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O fim de "Squid Game": quantos é que jogariam para não ter de dividir o prémio?

Começou no meio de uma tempestade perfeita. Surpreendeu, impressionou, mas à segunda dose perdeu força. Nesta última temporada, a série choque termina em grande. O que nos deixa — a nós e à televisão?

Susana Verde
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Ora lá vamos nós outra vez e parece que desta é que é. Depois de uma primeira temporada que era suposto ser filha única e uma segunda que tudo indicava fechar a história de vez — só que não — eis que chega uma terceira e última temporada  “juro, juro, que eu caia aqui ceguinho, se estiver a mentir” de Squid Game. Eu que gostei a um nível pouco saudável da temporada inaugural, fiquei bastante chocha com este ajuntamento de episódios que saíram há seis meses. E não lhe chamo temporada, porque claramente não o era. Para mim, não foi mais do que um intervalo semestral entre episódios, tendo os mais recentes estreados na sexta-feira 27 de junho, na Netflix.

Fizeram render o peixe, percebo perfeitamente, anda tudo ao mesmo, tem que se fazer pela vidinha, ele não cai do céu, etc., etc. Mas é no mínimo irónico que a plataforma, os produtores ou mesmo o criador da série tenham feito uma opção tão descaradamente garganeira, quando estamos a falar de Squid Game, uma distopia sobre as derradeiras consequências do capitalismo selvagem. Portanto, se eu acho absolutamente possível que mais ano, menos ano, voltem a desenterrar o jogador 456 para mais uma voltinha neste carrossel sanguinário? É o mais certo. Sendo que estou a escrever este pedaço de texto antes de ver estes últimos episódios (quando chegar ao fim destas linhas, já vi tudo) e é bem possível que seja desta que o fofinho do Gi-hun estique o pernil. Até porque o rapaz não está nada com boa cara.

[o trailer da terceira temporada de “Squid Game”:]

https://www.youtube.com/watch?v=zgGTVaG2UiQ&pp=ygUTc3F1aWQgZ2FtZSBzZWFzb24gMw%3D%3D

A segunda temporada acabou mal ao quadrado. Acabou mal porque o último episódio é o mais fraco da temporada, chegando até a ser um pouco aborrecido, coisa a que Squid Game não nos habituou, bem pelo contrário. E acabou mal para o herói da nossa história, que depois de ter convencido os companheiros de infortúnio a seguir o seu plano para abortarem o jogo, viu as consequências das suas decisões rebentar-lhe na cara e mais uma vez duplo sentido, sendo que envolveu alguém muito próximo a levar um mortal balázio a uma distância da sua cara muito pouco higiénica. Portanto, mais uma voltinha, mais uma viagem e é este o ponto de situação.

Depois de uma tentativa de rebelião que tinha tudo para correr mal (e vai-se a ver correu), o jogo retoma o seu curso. Faltam 3 jogos, sobram 60 jogadores e o porquinho mealheiro do prémio está num processo de engorda a bom ritmo. Os olhos dos mais gananciosos faíscam de júbilo e já fazem contas à vida, os outros estão só a fazer um esforço para não morrer de susto a cada momento. O grupo prepara-se, agora, para fazer uma nova votação e decidir se permanecem ou não no jogo. O jogador 456 regressa à camarata dos infernos e não percebe porque é que foi poupado. Entretanto, o barco com o grupo de buscas chefiado pelo ex-detetive Hwang, que sobreviveu à primeira temporada, está mais desorientado que o PS. Sendo que o capitão do barco é uma espécie de Sérgio Sousa Pinto, e está feito com o outro lado da bancada, quer dizer, da barricada, o que parecendo que não, não facilita.

Há um enredo secundário à volta da Guarda 011, que parece má como as cobras, até porque o trabalho dela é, de forma genérica, matar pessoas. Mas ganha a nossa empatia, graças ao vislumbre que temos do bingo de tragédias que foi a vida dela até chegar à ilha, o que inclui uma fuga do seu país natal, Coreia do Norte. E olha que bem que ela está agora na do Sul…  A Guarda 011 opõe-se a um esquema de venda de órgãos paralelo ao jogo, levado a cabo por alguns dos seus camaradas para ganhar uns trocos extra. Fiquei entusiasmada ao início com a ideia de termos um ponto de vista de alguém que está por detrás da máscara de esgrima com uma figura geométrica, mas até ver rendeu muito poucochinho, do meu ponto de vista.

Dito isto, até parece que estou a fazer um ato de altruísmo e abnegação ao ver esta última temporada para completar o relato. Mas nem eu sou tão boa pessoa, nem a série é assim tão má. Ou má, sequer. O primeiro capítulo é que me deixou as expectativas upa, upa, lá para cima. Posto isto,  venha a cabidela audiovisual, que eu comi uma coisa levezinha ao almoço, já de caso pensado. Na análise que fiz à segunda temporada, escrevi que “embora Squid Game tenha perdido a subtileza, não perdeu o propósito”. Vejamos o que é que se perde e o que é que se ganha na derradeira season.

7 episódios depois…

Ao episódio 4, um dos VIPs que está a beber o seu cognac, enquanto assiste a uma chacina em direto sobre a qual faz apostas, diz sobre o desfecho de determinado jogo: “É uma reviravolta maior do que a ressurreição de Jesus”. Não chegarei a tanto, mas quando comecei este texto estava longe de pensar que escreveria o que segue, mas é o que é. Ao contrário do Cavaco, eu engano-me amiúde e há poucas coisas sobre as quais não tenha uma ou outra dúvida. E senhores, eis que me estampei com estrondo e aparato. Que grande temporada, que belo final, que magnífica chapada nas trombas, Susana Maria! O Squid Game voltou e está de boa saúde, em proporção inversa à generalidade dos envolvidos.

Houve falecimento em barda, de maneiras diversas, mais ou menos gráficas, com a balança a pender evidentemente para o mais. Muito me retorci eu a ver isto, incomodada fisicamente a tempos, demasiado envolvida emocionalmente “que eu sou mêmo assim, o que é que tu queres que eu faça?” noutros tantos. Dilemas sem solução que põem na montra o desespero humano em todo o seu esplendor, com aquele pormenor de sadismo de jogo após jogo, morte em cima de morte, a maioria escolher continuar. Ver esta temporada é voltar ao ping pong sentimental que experienciei na primeira, um saltitar contínuo entre “Com um empurrãozinho, somos todos uma merda! Alguns nem precisam do empurrãozinho…” ou “Ainda há gente boa no Mundo, caramba! É só fazermos a nossa parte. Amanhã, vou…”. E isto só é possível com um grande guião, uma belíssima realização e tremendas interpretações.

Terei que destacar a mais fofa das anciãs, Geum-ja, que me roubou o coração e grossas lágrimas, o nosso 456 a dar um show de bola mais uma vez e o seu rival, In-ho, idem idem aspas aspas. Pode parecer que me estou a armar, mas é para o lado que durmo melhor (e se dúvidas houvesse, é o esquerdo): as personagens mais fracas são os VIPs, milionários que pagam rios de dinheiro para assistir a esta sangria desatada de camarote com belíssimas máscaras douradas. Na sua maioria ocidentais, são muito caricaturais, muito pouco convincentes, fraquinhos, vá. Pode ser intencional, pode ser uma forma de caracterizar o mega rico-padrão. Até posso estar a ser demasiado linear, mas eu cá achei que carregaram demasiado na farinheira.

Agora, a questão que não quer calar e que deveria levar para terapia: o quão distorcido é ter-me queixado ruidosamente, na segunda temporada, por não ter conseguido envolver-me com as personagens e, agora, estar satisfeitíssima com o farrapo humano em que fiquei, por ter assistido ao sofrimento atroz dessas mesmas personagens? Isso não faz de mim uma versão low cost dos acima referidos VIPs? Viajei na maionese, peço desculpa, vou socorrer-me de uma frase da amorosa Geum-ja: “Pessoas más fazem coisas más, mas culpam os outros e vivem em paz. Por outro lado, as pessoas boas culpam-se a si mesmas por tudo e por nada”.

Quando terminei de ver a série, como boa obssessiva que sou, fui ver À conversa sobre Squid Game, meia hora de troca de tertúlia entre os protagonistas Lee Jung-jae e Lee Byung-hun e o criador, realizador e argumentista Hwang Dong-hyuk (que teve esta ideia há 10 anos, quando estava praticamente falido e seria um bom candidato e entrar no jogo, e agora tem dinheiro que chega para 10 séculos e mais uns trocos). Squid Game veio ao mundo durante a pandemia e, sem retirar mérito, foi a tempestade perfeita para o fenómeno se ter tornado global. Foi um jackpot de merchadising, tendo apelado aos públicos mais inesperados ou errados, mesmo.

A série sul-coreana foi tema de conversa em diversos fóruns e chegou a ser notícia no telejornal, por ter atingido um público infanto-juvenil e haver miúdos no recreio a brincar a um jogo com 456 participantes em que 455 morriam. É curioso que 5 anos depois, o próximo fenómeno a sair da plataforma para a discussão nas comunidades educativas teha sido Adolescência, em que o assassino é ele próprio infanto-juvenil. Deixo as conclusões para alguém com mais estudos do que eu. A dada altura, o autor diz: “Não se esqueçam de nós. Entre a enxurrada de séries e conteúdos mediático, seria uma honra se o Squid Game fosse especial no vosso coração e memória durante muitos anos”. Parece-me que as pessoas se vão lembrar da série, de quando a viram, do que sentiram. A minha dúvida é se se lembram sobre o que é que é.

E se acham que sou eu que politizo tudo (o que tem o seu quê de verdade, porque quase tudo é política), passo a citar o próprio do autor: “O capitalismo alimenta uma concorrência implacável. Então se isso não parar, o jogo não pára”. Há quem interprete as distopias como uma premonição do futuro em esteróides, à luz da ficção cientifica. Acho que muitas vezes não é o caso e aqui, seguramente, não é. Esta distopia é sobre o hoje, o agora e como o valor da vida humana tem rolado pela pirâmide de prioridades abaixo. Hwang Dong-hyuk foca-se na realidade que lhe é mais próxima, a da Coreia do Sul, mas nada diz que é um exclusivo do país onde nasceu, como fica claro na última cena da série. Se o mundo fosse hoje a votos, quantos é preferiam continuar a jogar o jogo para não ter de dividir o prémio?

[A polícia é chamada a uma casa após uma queixa por ruído. Quando chegam, os agentes encontram uma festa de aniversário de arromba. Mas o aniversariante, José Valbom, desapareceu. “O Zé faz 25” é o primeiro podcast de ficção do Observador, co-produzido pela Coyote Vadio e com as vozes de Tiago Teotónio Pereira, Sara Matos, Madalena Almeida, Cristovão Campos, Vicente Wallenstein, Beatriz Godinho, José Raposo e Carla Maciel. Pode ouvir o 7.º episódio no site do Observador, na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E o primeiro episódio aqui, o segundo aqui, o terceiro aqui, o quarto aqui, o quinto aqui e o sexto aqui]