Proferiu 1.600 decisões e assinou 66 acórdãos em apenas três anos. Já condenou uma jornalista da CMTV por divulgar o vídeo do interrogatório judicial do ex-ministro Miguel Macedo e declarou igualmente como culpado um homem que ameaçou o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. É conhecida por estar focada na celeridade, mas trata os arguidos com consideração e respeito.
Em poucas palavras, esta é uma súmula do perfil da juíza Susana Seca. Quase a completar 20 anos na magistratura, a magistrada judicial tem pela frente a partir desta quinta-feira o maior julgamento da sua carreira: o processo Operação Marquês.
Acompanhada pelas juízas Rita Seabra e Alexandra Pereira no coletivo do Juízo Central Criminal de Lisboa, pesa sobre os ombros da magistrada de 52 anos o desafio de julgar pela primeira vez em Portugal um ex-primeiro-ministro por corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais: José Sócrates.
Além do antigo governante, o julgamento conta ainda com outros 20 arguidos (17 pessoas e três empresas), entre os quais o amigo e empresário Carlos Santos Silva, o ex-banqueiro Ricardo Salgado, o antigo ministro Armando Vara e os antigos chairman e CEO da PT, Henrique Granadeiro e Zeinal Bava.
Ao todo estão em causa 117 crimes económico-financeiros, centenas de testemunhas arroladas pelo Ministério Público e pelos 21 arguidos, mais de 200 caixas com documentação do processo, 53 dias de julgamento já marcados até ao final de 2025 e um caso com 12 anos que já deu mais voltas do que qualquer outro processo, com centenas de recursos, reclamações e outros incidentes processuais.
https://observador.pt/especiais/relacao-de-lisboa-diz-que-ivo-rosa-nao-seguiu-o-caminho-do-dinheiro-que-leva-a-socrates/
Conta quem a conhece bem que Susana Seca não se deixa perturbar com a Operação Marquês e que, apesar de estar ciente da “responsabilidade”, encara este julgamento “como qualquer outro processo”. Fontes judiciais enaltecem ao Observador a sua disponibilidade para o trabalho, uma grande capacidade e uma postura “muito objetiva” que só pode ter reflexos positivos no julgamento.
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Jurista, advogada e a vontade de ser juíza que só chegou mais tarde
Longe vão os tempos em que chegou a trabalhar como jurista para a Deco Proteste ou a integrar os registos da Ordem dos Advogados com cédula registada no Conselho Regional de Lisboa entre 1998 e 2003, num percurso que nunca foi exatamente linear até à chegada a este julgamento. Corria o ano de 1990 quando Susana Seca entrou para a Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Completou o curso cinco anos depois, mas a entrada na magistratura judicial não esteve logo no seu horizonte.
Pelo meio, segundo adiantou ao Observador uma fonte próxima da juíza, Susana Seca teve diversas experiências profissionais na área do Direito, como advogada e jurista, até decidir entrar para o curso no Centro de Estudos Judiciários (CEJ).
De acordo com os dados de antiguidade fornecidos pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM), a formação de Susana Seca no CEJ terá começado em setembro de 2005, curiosamente, o mesmo ano em que José Sócrates chegou ao cargo de primeiro-ministro e no qual, segundo a acusação do Ministério Público (MP), começou logo a ser (alegadamente) corrompido.
Os primeiros passos a sério da juíza nos tribunais portugueses começaram a ser dados em 2008, quando começou a fazer o estágio no Tribunal de Sintra. Foi ainda em julho desse ano que obteve a sua primeira colocação como juíza efetiva, ao rumar ao Tribunal de Condeixa-a-Nova, permanecendo nessa comarca (extinta com a revisão do mapa judiciário de 2014) do distrito de Coimbra durante dois anos.
De Condeixa-a-Nova seguiu em 2010 para o Tribunal de Almeirim (distrito de Santarém), onde esteve colocada como juíza auxiliar outros dois anos. Em 2012, conseguiu regressar como auxiliar a Sintra, mas ficou apenas um ano no Juízo de pequena e média instância cível e criminal, voltando a mudar de tribunal em 2013. Novamente no distrito de Santarém, desta feita em Benavente, cumpriu dois anos nesta localidade até que em 2015 conseguiu finalmente voltar à área metropolitana de Lisboa, embora a ‘saltitar’ de comarca em comarca.
Entre 2015 e 2018, Susana Seca passou pelo Juízo de Instância Local Criminal de Cascais, pela secção local criminal do Tribunal de Sintra (outra vez) e pelo Juízo de Instância Local Criminal do Seixal. Só há sete anos é que se fixou, finalmente, no Campus da Justiça, ao ingressar primeiro no Juízo Local Criminal de Lisboa, no qual ficou quatro anos e desde 2022 no Juízo Central Criminal de Lisboa.
A disponibilidade, as 1.600 decisões e os 66 acórdãos em três anos
Susana Seca pode não ter uma longa experiência no Juízo Central Criminal de Lisboa, por onde passaram quase todos os grandes processos da justiça portuguesa nos últimos anos, como o julgamento em curso do Universo Espírito Santo, o caso EDP que levou à condenação do ex-ministro Manuel Pinho ou até os processos separados da Operação Marquês e que levaram às condenações de Ricardo Salgado ou Armando Vara.
Todavia, isso não a inibiu de ‘deitar mãos à obra’ e criar uma reputação de uma juíza capaz, discreta, sempre disponível para o trabalho e em que os números falam por si.
Segundo dados fornecidos pela comarca de Lisboa, a magistrada proferiu até janeiro — altura em que ficou em exclusividade com o julgamento da Operação Marquês — cerca de 1.600 decisões judiciais (entre despachos, respostas a requerimentos, etc.) e relatou 66 acórdãos, dos quais um de média complexidade e outro de especial complexidade, que “foi tratado de forma tão célere quanto possível”.
“É-lhe reconhecida a capacidade, a disponibilidade e a experiência. Mostra-se sempre disponível para auxiliar na realização de outros julgamentos dos quais não é a titular”, refere uma fonte da comarca de Lisboa.
Uma impressão que, aliás, encontra o devido respaldo na última avaliação realizada pelo CSM, em 2018, que atribuiu a Susana Seca a nota “Bom com Distinção“, ou na sua intervenção como formadora para a área penal de juízes estagiários entre 2021 e 2022.
Especialização na área criminal só ocorreu há cerca de uma década
Contrariamente a outros juízes, que entram na magistratura judicial com um foco bem definido para a especialização da sua carreira, Susana Seca nunca alimentou grandes preferências pela área de intervenção, desdobrando-se entre as vertentes cível e criminal sem objeções na fase inicial da sua carreira. No entanto, uma circunstância alheia forçou uma escolha: a Lei da Organização do Sistema Judiciário.
Concretizada em 2014 — ou seja, um ano depois da instauração do inquérito da Operação Marquês no Departamento Central de Investigação e Ação Penal —, a legislação aprovada durante o Governo liderado por Passos Coelho tinha como uma das suas linhas de força a especialização dos magistrados. Foi então que Susana Seca procurou especializar-se e optou em definitivo pela jurisdição criminal.
Daí até ao julgamento da Operação Marquês passou pouco mais de uma década, mas, de certa forma, parecia estar ‘destinado’ que os caminhos de Susana Seca e deste caso se iriam cruzar. No ano 2022, a propósito do caso que foi separado em abril de 2021 pelo juiz Ivo Rosa na sua decisão instrutória para a pronúncia de José Sócrates e Carlos Santos Silva, o nome de Susana Seca começou a aparecer na comunicação social.


A juíza Margarida Alves, que estava colocada na posição de Juiz 19 no Juízo Central Criminal de Lisboa e que tinha esse processo a seu cargo, foi transferida para outra posição no âmbito do movimento de magistrados, surgindo então Susana Seca a substituí-la nessa vaga. Foi em 2022 e desde então muito mudou: esse caso, por força de um acórdão da Relação de Lisboa de março de 2024, regressou à fase instrutória e conheceu a decisão apenas no mês passado, enquanto o processo que chega agora a julgamento só viria a ser recuperado em janeiro de 2024 pelo acórdão de pronúncia da Relação de Lisboa.
Caso não tivessem surgido tantas reviravoltas processuais, Susana Seca poderia até já ter julgado o processo que apenas envolve José Sócrates e Carlos Santos Silva. Mas acabou por ficar com o processo principal da Operação Marquês, que agrega a essência da acusação proferida em 2017 pelo Ministério Público. Será o maior, mas já teve também outros “processos difíceis” e “mais mediáticos”.
Já condenou jornalista da CMTV por divulgar interrogatório — e o homem que ameaçou Marcelo
Entre os julgamentos conduzidos por Susana Seca que captaram a atenção do público está a condenação, em 2019, de uma jornalista da CMTV a uma multa de 880 euros pelo crime de desobediência na divulgação televisiva do interrogatório ao antigo ministro da Administração Interna Miguel Macedo, no âmbito do famigerado processo dos Vistos Gold.
De acordo com a decisão, citada pelo Diário de Notícias (aqui e aqui), a exibição, em novembro de 2015, de excertos do interrogatório do ex-governante carecia de autorização da autoridade judiciária, o que não teria ocorrido. Esta terá sido a primeira vez que os tribunais criminais portugueses condenaram a exibição na comunicação social de vídeos de interrogatórios a arguidos.
Três jornalistas foram acusadas, mas só uma foi condenada pela juíza, que considerou que não estava a ser legitimamente exercido o direito da liberdade de imprensa com a divulgação das imagens e som de um ato processual, acrescentando que só a narração do que se passou nessa diligência seria inteiramente livre.
Mais recentemente, em novembro de 2023, um coletivo presidido por Susana Seca decidiu condenar o homem que ameaçou em 2022 matar o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. O tribunal deu como provados os crimes de coação agravada na forma tentada e detenção de arma proibida por Marco Aragão, mas, por considerá-lo inimputável, aplicou somente uma medida de internamento compulsivo em unidade hospitalar, entre o mínimo de um mês e o máximo de três anos e quatro meses.
“Foi uma experiência muito boa. A juíza foi muito humana, percebeu o que se passava e entendeu a situação do Marco, que era uma situação mental. A sentença foi muito equilibrada, ajustada e bem fundamentada. E eu concordei com ela e nem recorri”, recorda ao Observador o advogado Nuno Rodrigues Nunes. O mandatário de Marco Aragão sublinha ainda que Susana Seca “foi muito profissional” e que o seu cliente “está a ser tratado e até já teve direito a [saídas] precárias”.
“A meritíssima juíza percebeu que era um processo para resolver sem achincalhar e sem prolongar a questão. Foi muito objetiva”, acrescenta.
Expectativas para o julgamento da Operação Marquês
Desafiado a antever como irá a magistrada abordar o julgamento de um processo com a magnitude da Operação Marquês, um dos megaprocessos mais complexos da justiça portuguesa, Nuno Rodrigues Nunes parte da sua experiência no julgamento de Marco Aragão para elogiar Susana Seca e traçar um cenário otimista para o desenrolar das audiências.
“A juíza foi ágil na gestão dos trabalhos e não perdeu tempo com questões acessórias. É uma juíza que vai ao ponto, aos factos, e penso que foi uma ótima escolha para a Operação Marquês”, observa. “Pela minha experiência, se as pessoas estiverem no julgamento para trabalhar para descobrir a verdade e forem civilizadas, vai correr bem”, conclui o advogado.
E poderá o nome de José Sócrates no lote de arguidos mudar a postura da magistrada? “Em nenhum momento o meu arguido foi desrespeitado ou maltratado. O meu cliente foi tratado com consideração e tenho a certeza que a juíza fará o mesmo com o eng. José Sócrates“, complementa Nuno Rodrigues Nunes.
O advogado destaca igualmente que o perfil de Susana Seca “vai contribuir para a celeridade do julgamento” e que “não será por ela que o processo irá demorar”.
Com efeito, a juíza não esperou pelo regresso das férias judiciais, declarou os autos urgentes, rejeitou a separação processual dos autos relativos a Vale do Lobo para não atrasar a tramitação e quis marcar o início do julgamento o mais cedo possível, sem ter deixado de conceder uma prorrogação às defesas para a apresentação das respetivas contestações para o julgamento.
Uma outra fonte próxima da juíza corrobora ao Observador a impressão de uma magistrada tranquila, empenhada e que não cede a tentações mediáticas. “Tem a visão de um juiz que deve fazer o seu trabalho sem protagonismo. É uma juíza discreta e que gosta de cultivar a discrição, que entende que o nome do juiz não é o mais relevante, mas sim a decisão”.
Para Susana Seca, segundo esta mesma fonte, este é um “processo como qualquer outro” e no qual o trabalho “tem de ser feito”. E o trabalho em sala de audiência começa já a partir desta quinta-feira.