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“Comboio do Ártico”: um navio norueguês perdido entre o gelo e o inimigo na II Guerra Mundial

O filme norueguês "Comboio do Ártico", de Henrik Martin Dahlsbakken, passa-se na II Guerra Mundial, num cargueiro isolado após a dispersão de um comboio naval. Eurico de Barros dá-lhe três estrelas.

Eurico de Barros
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A Noruega tem apenas 5,5 milhões de habitantes, mas o seu cinema está a ter uma expressão e uma divulgação internacional de fazer inveja a países bem maiores. Joachim Trier (Ensurdecedor, A Pior Pessoa do Mundo) ganhou o Grande Prémio do Festival de Cannes de 2024 com Sentimental Value, e por trás dele alinham-se filmes tão variados nos géneros, temas e registos como Munch, de Henrik Martin Dahlsbakken, Loveable, de Lilja Ingolfsdottir, Dreams (Sex Love), de Dag Johan Haugerud, Handling the Undead, de Thea Hvistendahl, ou Quisling: The Final Days, de Erik Poppe.

Esta forte presença cinematográfica da Noruega também se tem sentido no streaming, com títulos como Narvik, de Erik Skoldbjaerg, passado na II Guerra Mundial, e Marinheiro de Guerra, de Gunnar Vikene, igualmente ambientado neste conflito, uma série que teve versão para cinema e é a produção norueguesa mais cara de sempre (estão ambas disponíveis na Netflix). E é na II Guerra Mundial que decorre a ação de Comboio do Ártico, de Henrik Martin Dahlsbakken, dos mesmos produtores que nos deram, nos últimos anos, uma curiosa trilogia de filmes-catástrofe: Bolgen-Alerta Tsunami (2015), O Terramoto (2018) e Mar do Norte (2021).

[Veja o “trailer” de “Comboio do Ártico”:]

https://www.youtube.com/watch?v=4okZ0lJn3HE

Tal como Marinheiro de Guerra, Comboio do Ártico passa-se em 1942, a bordo de um navio mercante norueguês incluído num dos comboios que, partindo de portos no Reino Unido, na Islândia ou nos EUA, e com escolta militar para os defender dos ataques dos navios, submarinos e aviões inimigos, faziam as perigosas rotas do Atlântico Norte ou do Ártico, transportando mercadorias e material de guerra para a URSS, então a braços com a invasão alemã. Foi uma ajuda que se revelou vital para a vitória soviética sobre as forças invasoras, e que só bastante mais tarde, e muito a contragosto, foi reconhecida pelos russos.

Este Comboio do Ártico é reminiscente de velhos filmes como San Demetrio, de Charles Frend e Robert Hamer (1943), ou Comboio para Leste, de Lloyd Bacon, Byron Haskin e Raoul Walsh (1943), com Humphrey Bogart no papel principal, mas sem a carga de propaganda que estes apresentavam. Apesar de ter um par de sequências de combate, Comboio do Ártico é mais um filme de suspense do que de guerra. Depois do comboio a que pertence ter sido atacado pelos alemães, os barcos recebem ordem para dispersar, deixando cada um a desenvencilhar-se como pode, e escolher entre continuar a rumar ao seu destino, o porto de Murmansk, ou regressar a onde veio, na Islândia.

[Veja uma entrevista com o realizador Henrik Martin Dahlsbakken:]

https://www.youtube.com/watch?v=Yj40v7FHKbo

Skar, o comandante, é um homem rigoroso, disciplinado e corajoso, e vai continuar na rota definida. As reações a bordo são variadas, os obstáculos começam a aparecer (o barco vai para águas com minas) e as dúvidas e os conflitos também. Mas quando Skar é ferido num ataque aéreo e fica incapacitado para comandar, é substituído pelo imediato, Mork, um dos poucos sobreviventes de um outro barco torpedeado, o que o deixou traumatizado, e que reverte as ordens daquele. O cargueiro segue então para águas geladas, onde, em princípio, os submarinos alemães não conseguem entrar. Mas as coisas não são assim tão lineares, e há tripulantes que se opõem a esta decisão, caso da única (e muito improvável) mulher a bordo, a radiotelegrafista.

[Veja uma sequência do filme:]

https://www.youtube.com/watch?v=bW045TktkP4

Embora sem ter um orçamento que lhe permita realçar e explorar a espectacularidade da ação bélica (a pouca que há, envolvendo um artilheiro sueco com nervos de aço e boa pontaria, e dois persistentes Heinkel inimigos, é convincente dos pontos de vista militar e cinematográfico), Henrik Martin Dahlsbakken é suficientemente competente na gestão emocional e psicológica das empatias e antipatias, e dos atritos e tensões entre as várias personagens, sem precisar de eleger um “herói” e um “vilão”, e recria com realismo a vida desconfortável, promíscua e ingrata  a bordo de um barco como o da fita (um transportador de carvão construído em 1911, que esteve nas duas guerras mundiais e foi preservado), no meio de um conflito com as proporções deste.

Comboio do Ártico merece assim, tal como o seu citado congénere Marinheiro de Guerra, um lugar na lista dos bons filmes de ação naval passados durante a I e a II Guerra Mundial. E é mais uma interessante cartada jogada pela Noruega no mercado do cinema internacional.