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(A) :: Rua Yerushalayim, n.º43. O regresso de Rachel à casa onde viveu 50 anos, agora destruída por um míssil

Rua Yerushalayim, n.º43. O regresso de Rachel à casa onde viveu 50 anos, agora destruída por um míssil

Rachel, de 83 anos, foi resgatada antes de o seu prédio ser atingido por um míssil iraniano. O Observador acompanhou o regresso da família para irem buscar o que restou: memórias, apenas.

Cátia Bruno
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João Porfírio
photography

Reportagem dos enviados especiais do Observador a Israel

À porta

A bomba de gasolina está cheia de polícias e equipas de engenheiros de capacetes de construção na cabeça. Do outro lado da Rua Yerushalayim (“Jerusalém” em hebraico) só se avistam prédios em ruínas. Um deles, o número 43, está um pouco menos danificado, provavelmente por ser mais baixo. Mas as janelas rebentadas são um indício dos destroços que existem por dentro do edifício.

Rachel sabe-o bem: a sua casa é no primeiro andar e já lá voltou uma vez desde que um míssil iraniano caiu naquele cruzamento, na madrugada do dia 15 de junho, por volta das quatro da manhã. O nível de destruição no bairro de Bat Yam, a sul de Telavive, foi dos maiores em todo o território israelita ao longo da “Guerra dos 12 Dias” — sobretudo no prédio de dez andares ao lado do de Rachel. Ao todo, nove pessoas morreram na explosão, incluindo uma família de ucranianos que se tinha mudado recentemente para o país com o objetivo de a filha pequena, de sete anos, ter os tratamentos de quimioterapia de que necessitava.

Na bomba de gasolina, Rachel está sentada numa cadeira de plástico, acompanhada por duas filhas (Sarit e Orit) e um dos netos (Asaf). Têm à sua frente uma mala de viagem grande e esperam por instruções das equipas que se organizam para permitir que as famílias possam ir uma segunda vez buscar mais pertences às suas casas. “Lá dentro está tudo partido”, lamenta-se Rachel. “É a minha casa há 50 anos. Tantas memórias… Os meus filhos, os meus netos, cresceram todos aqui.”

Naquela madrugada de 15 de junho, Rachel — que vive sozinha e de forma autónoma, apesar dos seus 83 anos — ouviu as sirenes. O prédio não tem abrigo, mas ela não quis sair e ir procurar outro ali perto. A filha Sarit tomou as rédeas da situação. “Ela não queria vir embora. Quando cheguei estava sentada nas escadas do prédio. Ficou chateada por ter vindo buscá-la. Mas isso salvou-lhe a vida”, declara. “Isto é tudo muito emotivo”, acrescenta a filha mais velha — algo que já era denunciado pelos seus olhos azuis ligeiramente borrados pelo rímel.

“Temos a sorte de poder ajudá-la como família”, continua. Por agora, Rachel está em casa de um dos irmãos, mas os filhos e netos tencionam arranjar-lhe outra morada para continuar a viver sozinha. “Temos andado à procura, porque podemos pagar, graças a Deus”, explica Sarit enquanto junta as duas mãos como se estivesse a rezar e levanta os olhos para o céu. “Somos sortudos.”

Enquanto espera pela autorização, Rachel descontrai um pouco a falar com o Observador, num inglês quase perfeito. Conta como gostou das férias que fez em Portugal há uns anos e que ficou fã de fado. “Como é que se chama aquela vossa cantora? Ah, Amália Rodrigues!”, afirma, sem se enganar no nome.

Rachel nasceu na Bulgária em 1942, já decorria a Segunda Guerra Mundial. O seu pai chegou a estar no cais à espera de entrar para um vagão, com outras centenas de judeus que tinham como destino um campo de concentração — um destino que foi evitado pelo governo búlgaro que, embora fosse aliado da Alemanha Nazi, se opôs às deportações de judeus do seu território (mas não das regiões que ocupara na Grécia e na Jugoslávia). “Somos muito gratos aos búlgaros”, diz Sarit.

A matriarca da família chegou a Israel com os pais em 1948, quando tinha apenas seis anos. Aos 17, conheceu o marido. Em adulta, foi uma mulher dos sete ofícios: “Já fiz muita coisa. Trabalhei na florista da minha mãe, numa fábrica de confeção de roupas de crianças, num banco, numa loja de maquilhagem”, vai enumerando, enquanto conta pelos dedos. Agora está em frente ao prédio onde criou a família e onde vai ter de voltar a entrar e confrontar-se com a sua destruição. Mas, se pudesse, ficava ali e não na casa que a família lhe quer alugar. “Lá dentro está tudo partido, mas é a minha casa. Na minha idade, a mudança é algo muito difícil.”

Os capacetes chegam. A família coloca-os e dirige-se para a porta do prédio. Sobem até ao 1.º direito do número 43, pelas escadas agora instáveis e cobertas de destroços — as mesmas onde Rachel se sentou naquela noite.

A cozinha

Quando Rachel entra em casa, pára, olha em volta e diz: “É a minha vida inteira.” Depois põe os olhos nas figuras de homens de cerâmica, que foram feitas por si à mão ao longo dos anos. Algumas estão intactas numa prateleira de madeira construída pelo marido, que morreu entretanto; outras estão espalhadas pelo chão, partidas em pedaços. Uma parece que foi milimetricamente decapitada, com corpo e cabeça intactos, mas separados.

A partir do hall de entrada, a mulher de 83 anos vira imediatamente à sua direita e dirige-se para a cozinha, passando por cima dos pedaços de madeira, estuque e cimento que estão espalhados pelo chão. Ali há moscas por todo o lado, atraídas pela comida que caiu, como os pêssegos em calda que antes estavam num boião de vidro em cima da bancada. Rachel olha para o frigorífico — que tem a porta ligeiramente danificada, mas é dos eletrodomésticos em melhor estado — e comenta: “Era novo, tinha sido comprado há pouco tempo”. Depois sorri e aponta para o único íman que tem colado no congelador: “Portugal!”

É então que volta a parar e fica séria, como quem está a pensar nalguma coisa. Vira-se para trás de repente, abre um dos armários e baixa-se para ir buscar qualquer coisa. “Preciso destes”, diz, enquanto agarra num pacote de esfregões de loiça por encetar. Regressa à sala e olha em volta. Perguntamos-lhe se acha que é possível que a casa ainda seja recuperada. “Acha que a vão reconstruir?”, pergunta com um ar cético. “Não me parece.” Talvez o edifício faça parte dos nove que o autarca de Bat Yam, Tzvika Brot, diz que serão demolidos; talvez não.

Escritório

Enquanto Rachel vai avaliando os estragos na cozinha e na sala, o neto Asaf Harris entra na divisão que agora funciona como escritório. Em tempos foi o quarto de Sarit e de Orit, que o dividiam com uma cortina para terem mais privacidade. Agora está ali um computador: o ecrã mais moderno em cima, a torre em baixo com um tom de branco amarelecido que aponta para alguns anos de uso.

Asaf é músico de jazz. Estudou numa universidade em Nova Iorque, onde recebeu em 2020 o prémio “John Coltrane” — um ambicionado reconhecimento para estudantes da área. Hoje em dia, divide o seu tempo entre os Estados Unidos e Israel e lançou entretanto um disco: a avó Rachel pede-lhe que o procure no Spotify para o mostrar orgulhosamente aos jornalistas. O neto, com algum embaraço, acede ao pedido.

O trabalho que Asaf está aqui a fazer hoje é muito diferente daquilo a que está habituado. Em vez de um saxofone, tem nas mãos um grande saco. Abre gavetas de um armário e começa a retirar o que encontra, olhando meticulosamente para cada objeto, papel e bugiganga, para avaliar se vale a pena serem recolhidos ou deixados ali. Coloca no saco os que são para levar.

[A polícia é chamada a uma casa após uma queixa por ruído. Quando chegam, os agentes encontram uma festa de aniversário de arromba. Mas o aniversariante, José Valbom, desapareceu. “O Zé faz 25” é o primeiro podcast de ficção do Observador, co-produzido pela Coyote Vadio e com as vozes de Tiago Teotónio Pereira, Sara Matos, Madalena Almeida, Cristovão Campos, Vicente Wallenstein, Beatriz Godinho, José Raposo e Carla Maciel. Pode ouvir o 7.º episódio no site do Observador, na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E o primeiro episódio aqui, o segundo aqui, o terceiro aqui, o quarto aqui, o quinto aqui e o sexto aqui]

Quando tem dúvidas, grita para perguntar à avó o que fazer com o que encontrou. Mas há algo que o neto encontra e não lhe pergunta o que fazer com aquilo. “Charutos!”, comenta em voz baixa, enquanto olha espantado para aquele achado. “Ela não fumava, talvez tenham décadas…”, acrescenta. Com a surpresa, deixa cair alguns no chão e sussurra “merda”, como quem estragou uma relíquia preciosa.

Continua a abrir envelopes, a folhear papéis e a abrir caixinhas. “Passei muito tempo aqui quando era miúdo. Isto é de loucos”, vai dizendo ao Observador. A certa altura, abre um envelope comprido e retira lá de dentro várias radiografias. Repete um só som, uma e outra vez, de olhos esbugalhados: “Uau. Uau.”

Quarto

É então que Rachel nos convida a entrar noutra divisão. “Veem como está o meu quarto?”, pergunta, enquanto olha em volta. A cama, onde foi colocando várias peças de roupa para escolher, está coberta de poeira. Os quadros que estavam pendurados caíram todos. As janelas não têm vidros e os caixilhos soltaram-se. Mas o mais impressionante é quando se levanta os olhos para o teto: está esventrado por um rasgão que ameaça fazer cair parte de uma parede, deixando exposto o cimento rebentado. Rachel diz o mesmo que o neto: “Uau. Uau.”

Surpreendentemente, a televisão está intacta. Orit apressa-se a retirá-la da parede para a levar. A mãe senta-se na cama e começa a abrir as gavetas da cómoda branca que está por baixo. “Ah, o meu fato de banho”, comenta enquanto mostra o pedaço de tecido de lycra preta. “E o meu pareo!”, acrescenta com alegria quando encontra a peça ali ao lado.

Depois concentra-se na tarefa de descobrir onde está o pijama, já que se sente envergonhada por nos últimos dias ter dormido com roupa emprestada. “Ah, aqui está!”, diz, inspecionando o estado das calças com um padrão de coelhinhos. Senta-se novamente na cama e começa a olhar para a roupa que tem espalhada e que precisa de ser escolhida. O suor escorre-lhe pela testa, acentuado pelo capacete e pelas altas temperaturas de Tel Aviv. “Trouxe estas calças dos Estados Unidos, quando fui visitar o meu irmão. Este colete comprei na Turquia, mas é daqueles que está sempre no armário e nunca uso”, vai comentando. “Vou deixá-lo.”

Abre outra cómoda onde está a maquilhagem, como o verniz vermelho com que pinta as unhas. Ali dentro, encontra algo surpreendente: “Oh, uma fotografia do meu pai!”, diz em voz alta, num tom feliz. Na foto tipo-passe vê-se um homem já de idade, vestido de fato e gravata. Isso faz Rachel lembrar-se de outra coisa: precisa de encontrar os naperons feitos à mão pela sua mãe. Começa a revirar os montes de roupa, até que encontra um e solta um suspiro de alívio.

O neto Asaf entra entretanto no quarto para ajudar. Abre mais gavetas e descobre uma bolsa plastificada muito pequena, daquelas que cabem no bolso de peito de uma camisa de homem, com alguns papéis antigos — tão antigos que já mal se conseguem ler as letras. Retira de lá de dentro um pin vermelho, com riscas azuis e brancas, e pergunta à avó: “O que é isto?” Rachel arregala os olhos. Aquilo que está a ver é um pin comemorativo dado pelo Exército aos veteranos de várias guerras: a dos Seis Dias, a do Yom Kippur e a do Líbano. “Isso era do avô, foi-lhe dado por ter sido soldado, já não me lembro em qual das guerras. Talvez a do Yom Kippur?”, interroga-se.

A propósito de guerras — e já foram muitas ao longo da História de Israel — Rachel começa a recordar algumas. A que mais a marcou foi a Guerra dos Seis Dias, em 1967. A 5 de junho desse ano, Israel deu o tiro de partida ao bombardear alvos militares no Egito, num conflito que acabaria com os israelitas a obterem controlo sobre a Faixa de Gaza, a Cisjordânia, a península do Sinai e os Montes Golã em menos de uma semana. Nesse primeiro dia da guerra, Rachel estava no hospital a dar à luz o seu filho, quando ouviu as sirenes. “Mandaram-nos às mães para os abrigos e os bebés que já tinham nascido ficaram lá em cima. Foi horrível”, conta, fechando os olhos como quem já não se quer recordar.

Sobre as guerras de agora sente sobretudo incredulidade. “Viemos para cá em 1949 e os árabes ajudaram-nos. Davam-nos café, ajudaram os meus pais a arranjar emprego. Não entendo isto. Tínhamos uma ótima relação com os vizinhos”, conta. “Talvez eles se tenham tornado mais e mais religiosos, com o tempo”, arrisca como possível explicação. “Mas não compreendo isto.” Sobre o recente conflito que lhe destruiu a casa não aponta o dedo ao Irão, mas sim ao seu governo: “É terrível. Estão a gastar dinheiro para fazer guerras. Seria muito mais sensato se o gastassem com as pessoas.”

De volta à recolha dos bens, Rachel vai-se mostrando mais e mais assoberbada. “Não sei o que levar, não sei”, murmura, enquanto olha em volta. Está cansada e confusa. Mas eis que, de repente, se levanta e abre os braços em frente à cama repleta de roupa e poeira. É então que canta nada mais nada menos do que Amália Rodrigues, num português admirável: “É uma casa portuguesa, com certeza!” Depois, solta uma gargalhada.

Sala

Na sala, a cristaleira onde Rachel guarda os seus troféus de bridge — “ainda jogo todos os dias no computador” — tem o vidro partido. Lá dentro, os troféus outrora bem arrumados estão agora todos empilhados em cima uns dos outros. No chão, em frente ao sofá, está um baralho de cartas espalhado.

As filhas Sarit e Orit vão tentando dar conta do caos nesta divisão. Enchem sacos, desviam entulho, apanham cacos. “Agora é a segunda vez que cá vimos, estamos mais focados”, diz a filha mais velha ao Observador. “Mas a primeira vez que entrámos… Ficámos muito emocionados.”

Sarit senta-se num banco, no meio dos destroços, e acende um cigarro. É o primeiro momento de descontração a que se permite desde que ali chegou hoje. Faz scroll no telemóvel, enquanto o fumo se vai espalhando pela sala. Depois, liga a um amigo em alta voz e pergunta se podem vir ajudá-los. A tarefa que têm pela frente promete durar muito mais horas.

É a deixa para a nossa saída, que inclui despedidas emocionadas. Sarit quer oferecer um abraço, mas diz que não há condições para isso, por estar demasiado transpirada, e opta por um pequeno toque no braço. “Seria desconfortável”, comenta, rindo-se. Mas, quase de imediato, as lágrimas voltam a espreitar. Sarit Keddem diz então que quer “sublinhar uma coisa”: “Nós somos os que tiveram sorte.”