às 41 semanas, a equipa obstétrica do maior hospital do país decidiu induzir o parto, sem que nada fizesse prever um desfecho trágico — como o que acabou por se verificar. “Foi proposta à senhora uma indução do trabalho de parto, devido à idade gestacional. A indução foi iniciada no mesmo dia e o trabalho de parto decorreu sem intercorrências de relevo“, refere a ULS de Santa Maria em resposta ao Observador, acrescentando que “as ecografias realizadas durante a gravidez indicavam um feto com crescimento normal”.

Logo à entrada na urgência de Obstetrícia, foi feito uma nova CTG, com resultado “normal”, à semelhança das anteriores. No momento do parto, já no dia 22 de junho, tudo se começou a complicar. O hospital explica que “foi tentado um parto instrumentado [que passa pela utilização de fórceps ou ventosas], porque o feto não descia espontaneamente e apresentava desacelerações da frequência cardíaca”. No entanto, as tentativas de retirar o bebé não foram bem sucedidas. Com o feto numa situação de fraca oxigenação, a equipa obstétrica decidiu então avançar para a realização de uma cesariana, que também decorreu com complicações.

“Durante a cesariana, foi constatada a existência de um hematoma grande do ligamento largo do útero, o qual dificultou a incisão no útero e atrasou substancialmente a extração do feto”, admite a ULS de Santa Maria. O recém-nascido pesava 4,525g e “mostrava sinais de vida”, garante o hospital, “mas não resistiu ao episódio de baixa oxigenação sofrido nos momentos que antecederam o nascimento”.

O presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal, Nuno Clode, explica que um hematoma do ligamento largo do útero é uma condição “anómola, incomum e de mau prognóstico”, e que pode “implicar uma rutura uterina”.

“Quem operou deve ter ficado completamente confuso, quando, ao fazer a cesariana, se deparou com isso”, diz o especialista, sublinhando que essa condição clínica — o hematoma — terá dificultado o corte do útero e atrasado a conclusão do parto no caso de E.C.. Em poucos minutos, diz, o feto pode ficar com baixos níveis de oxigenação, o que pode levar à morte.

A grávida que perdeu o bebé em Santa Maria a 22 de junho disse ao Correio da Manhã que vai aguardar pelo resultado da autópsia, que deverá demorar entre duas a três semanas, para decidir se avança com uma queixa.

https://observador.pt/2025/07/01/caso-de-gravida-que-perdeu-bebe-ministra-da-saude-diz-que-assume-responsabilidades-resolvendo-problemas-e-rejeita-demissao/

O caso veio fragilizar ainda mais a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, que já tinha sido alvo de críticas, há poucos dias, motivadas pelo caso do homem de 53 anos que morreu durante a greve do INEM, em 2024. A propósito da grávida que passou por cinco hospitais antes de perder o bebé, a ministra diz que assume a responsabilidade resolvendo os problemas, e não demitindo-se, e lembrou que a Direção Executiva do SNS já estava a acompanhar a situação.

“A Direção Executiva está, com os hospitais que receberam esta senhora — ela foi vista em vários hospitais —, a fazer uma avaliação cuidada e auditorias internas em cada um dos hospitais”, disse a ministra, acrescentando: “Temos que aguardar de uma maneira serena os resultados, que vão ser rápidos, para perceber o que se passou efetivamente.”

Santa Maria lembra que nem todos os casos têm “desfecho positivo”. Mortalidade infantil está em crescendo

Logo na segunda-feira, apenas um dia depois de o caso ter sido tornado público, a IGAS anunciou que vai acompanhar a avaliação dos cinco hospitais envolvidos na assistência prestada a esta grávida. No entanto, e para já, a entidade liderada por Carlos Carapeto decidiu não instaurar uma “ação inspetiva” ao caso, o que pode indicar a falta de indícios de má prática ou falha de procedimentos por parte do SNS.

https://observador.pt/2025/05/12/mortalidade-infantil-no-valor-mais-alto-desde-2018-gravidezes-mal-vigiadas-urgencias-fechadas-e-desinvestimento-podem-ser-explicacao/

A ULS de Santa Maria lembra ainda que, “embora os progressos do conhecimento científico nas últimas décadas tenham levado a uma redução grande dos desfechos adversos relacionados com o parto, não é ainda possível garantir que todas as grávidas e todos os bebés tenham um desfecho positivo” e que “continuam a existir situações em que a rapidez e a imprevisibilidade da evolução clínica não permitem uma intervenção atempada”. A ULS de Santa Maria expressa ainda o seu “mais sentido pesar ao casal e seus familiares nesta hora de profunda tristeza”.

Depois de ter estabilizado nos últimos anos, a taxa de mortalidade infantil registada em Portugal aumentou 20% no ano passado, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE). Em 2024, morreram três bebés com menos de um ano por cada mil nascimentos, o que se traduziu em 252 óbitos nesta faixa etária. A Ordem dos Médicos e os neonatologistas admitem que as gravidezes mal vigiadas, urgências fechadas e desinvestimento podem explicar esta evolução. No ano passado, foi precisamente a Península de Setúbal — onde E.C. foi seguida — a região que registou uma taxa de mortalidade infantil mais elevada, de 4,9 mortes por mil nascimentos.

[A polícia é chamada a uma casa após uma queixa por ruído. Quando chegam, os agentes encontram uma festa de aniversário de arromba. Mas o aniversariante, José Valbom, desapareceu. “O Zé faz 25” é o primeiro podcast de ficção do Observador, co-produzido pela Coyote Vadio e com as vozes de Tiago Teotónio Pereira, Sara Matos, Madalena Almeida, Cristovão Campos, Vicente Wallenstein, Beatriz Godinho, José Raposo e Carla Maciel. Pode ouvir o 7.º episódio no site do Observador, na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E o primeiro episódio aqui, o segundo aqui, o terceiro aqui, o quarto aqui, o quinto aqui e o sexto aqui]