Foi para meses como junho que se inventou o teletrabalho: imaginem estar às 7 ou 8 da manhã a apanhar dois autocarros e duas linhas de metro, rodeados de milhares de pessoas, todas a suar logo de manhã porque logo de manhã o mercúrio resolveu ter febre e chegar perto dos 40 graus. Ninguém merece esse inferno – o suor é necessário, mas só o nosso, ninguém quer levar com o dos outros.
Junho foi a piada cruel que os deuses criaram para os que só podem ter férias em agosto – enfiados na cidade, a ter de trabalhar enquanto as temperaturas sobem e os espertos que puderam pôr férias estão na praia, um tipo pergunta-se se fez as opções certas na vida – pelo menos no que toca ao calendário de folgas.
E no entanto, a vida prossegue: há festivais de verão, a indústria lança os singles que espera que se tornem virais, bandas põem as fichas todas num álbum que acreditam que vai explodir, enquanto outros nomes menos conhecidos produzem música menos fácil para as rádios mas excitante para os ouvidos cansados de escutar sempre a mesma cantiga.
As escolhas dos discos de junho refletem isso: nomes grandes, futuras divas e gente que faz música esquisita – como uma salada de frutas que por entre as laranjas e as mangas vai buscar texturas que desconhecemos. Tudo para toda a gente ficar contente.
“NEVER ENOUGH”
Turnstile
Qualquer pessoa que tenha estado no Primavera Sound do Porto sabe que com muita facilidade os Turnstile engatam a quinta, abrem as comportas, dão um coice de mula: na esquina de 12 compassos está uma descarga elétrica à espera de acontecer e talvez seja essa capacidade de libertar quantidades absurdas de energia que os tornou tremendamente populares numa era em que as bandas de guitarras parecem menos populares que nunca. No princípio, sabemos, era o hardcore – mas o hardcore dos Turnstile nunca teve aquela característica de ódio do hardcore original (que normalmente odiava nazis, fascistas ou o sistema ou tudo ao mesmo tempo); ao hardcore original ia buscar a intensidade e a energia, o que os levou a encher arenas, ao ponto de um novo disco (NEVER ENOUGH, também o nome da canção de abertura) ser um acontecimento.
https://open.spotify.com/intl-pt/album/52yD51X7yDinwlg6tbCtpP?si=vTNa0HB0TsKQXNq6kBJoMg
Isto já não é hardcore – há teclados atmosféricos antes de as guitarras explodirem em NEVER ENOUGH, a canção – e o conteúdo é menos político que pessoal; o ponto de vista é quase sempre uma espécie de balanço e contas do que significa ser adulto: “I fall”, canta-se no refrão de SEEIN’ STARS, antes de um solo de rock clássico. Eles não têm receio de soar pop (I CARE) e pouco depois disparar um riff pesadíssimo que soa a um elefante a dar marradas nas paredes de nossa casa (LOOK OUT FOR ME). Um amigo partiu um par de costelas no mosh durante o concerto destes moços – e isto é um elogio.
“Addison”
Addison Rae
A pop tem a obrigação de, a cada verão, oferecer-nos uma nova estrela e um single omnipresente – faz parte da sua natureza e do contrato social que estabelecemos com a cultura popular, senão que raio discutiríamos no verão? O ano passado houve Espresso de Sabrina Carpenter, este temos Diet Pepsi, uma balada r’n’b sensual de Addison Rae – que procura, com o novo disco, posicionar-se mais ou menos naquele panteão que já foi de Madonna ou de Britney – a mulher que nos traz refrões que toda a gente canta. E toda a gente podia cantar essa pequena maravilha que é Money is everything; ou Aquamarine, que já vai quase em 60 milhões de streamings no Spotify e lembra Madonna por todos os lados.
https://open.spotify.com/intl-pt/album/2ffVa2UhHUDwMHnr685zJ4?si=Dpmqam5sRqeE4qFu6ZcRIw
Como outras estrelas, Addison tornou-se conhecida inicialmente no TikTok – mas o salto para este nível de competição não é simples: o que aqui temos é uma linha de montagem de beats dançáveis e melodias por vezes memoráveis que só está ao alcance daquelas em quem a indústria aposta, em que a indústria acredita ter potencial explosivo. Claro que o que os senhores dos fatos cinzentos projetam no seu Excel não vale de nada se não existirem boas canções – e felizmente elas estão por todo o lado: Headphones on é alto malhão que, aposto, rodará em todos os clubes este verão, enquanto Fame is a gun usa desavergonhadamente um beat 4 por 4 antes de se lançar a um refrão com chances de se tornar ubíquo. Muito bem, sra pop, a sua tarefa está feita, já temos nova diva para o verão.
“A Tropical Entropy”
Nick León
Qualquer motivo é bom se servir de inspiração e no caso de Nick León essa vem de Broward County, um sopé húmido ao norte de Miami, onde ele cresceu e criou A Tropical Entropy, disco estranho e sensual, onde a eletrónica convive com a latinidade, como demonstrado em Ghost Orchid (o segundo tema do álbum): a mais estranha das batidas latinas (uma espécie de não-reggaeton) e, por cima, a voz de Ela Minus, música para passar num clube onde o êxtase é surdo e interior. (Conseguimos imaginar alguém a dançar sozinho num motel, ao som de A Tropical Entropy, enquanto gotas de humidade condensadas escorrem do espelho do quarto de motel).
https://open.spotify.com/intl-pt/album/2nzRzw1h5j5Kr6QTjlR3es?si=wNx_fI9ZSo2v3K5Zf6CFDQ
Nesta Miami tudo vibra e ameaça ruir. Cada batida é uma chicotada de calor, um pressentimento ritmado, entre o que, segundo leio, é o dembow e o tribal guarachero, mas sempre com os olhos cansados de quem já não quer mais digressões, nem noite, nem clubes – na espantosa Millenium Freak há de novo um anti-reggaeton, como se a maquininha de produzir beats tivesse avariado, o que torna tudo muito estranho e estranhamente apelativo. O que faz sentido se tivermos em conta que Nick diz que está numa fase “anti-drums”; mas depois há sempre um momento em que os enfia nos temas, como se abrisse as comportas e a água saísse em ondas brutais. Miami tem praias e paz mas também clubes e techno e drogas e assassinatos e A Tropical Entropy salta entre géneros como a própria cidade salta da praia para o clube, como se Miami fosse um erro belo e todos soubessem que isto vai acabar e no fim todos se encontram não no clube mas na praia.
“Virgin”
Lorde
Se bem entendi o que tem sido escrito acerca de Virgin, o primeiro disco de Lorde em quatro anos, é que este é um regresso aos malhões a que outrora ela nos habituou, uma celebração de uma espécie de renascimento pessoal, não isento de dor – aparentemente ela regressou a Nova Iorque, separou-se, leu muito, teve problemas com desordens alimentares e passou a aceitar que o seu género é mais fluído do que pensava. É nesse sentido de redescoberta que o título Virgin deve ser entendido – não no sexual, já que Clearblue começa com ela a urinar para cima de um teste de gravidez e GRWM abre com Lorde a falar de (se não me enganei) limpar esperma do peito.
https://open.spotify.com/intl-pt/album/28bHj2enHkHVFLwuWmkwlQ?si=ODGMJe6XTgSHsKHMT_CQLQ
Mas não é para saber das aventuras dela que aqui estamos, estamos aqui pelos malhões e eles existem mesmo: Broken glass é uma faixa monstruosa, movida a um batidão pouco subtil mas muito eficaz, e tolhas de sintetizadores, que estão por todo o lado: no refrão de Hammer, por toda a What was that, tema que cresce de repente para um bom refrão. Shapeshifter começa com um break esquelético, que recorda drum’n’bass, antes de ser adocicada pelas melodias e por um inesperado violoncelo; as batidas também dominam If she could see me now, que abre para um refrão solar – e é isto, este tipo de subida e melodia luminosa, que nos traz aqui e nos faz regressar.
“Lotus”
Little Simz
Durante três anos Little Simz encetou uma colaboração com o seu amigo e produtor Inflo que lhe valeu os três melhores discos da carreira (Grey Area, 2019, Sometimes I Might Be Introvert, 2021 e No Thank You, 2022) além de uma data de prémios, tornando-a nome maior do rap em todo o mundo. Ao mesmo tempo colaborou com os SAULT, o misterioso projeto que Inflo lidera, com a sua esposa, Cléo Sol. Até que veio a notícia: Simz estava a processar Inflo por falha em pagar um empréstimo que ela lhe tinha feito, no valor de 1,7 milhões de libras – o dinheiro teria sido usado na única atuação ao vivo dos SAULT e à conta dessa falha Simz não tinha conseguido pagar o seu IRS.
https://open.spotify.com/intl-pt/album/0ofdTvYtx4LpsVjemJt71X?si=uo-eYS1aSwKBObfK919KlA
Esta zanga está no cerne de Lotus – a inspiração de Little Simz parece advir muitas vezes das suas zangas, seja com a pobreza de onde veio, o pau ausente ou ela própria mas o há-de realmente diferente em Lotus é o som: Simz e Inflo criaram uma teia sonora complexa, que bebia em todas as eletrónicas e adquiria um certo pendor cinemático por via dos arranjos luxuosos. Lotus é quase o oposto, com resultados díspares: a faixa de abertura, Thief, dirigida a já se sabe quem, vive de guitarras angulares e encontra Simz no seu melhor enquanto pessoa zangada; na maior parte do disco os arranjos são esparsos, com um bocadinho de jazz aqui, ali de rock, uns beats mais esquisitos acolá, mas a voz sempre ao centro, em vez de envolvida no turbilhão de arranjos dos discos anteriores. Ainda assim há momentos altos: Only, com as cordas por trás, Flood, com a sua batidona. Little Simz nunca é desinteressante, razão pela qual a incluímos aqui – mas parece estar ainda à procura de um novo som. Seria bom que Inflo pagasse o que lhe deve – até para ver se faziam um disco de reconciliação.