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Em Kafr Malik, os colonos chegaram com pedras e cocktails Molotov. Três palestinianos acabaram mortos pelas IDF

Dezenas de colonos israelitas atacaram a aldeia de Kafr Malik. IDF tentaram acalmar os ânimos, mas acabaram por matar a tiro Murshed, Mohamad e Lofti. E os colonos voltaram — para atacar o Exército.

Cátia Bruno
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João Porfírio
photography

Reportagem dos enviados especiais do Observador à Cisjordânia

Murshed Hamayel foi morto à porta de casa, com um tiro. No chão de pedra ainda se vêem as manchas do sangue, entretanto vigorosamente esfregadas, que não saíram totalmente.

O palestiniano de 36 anos morreu na noite de quarta-feira, na aldeia de Kafr Malik, a norte de Ramallah (Cisjordânia), onde viveu toda a vida. Cinco dias depois, quatro homens estão sentados nesse mesmo alpendre, ainda a digerir o que aconteceu. As mulheres da família estão dentro de casa. Um deles segura na mão uma misbaha azul-turquesa — as contas de oração pelas quais os muçulmanos sunitas se guiam para rezar —, que vai passando num gesto quase automático por entre os dedos. É um dos três tios de Murshed que ali estão presentes. O quarto homem é Munjed, o seu irmão mais novo, que tem a mão ligada por também ter sido ferido naquela noite.

Foi ao final do dia que os colonos chegaram. Os relatos na aldeia sobre quantos eram variam: há quem estime 80, outros dizem que eram quase 100. Vieram com pedras e cocktails Molotov, incendiaram carros, entraram dentro de casas. Munjed foi levar os filhos do irmão — duas raparigas de cinco e três anos e um bebé de apenas um — a casa de uns vizinhos. Murshed ficou em casa. “Quando ele abriu a porta para sair, levou um tiro na cabeça. Ficou a sangrar e morreu. Aqui à porta”, conta o jovem de mão ligada ao Observador.

As ruas de Kafr Malik estão cheias de homenagens a Murshed e aos dois outros jovens que também foram mortos nessa noite: Mohamad Al-Naji, de 21 anos, e Lofti Baerat, de 18. Nos postes de eletricidade estão penduradas bandeiras da Palestina e da Fatah, o partido histórico de Yasser Arafat que ainda controla politicamente a Cisjordânia, através da Autoridade Palestiniana (AP). O domínio do partido nesta parte dos territórios palestinianos ainda é firme, como se vê pelo memorial de mármore a Arafat erigido numa aldeia vizinha de Kafr Malik, com o seu rosto pintado e a data da sua morte em rodapé (11.11.04). Mas o Hamas também vai ganhando terreno aqui: há apenas dois dias, o Shin Bet (serviços de informações israelitas) deteve 60 pessoas na Cisjordânia, suspeitas de ligação ao grupo terrorista, que estariam a preparar ataques.

Por todas as paredes desta aldeia estão colados cartazes com os rostos das vítimas, acompanhados de uma citação do Alcorão, em árabe: “Alá declara que, embora os mártires tenham sido assassinados nesta vida, as suas almas estão vivas e a receber provisões na Morada da Vida Eterna.” Nos posters mais pequenos afixados está ainda escrita em baixo uma mensagem de condolências da Fatah às famílias.

Na entrada da casa de Murshed, onde o construtor civil foi morto, outro dos seus tios vai assegurando que nunca se viu uma noite de violência como aquela em Kafr Malik: “Em 60 anos, nunca nada disto aconteceu. Isto com os colonos vai de mal a pior.”

Os ataques dos israelitas que vivem nos colonatos construídos na Cisjordânia têm aumentado ao longo das últimas semanas. De acordo com o Gabinete de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU, o número de ataques durante a guerra Irão-Israel disparou, registando-se 23 incidentes que resultaram em feridos ou mortos e destruição de propriedade entre os dias 17 e 23 de junho.

As IDF (Forças de Defesa de Israel) têm a responsabilidade de garantir a segurança nesta aldeia, que pertence tanto à área B como à C das três estabelecidas nos Acordos de Oslo — a B é gerida pela Autoridade Palestiniana, mas com segurança partilhada com o Estado de Israel; a C é totalmente controlada por Israel; e a A é inteiramente governada pela AP.

Naquela noite, apareceram em Kafr Malik para tentar controlar a confusão lançada pelo ataque dos colonos. As IDF confirmam que responderam com munições reais, por estarem a ser atacadas com pedras e tiros. Murshed, Mohamad e Lofti morreram.

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“Este terreno era dos meus bisavós e foi dos meus avós. Vou embora? Para aonde?”

Mahmoud Al-Masri não morreu, mas também foi atingido por um tiro que diz ter sido disparado pelos soldados das IDF — é uma das oito pessoas que ficaram feridas nessa noite. Voltou do hospital há dois dias e ainda tem as ligaduras na perna. “Não foi assim tão mau, a bala não atingiu o osso”, começa por relativizar na conversa com o Observador.

Naquele final de tarde, Mahmoud tinha chegado há pouco tempo a casa, vindo da pedreira onde trabalha, para mudar de roupa e ver a mulher, que está grávida, e a filha pequena. “O meu irmão vinha cá ter, chegou e foi aí que ouvimos os gritos.” Os dois subiram ao telhado e viram os colonos a despejarem combustível e a queimarem um carro estacionado à porta da casa que fica ali ao lado. “Foi horrível o que vi. Os colonos a queimarem a casa dos meus vizinhos e as crianças lá dentro.”

O homem de 41 anos vai desfiando o relato dessa noite, enquanto um primo faz o tradicional gesto de hospitalidade árabe de servir aos convidados café, em pequenas chávenas de loiça, acompanhadas por água. Do telhado, Mahmoud começou aos gritos. Diz que os colonos lhe atiraram pedras e que ele atirou outras de volta. Por toda a aldeia começava a espalhar-se o fumo das coisas queimadas. E foi então que chegaram os soldados das IDF.

“Um deles disse-me ‘Vão para casa, nós lidamos com eles’. Mas os colonos voltaram pelo outro lado da aldeia e queimaram mais carros. Mais gente da aldeia veio tentar defender-nos e houve mais caos”, vai dizendo. “Aí chegou um carro das IDF. Um dos soldados deu um tiro para o ar. Depois disparou para as pessoas — foi assim que fui ferido na perna.” A casa de Murshed, que foi atingido fatalmente, fica a poucos metros de distância dali.

A revolta em Kafr Malik é grande. Com os colonos, que nunca tinham atacado antes a aldeia, mas também com o Exército israelita. “Obviamente as IDF vieram para os proteger e não a nós. Senão tinham disparado sobre eles”, decreta Mahmoud. “Nós vivemos nas nossas casas, não estamos armados.” Depois aponta para a janela, de onde se veem as velhas oliveiras cujo azeite sustenta grande parte das famílias deste povoado: “Este terreno era dos meus bisavós e foi dos meus avós. Vou embora? Para aonde?”

Violência dos colonos atinge soldados — e mergulha Israel numa discussão profunda

O relato das IDF sobre o que aconteceu naquela noite diverge ligeiramente do que dizem os locais, mas o Exército israelita admite ter disparado em direção à aldeia. Ao Le Monde, as IDF dizem que tentaram colocar-se entre os atacantes e os residentes, mas que lhes foram atiradas pedras e disparado tiros sobre eles, o que os fez usar munições reais em resposta. De acordo com o jornal israelita Haaretz, os soldados fizeram detenções: cinco colonos, que foram entregues à polícia. Todos saíram em liberdade na manhã seguinte.

A violência em Kfar Malik contribuiu para uma escalada ao longo dos últimos dias entre habitantes dos colonatos e o próprio Exército israelita. Dois dias depois do que aconteceu naquela aldeia, 70 colonos atacaram soldados num posto militar da Cisjordânia. O comandante do batalhão confirmou ao Haaretz que se tratavam dos mesmos colonos que tinha invadido Kfar Malik dois dias antes: “Vimo-los a esganar um dos soldados, eu levei um murro, atiraram pedras a um dos nossos carros de combate, rasgaram pneus”, contou. “Eles levaram-nos a um ponto em que 90% do nosso tempo é gasto a impedir que a ‘Juventude das Colinas’ [termo usado para os jovens colonos mais radicalizados] deitem fogo a todo o lado.”

No domingo, um novo incidente fez explodir o barril de pólvora, quando se registaram confrontos entre colonos e soldados israelitas numa base militar na Cisjordânia, que foi incendiada pelos habitantes dos colonatos. Numa parede foi pintado um graffiti que dizia “Vingança pelo tiroteio, cumprimentos de Beit She’an”, no que se supõe ser uma referência à vila com esse nome onde um adolescente de 14 anos foi atingido a tiro dias antes, mas sobreviveu. Os colonos acusam o Exército de ser responsável, as IDF dizem que não foram elas a disparar.

O ataque a uma base militar israelita por cidadãos do seu próprio país é um novo patamar na tensão que se vive na Cisjordânia, onde o ciclo de retaliação por cada morte entre colonos, palestinianos e soldados parece nunca ter fim. Agora, os recentes acontecimentos simbolizam o agudizar do confronto entre algumas das comunidades mais radicais dos colonatos e o establishment político israelita. Yair Golan, um dos líderes da oposição, classificou o que aconteceu no domingo como “um violento pogrom judaico” e acusou o governo de Benjamin Netanyahu de estar a “encorajar os gangues violentos que operam nos territórios [palestinianos]”. O primeiro-ministro declarou que não iria tolerar “atos violentos e anarquistas” por parte “dos próprios cidadãos do país”.

Até o ministro das Finanças Bezalel Smotrich — também ele um colono e líder de um dos partidos de extrema-direita da coligação que sustenta Netanyahu — condenou o ataque, classificando os responsáveis como “criminosos” que ultrapassaram “uma linha vermelha”. Esta terça-feira, o editorial do tabloide Yedioth Ahronoth cristalizava o sentimento generalizado: “Não são pioneiros, são inimigos” era o título do artigo dedicado aos colonos mais violentos.

Diplomatas apertam a mão à viúva de Murshed, mas é um parco consolo. “Depois da perda dele, a vida já não tem valor”

O caso de Kafr Malik, que espoletou toda a violência de colonos contra soldados israelitas, ganhou uma dimensão tal que, no dia em que o Observador esteve na aldeia, esta foi palco de uma visita de uma delegação internacional. À porta da casa dos vizinhos de Mahmoud, que tiveram o carro queimado, param uma série de SUV brancos e pretos. De alguns deles descem vários homens, de camisas brancas e blazers de tons claros, e algumas mulheres; de umas carrinhas maiores saem dezenas de jornalistas que vieram cobrir a visita.

A delegação inclui vários diplomatas e organizações como o Comité Internacional da Cruz Vermelha. Entre os mais destacados estão Alexandre Stutzmann, representante da União Europeia (UE) para os Territórios Palestinianos (Cisjordânia e Faixa de Gaza), Nicolas Kassianides, o cônsul francês em Jerusalém, e representantes do consulado britânico da mesma cidade.

https://twitter.com/FranceJerusalem/status/1939935788474474733

https://twitter.com/UKinJerusalem/status/1940023279651090923

Param à porta da vivenda de dois andares, que foi claramente vandalizada. À sua frente ainda está o Hyundai branco queimado. Os vidros das janelas da casa estão partidos e, em frente ao portão, está um colchão meio queimado, pedaços de madeira do que parece ter sido um armário, um cortinado e almofadas. No muro, foi escrito em hebraico “Vingança — Nachman”, o nome de um colono de 17 anos que foi morto há dois anos por palestinianos armados, no colonato de Shiloh, a dez quilómetros desta aldeia.

A dona da casa chega para vir contar o que aconteceu naquela noite à delegação. “Foi dali que vieram”, diz, apontando para o vale que se estende ao lado. Relata que os colonos atiraram cocktails Molotov para dentro de casa. “Partiram vidros, incendiaram coisas. Gritámos que tínhamos crianças, mas eles não quiseram saber.” Os diplomatas ouvem com um ar consternado.

A delegação caminha de seguida em procissão até à casa de Murshed, que fica a poucos metros. Agora, as mulheres já não estão lá dentro. A mulher e a mãe de Murshed, Basma e Mufid Hamayel estão sentadas à porta para os receber. Consigo estão os três filhos do palestiniano morto: as duas raparigas têm laços brancos na cabeça e vestem t-shirts com a bandeira da Palestina; o bebé, de chucha na boca, está ao colo da mãe, que entretanto o passa para o colo da irmã de Murshed.

O representante da UE dirige-se diretamente a elas. “Apelamos a Israel que impeça isto de acontecer e que leve à Justiça os responsáveis”, diz, sublinhando que “os colonatos violam o Direito Internacional”. “Da nossa parte, lamentamos muito e apresentamo-vos as nossas condolências”, acrescenta, apertando a mão à viúva.

Quando o aparato de diplomatas e imprensa dispersa, Basma e Mufid continuam sentadas à porta de casa, em frente ao sítio exato onde Murshed foi atingido a tiro. Nascidas e criadas em Kafr Malik, ambas descendentes de famílias de agricultores, aceitam partilhar com o Observador as suas memórias dessa noite. Quando o ataque começou, fugiram com as crianças para casa de uns vizinhos, enquanto Murshed ficou ali. Só às 11 da noite é que lhes deram a notícia de que ele morrera.

Mufid conta como têm sido os dias desde o funeral: “Desde o ataque que não dormimos, com medo. Agora todas as noites os jovens ficam acordados a vigiar a aldeia”, revela, explicando que se coordenam pelo WhatsApp para organizar as rondas. Mas mais do que receio de que a violência se repita no local onde sempre viveram, as duas mulheres estão sobretudo de luto. Angustiada, Mufid revela que não é só a falta de sono que a atormenta; é, sobretudo, a morte do filho mais velho. “Desde que recebemos a notícia que não como”, diz. “Ele tinha três filhos. Agora quem é que os vai sustentar?”

Basma partilha menos. De olhos postos num ponto indefinido — talvez o mesmo onde ainda se vê a mancha do sangue de Murshed no chão —, não fala de colonos, da Fatah, de soldados israelitas, nem da Cisjordânia como um todo. Fala apenas do seu marido: “Perdemos a nossa vida. Depois da perda dele, a vida já não tem valor.”