1 O verão. Ah o verão. Tão mais que uma estação do ano… Anos após ano, a mesma espera, feita da mesma intacta e inteira expectativa. Como quem espera “por uma outra vida” dizia Ruy Belo e todos anos eu preciso de o lembrar aqui pela minha absoluta, imutável, gloriosa devoção ao verão.E porque desde sempre “pertenço” muito intimamente á poesia de Ruy Belo. Duas devoções maiores. O poeta também amava este Oeste onde costumo escrevinhar estes e outros desabafos inocentes, amando as suas teimosas neblinas, o cheiro a maresia, a espuma enraivecida das ondas, as praias caprichosas. Como a Consolação que nos pode consolar, ou a de S. Bernardino, que protege dos perigos. Ruy Belo amava este Oeste e os seus dias tão próprios. Conheciam-se. Celebravam-se mutuamente. Aqueles dias onde se nos cruzamos com alguém “daqui”, a quem podemos ouvir dizer com desarmante certeza que “hoje está a querer cacimbar”. O Oeste é isto: os dias a quererem resolutamente “cacimbar”, destoando com galhardia de outros lugares onde há sol, mar, calor, dias longos, noites doces. Coisas do verão, numa palavra. Mas aqui, aqui “cacimba-se”.
Ruy Belo não se importava . O poeta necessitava de fazer sua esta geografia singular mesmo que por vezes, muitas vezes, ela tapasse com o seu véu, o esplendor luminoso da “única estação”.
Acompanho o poeta no seu entendimento do que pode ser um verão assim. Tenho outros verões, é verdade, e também os procuro, mas é este que impera. Ter ou não ter uma alma Atlântica que nos traz e leva, talvez seja essa a melhor explicação para a devoção. Mas só quem procura o Atlântico – sabendo porque o prefere ao caldo azul do Mediterrâneo ou ao verde do Índico – pode perceber o que é uma alma Atlântica.
2 O verão além de se trazer a si mesmo como o mais grato dos dons, traz consigo os Festivais de Música. Junho e Julho, meses musicais. No norte e no sul, nas ilhas mais perto ou até nas mais longínquas, são as notas musicais que como o ondulado das ondas do mar, embalam os andamentos do verão. Tenho um fraco muito forte pelo Festival dos Capuchos: fica num maravilhoso convento guardado pelos seus soldados ciprestes olhando o rio cá em baixo e ano após ano acolhe um festival de alta qualidade dirigido também maravilhosamente pelo músico Filipe Pinto Ribeiro. Foi lá que há dias “saboreei” uma “Truta” pescada por Schubert nas águas mais profundas da sua celestial inspiração que nos foi servida pelo Schostakovich Ensemble, onde ao piano se sentava o próprio e magnífico Filipe Pinto Ribeiro.
Um memorável momento que ilusoriamente nos faz acreditar na redenção de tudo. E por isso é breve e por isso é ilusório. Mas aos Capuchos, há que voltar sempre. Chegam os dois ao mesmo tempo, o verão e o festival.
E tenho mais dois gostos especiais mas recomendo-os, não os quero apenas meus.
O Festival de Sintra dirigido desde há dois anos com engenho e muita arte por Martim Sousa Tavares. Ambos se confundem: quem lá vai percebe de imediato que “este” festival é um produto da singularidade com que o Martim sente, vive, pratica e divulga a musica. Hélas já terminou, voltará para o ano e a esta hora já o Martim deve ter chegado a Paris onde foi de carro com a sua mulher mostrar coisas belas à sua filha que acabou de nascer ainda não há três meses. Um outro baptismo para a Helena.
E claro, há a SIPO, em Óbidos. A Semana Internacional de Piano do Oeste .já com a legitimidade de alguns anos por aquelas paragens. Uma legitimidade esteticamente cuidada que faz boa parceria com o cenário natural: as inaugurações sempre precedidas de uma exposição de artes plásticas – este ano, a 4 de Julho, é a vez de Maria Leal da Costa; as indispensáveis “masterclasses” e os seus fecundos diálogos mestre/aluno diante de um teclado pianístico; e as noites abertas ao público, ouvindo os músicos que durante o dia ensinaram aos seus alunos os segredos do bem executar, ensinarem-nos agora a nós a ouvi-los…E ah que saudade infinita do Paul Badura Skoda e dos memoráveis serões que nos proporcionou, sentado ao piano numa sala intramuralhas da Rua Direita.
Um regalo para habitantes, passantes e visitantes. E vizinhos, como nós. A vila branca com sardinheiras terá sempre esta divida de gratidão para com a pianista Manuela Gouveia fundadora da SIPO.
É que a sua perseverança na continuidade da SIPO – concertos e masterclasses – têm atravessado todos os ventos e todas as marés deste Oeste.
3 Tomo sempre boa nota dos meus colegas destas e doutras “páginas” pela elaboração de listas de livros e depois pela sua “oferta” para que nos cultivemos ou entretivemos na “única estação”. A ideia, é indiscutivelmente boa e útil mas há uma qualquer relutância em mim em “assinar” a ideia. Os livros são de todas as estações, um carrossel que gira toda a roda do ano, vai girando, vamos lendo. Ignoro se algum estudo, estatística, números de vendas, etc., tenha alguma vez provado que “se lê mais no verão”. Talvez, pode ser. Por mim ofereço-lhes Ruy Belo. Escreveu muito e como (quase?) ninguém. Evoquei-o acima, deixo-o convosco agora. Deixo-o aqui, num esplendoroso dia de verão, pelo qual esperei — como pelo de ontem, como pelo de amanhã – como por outra vida. Como faria o poeta. Vão ter com ele a “Todos os Poemas” (Assírio e Alvim”) o livro de todos os livros de Ruy Belo, para todas estações e não só para a “única”. Apesar de ele e eu sabermos que só há uma.