Quem se der ao trabalho de estudar seriamente o impacto real dos orçamentos militares e das economias em tempo de guerra perceberá que a economia russa assenta, cada vez mais, em artifícios, manipulação estatística e propaganda. Os números oficiais do PIB são fabricados para manter a ilusão de estabilidade e progresso. Quando Moscovo admite publicamente a possibilidade de uma recessão, é porque a situação interna já ultrapassou o ponto de dissimulação propagandística. O próprio Ministro das Finanças, Anton Siluanov, chegou há pouco tempo a reconhecer a necessidade de aumentar impostos e a possibilidade de contração, mas foi rapidamente forçado a “emendar” as suas declarações. O mesmo Siluanov que chegou a sugerir que o aumento de impostos talvez não fosse suficiente, antes de afirmar que se tinha expressado mal, quando o Kremlin quase cuspiu o café ao ouvir alguém dizer a verdade, logo de seguida afirmou que “a Rússia não tem uma recessão, tem um arrefecimento planeado da economia”. Delicioso, até porque a alternativa que restava a Siluanov, caso não corrigisse a franqueza seria sem querer tropeçar e cair de alguma janela de um 12º piso de um prédio, mas a verdade é simples: o dinheiro está a acabar.
O Ministro das Finanças russo que, no painel da manhã do Sberbank durante o Fórum Económico Internacional de São Petersburgo, afirmou que o orçamento russo enfrenta turbulências significativas, em entrevista logo de seguida à TV oficial, afirmava que as sanções europeias afectam mais a UE do que a Rússia, cuja economia se mantém estável graças a reservas sólidas, dívida baixa e défice controlado. O problema que desmonta a narrativa é que Siluanov foi acompanhado na análise pelo presidente do Sberbank, German Gref, que descreveu a economia como uma “tempestade ideal” devido às altas taxas de juros e à baixa produtividade, acrescentando que a valorização do rublo agrava o déficit orçamental, provavelmente exigindo novos financiamentos de mercado até o final do ano. Falta saber quem dos “aliados” estará disponível para os financiar se for o caso! Confiscarem o património de Abramovich e outros oligarcas corruptos, é uma ideia útil que podem seguir, pelo menos do que lhes resta, ou vá lá, mantendo a ironia, falarem com a presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, Dilma Rousseff.
O sistema bancário russo encontra-se tecnicamente falido. O maior banco do país, o Sberbank, assumiu nesse fórum que não concedeu um único rublo em crédito a novos negócios em 2024. O crédito secou porque os bancos foram forçados a redirecionar os seus recursos para sustentar a indústria de guerra. As taxas de juro oficiais rondam os 20%, mas na prática os financiamentos empresariais operam entre os 24% e os 34%, valores economicamente incomportáveis. A construção civil, tradicional um barómetro do dinamismo económico em qualquer país civilizado, está em colapso: a produção de aço caiu 4% em apenas um ano, e o consumo interno de aço para construção recuou 24%. Fábricas, habitações e infraestruturas estão a estagnar ou a parar por completo, em muitos casos.
A inflação real ronda os 30 a 35%, muito acima dos dados oficiais manipulados. Ainda que o Kremlin negue, o caso dos bens alimentares é critico e a situação é ainda mais dramática. Para tentar conter o caos, o regime subsidia diretamente os salários no sector militar. São pagos bónus de recrutamento, remunerações inflacionadas e compensações avultadas por morte, o que diz bem do estado da arte a que a guerra conduziu. Este ciclo gera um consumo artificial que, em vez de aliviar a economia, apenas alimenta uma espiral inflacionária insustentável.
A escassez de mão de obra nalguns sectores é real, mas não representa crescimento económico até porque no sector civil existem milhares de empresas que fecharam portas. A vaga de despedimentos ainda não se reflete em pleno nas estatísticas oficiais do desemprego, mas é apenas uma questão de tempo. Entretanto, mais de 1,7 milhões de jovens russos — qualificados e maioritariamente contrários à guerra — fugiram do país. Estão a contribuir para o crescimento de outras economias, enquanto a Rússia perde o seu futuro humano e técnico. Já para não referir nos milhares de jovens que mensalmente são perdidos no moedor implacável de carne da frente de batalha.
Face a este colapso progressivo, o Kremlin responde com medidas de desespero: expropriações de empresas privadas para tentar encaixar liquidez imediata. Entre os casos recentes estão o maior exportador de cereais, o aeroporto de Domodedovo e uma importante empresa metalúrgica. Objetivo? Tentar angariar 13 mil milhões de dólares. É confisco puro, à boa e antiga moda soviética, disfarçado de nacionalização estratégica.
A guerra, que Putin deseja e o Kremlin vendeu como um catalisador para o crescimento do sector de defesa, está a revelar-se uma armadilha autoimposta. Quando o conflito terminar e, mais cedo ou mais tarde terá de terminar, centenas de milhares de trabalhadores militares e civis regressarão a um mercado de trabalho que já não existe. A indústria civil vai a caminho de ser dizimada, as exportações continuam bloqueadas por sanções, e o Estado estará falido. Muitos dos empréstimos concedidos às fábricas de armamento e à demais indústria da guerra nunca serão pagos. Essas empresas, dependentes de um único cliente, o próprio Estado, ficarão sem procura. Os aliados da Rússia poderão voltar a ser compradores, mas são cada vez menos os aliados e cada vez mais sucata o que tem para oferecer. A banca entrará em colapso com o incumprimento desses créditos. As poupanças evaporar-se-ão num sistema financeiro sem reservas nem confiança.
O petróleo, tradicional tábua de salvação do Kremlin, não tem servido de escudo. Nem mesmo o conflito entre Israel e o Irão fez subir os preços de forma sustentável, antes pelo contrário. A volatilidade continua, e as receitas energéticas, por si só, já não bastam para sustentar uma economia em coma induzido.
Alheios a isto o Kremlin continua a “bombear” os seus relatórios: no primeiro trimestre, a queda nas receitas de petróleo e gás foi de 10%, o déficit orçamental aumentou 183% em comparação ao ano passado, e cada quinto rublo (20,8 %) gasto do tesouro não foi apoiado por receita real. De acordo com as previsões do ministério, “as finanças continuam a escrever romances”; o preço do petróleo dos Urais, que era de US$ 70 em janeiro, não subirá acima de US$ 53 até o final do ano, mas, como já se referiu Moscovo que não quer aumentar impostos para não irritar as empresas, terá de investir ainda mais no Fundo Nacional de Bem-Estar Social e também reduzir os gastos do governo. Quer isso dizer que Putin vai atirar menos misseis contra hospitais, escolas e infraestrutura critica ucraniana? Não, os russos é que vão ficar mais pobres.
A maior ironia? A economia de guerra russa nem sequer está a ser eficaz. Não surgiram fábricas modernas, a produção de armamento está aquém do necessário, e faltam componentes, know-how e máquinas. A China, por mais “parceira estratégica” que se diga, não fornece tecnologia de ponta e, as alternativas disponíveis são obsoletas. A Rússia está a fabricar o passado com ferramentas do passado.
O fim está escrito. A dúvida já não é “se”, mas “quando”. E quando o “crash” chegar, poderá não ser o resultado de sanções ou derrotas no campo de batalha. Será um colapso interno, visível nos bolsos vazios, nas fábricas encerradas e nos supermercados de prateleiras vazias. A Rússia não será destruída pelo Ocidente — será destruída por ela própria. E, se e quando acontecer, ninguém virá em seu socorro. Nem deve ir, porque há regimes que só aprendem através da dor. E essa dor já começou!