Os três crimes de corrupção passiva de titular de cargo político imputados a José Sócrates constituem o cerne do processo Operação Marquês que chega esta quinta-feira finalmente a julgamento, 12 anos depois da abertura do inquérito pelo Ministério Público (MP). E embora o ex-primeiro-ministro responda ainda por mais seis crimes de fraude fiscal e 13 de branqueamento, são aqueles três crimes que permitem traçar o caminho até aos corruptores neste processo.
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Em causa estão, sobretudo, três núcleos de factos que o MP imputa — na sua acusação de outubro de 2017, destruída na fase de instrução em abril de 2021 e amplamente recuperada na Relação em janeiro de 2024 — como sendo a motivação da alegada corrupção de José Sócrates (na qual Carlos Santos Silva também visado em regime de co-autoria):
- No caso de Ricardo Salgado, está em causa o alegado favorecimento do Grupo Espírito Santo (GES) na OPA da Sonae sobre a PT e a venda da Vivo associada à compra da Oi;
- no caso do Grupo Lena, que tem o ex-vice-presidente Joaquim Barroca como alegado corruptor ativo, sobressaem os concursos de obras públicas, nomeadamente o do TGV;
- e quanto ao chamado grupo de investidores de Vale do Lobo, que tem Rui Horta e Costa como alegado líder, é visado o financiamento da Caixa Geral de Depósitos (CGD) para a compra daquele resort de luxo localizado no Algarve. Neste segmento, o então administrador da CGD, Armando Vara, igualmente visado como alegado co-autor de corrupção passiva.
Terão sido os representantes destes três grupos económicos (GES, Grupo Lena e Grupo de Investidores de Vale do Lobo) que terão transferido um total de cerca de 24.875.000 de euros para as diversas contas bancárias de Carlos Santos Silva na UBS, na Suíça, em nome de várias sociedades offshore. A este montante juntam-se cerca de 7,1 milhões de euros que Santos Silva terá recebido do Grupo Lena e alegadamente disponibilizado a Sócrates e pelo menos 2,3 milhões de euros em dinheiro que passaram pelo primo do antigo governante, elevando o total para aproximadamente 34 milhões de euros.
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“O arguido José Sócrates sabia e quis agir de forma descrita, violando a autonomia intencional do Estado, a troco da promessa e entrega de contrapartidas patrimoniais que sabia não lhe serem devidas, para conduzir a atuação do Governo”, referia a acusação elaborada pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal. Assim, na ótica do MP, a unir todas estas pontas terá estado, desde 2005, um nome: José Sócrates.
Salgado. A OPA à PT e o negócio no Brasil
Segundo o MP, o papel de Ricardo Salgado foi fundamental na trama da Operação Marquês, não só pelo acordo alegadamente efetuado com Sócrates para beneficiar os interesses do Grupo Espírito Santo (GES) em várias frentes, mas também pela influência supostamente exercida pelo ex-banqueiro sobre a cúpula da Portugal Telecom (PT), assente no chairman Henrique Granadeiro e no CEO Zeinal Bava.
Ricardo Salgado até já foi condenado num processo separado da Operação Marquês a seis anos de prisão, posteriormente elevados para oito anos na Relação de Lisboa e confirmados no Supremo Tribunal de Justiça, com base em três crimes de abuso de confiança. Agora, tem pela frente neste julgamento mais 11 crimes: três de corrupção e oito de branqueamento de capitais, segundo o acórdão de pronúncia de janeiro de 2024.
E por que razão Salgado terá corrompido Sócrates? O MP apresentou como explicações os interesses do BES e do GES na empresa PT:
- Primeiro na Oferta Pública de Aquisição (OPA) da Sonae à PT, anunciada em 2006;
- e depois no condicionamento da venda da participação da PT na Vivo à aquisição de uma nova participação da antiga operadora de telecomunicações na Oi.
- E porquê? Porque o BES era o terceiro maior acionista da PT (8,3% do capital), mas teria um controlo ‘de facto’ da empresa, alegadamente influenciando também as sucessivas administrações da PT a financiar o grupo financeiro da família Espírito Santo.
- A relação quase umbilical entre PT e BES era clara: só em 2013, a PT tinha depósitos de cerca de 1,4 mil milhões de euros no BES e chegou a ter investimentos superiores a mais de mil milhões de euros em dívida do GES. Estes dados demonstram claramente, na ótima do MP, o interesse de Ricardo Salgado em manter o controlo da PT.


Quanto à OPA sobre a PT, o ex-banqueiro alegadamente convenceu José Sócrates — uma vez que o Estado detinha uma decisiva golden share de 500 ações — e a administração da empresa a apoiar a oposição do BES à OPA lançada pelo Grupo Sonae, liderado por Belmiro de Azevedo e Paulo Azevedo.
Barroca, o Grupo Lena, o TGV e as ligações a Santos Silva
A amizade entre Sócrates e Santos Silva vem desde a infância e essa relação terá sido explorada para o suposto benefício do ex-primeiro-ministro e para o desenvolvimento dos negócios do grupo Lena. Essa ligação começou a ser trilhada “ainda em 2005”, segundo a acusação do MP, com Sócrates a procurar, através do apoio à atividade do grupo, “vir a obter uma contrapartida financeira em seu proveito pessoal, mas sempre através da pessoa do arguido Carlos Santos Silva, de forma a ocultar esse comprometimento e benefício”.
Os procuradores foram mais longe e identificaram nas diversas ligações entre sociedades ligadas ao amigo do primeiro-ministro e o Grupo Lena uma “montagem de relações contratuais de conveniência”, a fim de explicar a circulação de contrapartidas financeiras que iriam, em última instância, parar a José Sócrates.
“A partir do final de 2006”, José Sócrates assumiu a “incumbência de favorecer os interesses do Lena”, nomeadamente sob “a aparência de uma atividade de pura diplomacia económica” e a “escolha privilegiada do Grupo Lena” para integrar comitivas internacionais e de intervenções junto de responsáveis políticos estrangeiros para a conclusão de contratos e recebimento de pagamentos.
Entre os supostos benefícios ao Grupo Lena estariam as obras da Parque Escolar, entre 2009 e 2015, mas esses indícios recolhidos pela acusação do MP não foram considerados suficientemente fortes na análise da Relação de Lisboa em janeiro de 2024.
Contudo, o mesmo não ocorreu em relação ao contrato para o TGV, designadamente o contrato da 1.ª fase da parceria público-privada para a ligação de alta velocidade entre o Poceirão e Caia, na fronteira com Espanha, adjudicado ao consórcio Elos, do qual fez parte o Grupo Lena. De acordo com a acusação, José Sócrates “atuou de modo a conformar o procedimento do concurso” ao consórcio Elos e terá “instrumentalizado” os membros do seu Governo.


Nas alterações propostas pelo consórcio do qual fazia parte o grupo Lena estava a responsabilidade que o Estado teria de assumir caso o Tribunal de Contas recusasse o visto ao contrato que a RAVE (empresa que geria a adjudicação da parceria público-privada) desejasse assinar. Na prática, a Elos conseguiu que o Estado assumisse o ónus de pagar cerca de 14,6 milhões de euros no caso de recusa de visto. Um assessor jurídico analisou esta proposta de alteração como “medíocre”, mas, de acordo com a acusação, Sócrates tomou a decisão de que o relatório final do júri “deveria ser produzido em moldes que permitissem acomodar uma decisão política de adjudicação”.
Mais tarde, o Tribunal de Contas recusaria o visto ao concurso adjudicado ao consórcio Elos e este viria a pedir uma indemnização de cerca de 169 milhões de euros em sede de Tribunal Arbitral. O tribunal condenou o Estado a pagar cerca de 149 milhões de euros.
Paralelamente, as empresas de Carlos Santos Silva vieram a receber, por serviços que supostamente não foram prestados, cerca de 735 mil euros, entendendo o MP que o valor serviria como contrapartida para Sócrates por alegadamente beneficiar o consórcio Elos no concurso do TGV.
No interrogatório, Joaquim Barroca reconheceu diante do juiz de instrução Carlos Alexandre que Carlos Santos Silva lhe pediu para receber numa conta sua “um dinheirito” e que depois o amigo do ex-primeiro-ministro lhe transferiu. O vice-presidente do Grupo Lena vai a julgamento por um total de 15 crimes: dois de corrupção, seis de fraude fiscal e sete de branqueamento.
Horta e Costa, Vale do Lobo, a CGD e Armando Vara
O último crime de corrupção imputado a José Sócrates está associado a um conjunto de empréstimos realizado pela Caixa Geral de Depósitos (CGD) a um grupo de investidores liderados por Rui Horta e Costa para o financiamento do empreendimento de Vale do Lobo, no Algarve. Em causa está um financiamento de cerca de 256 milhões de euros e a entrada de capitais da própria CGD na sociedade Wolfpart, com mais 28 milhões de euros, uma vez que estava responsável por toda a operação.
Na administração da CGD, liderada então por Carlos Santos Ferreira, estava Armando Vara. O antigo ministro socialista e amigo de Sócrates terá influenciado os procedimentos dentro do banco público ao nível da análise de risco na concessão de crédito para viabilizar o financiamento a Vale do Lobo.
O problema na operação — aparentemente normal na atividade bancária — estava, precisamente, no equilíbrio do risco, uma vez que os investidores — nos quais estavam Rui Horta e Costa (administrador), Diogo Gaspar Ferreira, Pedro Ferreira Neto e Helder Bataglia — entraram somente com seis milhões de euros, sobrando quase tudo para os cofres da CGD. Como consequência, a sociedade acabou por não cumprir e a dívida da sociedade à Caixa atingia no final de 2016 cerca de 320 milhões de euros.
Para o MP, a contrapartida na viabilização do empréstimo da CGD à sociedade de Vale do Lobo, dos investidores liderados por Rui Horta e Costa, esteve no acordo para, alegadamente, Vara e Santos Silva dividirem dois milhões de euros (com este último a ter Sócrates como último destinatário).
A formalização dessa contrapartida foi consubstanciada numa transferência de um empresário holandês, Jerome Van Dooren, no valor de dois milhões de euros, entre janeiro e abril de 2008, supostamente a pedido dos investidores por detrás de Vale do Lobo para uma conta da UBS na Suíça. A conta era de Joaquim Barroca, que entre fevereiro e junho de 2008 transferiu esses mesmos dois milhões de euros para dois destinatários: a sociedade Giffard Finance de Carlos Santos Silva e Armando Vara.
Ou seja, para o MP, a transferência para Santos Silva equivaleria a transferir o dinheiro para José Sócrates, tendo a contrapartida sido, desta feita, dividida com Armando Vara (igualmente acusado de um crime de corrupção passiva e um crime de branqueamento).Um dos rostos dos investidores de Vale do Lobo, Rui Horta e Costa, acabou pronunciado por dois crimes pela Relação de Lisboa, em janeiro do ano passado: um crime de corrupção ativa e outro de branqueamento.